segunda-feira, 8 de abril de 2024

O homem da dúvida que ora, ao reconhecer no Senhor o seu Deus

 

A liturgia do 2.º domingo de Páscoa apresenta-nos a Igreja, a comunidade de Homens Novos que nasce das chagas do Crucificado, que ressuscitou, consistindo, por isso, a missão eclesial em revelar aos homens a vida nova que brota da ressurreição.

No Evangelho (Jo 20,19-31), sobressai Jesus ressuscitado como o centro da comunidade cristã, sendo à volta d’Ele que a comunidade se estrutura, pois d’Ele recebe a vida que a anima e que a leva a enfrentar as dificuldades e as perseguições. E é na vida da comunidade (liturgia, amor, testemunho) que os homens encontram a prova de que Jesus está vivo.

A indicação de que estamos no primeiro dia da semana faz referência ao tempo novo, que se segue à morte/ressurreição de Jesus, o tempo da nova criação. Com efeito, a comunidade criada a partir da ação criadora e vivificadora de Jesus, reunida no cenáculo, estava desamparada e insegura, num ambiente hostil, e com medo, porque ainda não tinha feito a experiência do Ressuscitado.

Ao evangelista, na catequese sobre a presença de Jesus, vivo e ressuscitado, no meio dos discípulos em caminhada pela História, interessa assegurar aos cristãos de todas as épocas e de todos os lugares que Jesus Cristo continua vivo e presente, a acompanhar a Igreja. E cada crente pode fazer a experiência do encontro com o Senhor ressuscitado, sempre que celebra a fé com a comunidade eclesial.

Na primeira parte (vv. 19-23) do trecho em apreço, descreve-se uma aparição de Jesus aos discípulos, que estavam em insegurança e em fragilidade (“anoitecer”, “portas fechadas”, “medo”). Porém, Jesus torna-se o centro da comunidade (pôs-se “no meio deles”), o ponto de referência, o fator de unidade, a videira em torno da qual se enxertam os ramos.

À comunidade fechada, com medo, imersa nas trevas do mundo hostil, Jesus transmite duplamente a paz (“shalom” hebraico, no sentido de harmonia, serenidade, tranquilidade, confiança, vida plena), assegurando aos discípulos que venceu o que os assustava (a morte, a opressão, a hostilidade do mundo) e que, doravante, não têm qualquer razão para o medo.

Depois, revela a sua identidade: nas mãos e no lado trespassado, estão os sinais do seu amor e da sua entrega. É nesses sinais que a comunidade reconhece Jesus vivo e presente no seu meio. A permanência deles indica a permanência do amor de Jesus: Ele será sempre o Messias que ama e do qual brotarão a água e o sangue que constituem e alimentam a comunidade.

Em seguida, Jesus “soprou” sobre os discípulos reunidos à sua volta. O sopro é indicado pelo verbo grego de Gn 2,7 (Deus “soprou” sobre o homem de barro, infundindo-lhe a vida de Deus). Com esse sopro, o homem tornou-se um ser vivente; e, agora, com este sopro, Jesus transmite aos discípulos a vida nova que os tornará homens novos. Possuem o Espírito, a vida de Deus, para poderem – como Jesus – dar-se aos outros. É este Espírito que constitui e anima a comunidade.

Na segunda parte (vv. 24-29), João apresenta uma catequese sobre a fé. Ensina que podemos fazer a experiência da fé em Cristo vivo e ressuscitado na comunidade dos crentes, o lugar natural onde se manifesta e irradia o amor de Jesus. Tomé representa os que vivem fechados em si (está fora) e não faz caso do testemunho da comunidade, nem percebe os sinais de vida nova que nela se manifestam. Em vez de se integrar e de participar da experiência, comunitária, quer obter (apenas para si) a demonstração de Deus. Todavia, acaba, por fazer a experiência de Cristo vivo no seio da comunidade, porque, no “dia do Senhor”, volta a estar com a comunidade – alusão ao domingo, o dia em que a comunidade é convocada para celebrar a Eucaristia. Com efeito, é no encontro com o amor fraterno, com o perdão dos irmãos, com a Palavra proclamada, com o pão de Jesus partilhado, que se descobre O Ressuscitado.

A experiência de Tomé não é exclusiva das primeiras testemunhas. Todos os cristãos podem fazer esta experiência, primeiro, da dúvida obstinada e, depois, da verificação dos sinais e da confissão orante da fé perante o “Meu Senhor e Deus!” Tomé tem de passar a ser exemplo, a par do protótipo da dúvida egocêntrica, do apóstolo crente, cuja teimosia foi vencida pelos sinais do Crucificado no corpo do Ressuscitado. Obviamente, tornou-se, como os outros apóstolos, beneficiário da paz que Jesus desejou para todos, recetor do sopro da vida divina, portador do carima da missão apostólica, imbuído do Espirito Santo, o dom de Deus, e obreiro do perdão dos pecados.   

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A primeira leitura (At 4,32-35) dá-nos os traços da comunidade ideal: formada por pessoas diversas, que vivem a mesma fé num só coração e numa só alma, manifestando o amor fraterno em gestos de partilha e de dom e testemunhando, dessa forma, Jesus ressuscitado.

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Os Atos dos Apóstolos são uma catequese sobre a etapa da Igreja, ou seja, sobre a forma como os discípulos assumiram e continuaram o projeto salvador do Pai e o levaram – após a partida de Jesus deste Mundo – a todos os homens.

A primeira parte (At 1-12) apresenta-nos a difusão do Evangelho na Palestina, por ação de Pedro e dos Doze; a segunda (At 13-28) apresenta-nos a expansão do Evangelho fora da Palestina (até Roma), sobretudo por ação de Paulo.

O trecho em referência pertence à primeira parte, integrando um conjunto de três sumários, através dos quais Lucas descreve aspetos fundamentais da vida da comunidade de Jerusalém: a unidade e o impacto que o estilo cristão de vida provocou no povo da cidade; a partilha dos bens; e o testemunho da Igreja, através da atividade miraculosa dos apóstolos.

Quando Lucas escreve estes relatos (década de 80), está arrefecido o entusiasmo dos cristãos: Jesus não veio para instaurar definitivamente o Reino de Deus, e posicionam-se, no horizonte, as primeiras grandes perseguições. Há falta de entusiasmo, monotonia, divisão e confusão (aparecem falsos mestres, com doutrinas estranhas e pouco cristãs). E Lucas recorda o essencial da experiência cristã e traça o quadro do que a comunidade deve ser.

Essa comunidade, que nasce do Espírito e do testemunho dos apóstolos, é uma comunidade formada por pessoas muito diversas, mas que abraçaram a mesma fé (“a multidão dos que tinham abraçado a fé”). A fé é, no Novo Testamento, a adesão a Jesus e ao seu projeto. Para todos os membros da comunidade, o Senhor Jesus Cristo é a referência fundamental, o cimento que a todos une num projeto comum. É uma comunidade unida, onde os crentes têm “um só coração e uma só alma”. Da adesão a Jesus resulta a comunhão e a união de todos os irmãos. A comunidade não pode ser o espaço onde cada um puxa para o seu lado, preocupado em defender os seus interesses, mas tem de ser o espaço onde todos caminham na mesma direção, ajudando-se, partilhando os valores e os ideais, formando a verdadeira família de irmãos que vivem no amor.

É uma comunidade que partilha os bens. Da comunhão com Cristo resulta a comunhão dos cristãos entre si, o que tem implicações práticas, como a renúncia a qualquer tipo de egoísmo, de autossuficiência, de fechamento e a abertura de coração para a partilha, para o dom, para o amor. Expressão concreta da partilha e do dom é a comunhão dos bens: “ninguém chamava seu ao que lhe pertencia, mas tudo entre eles era comum”.

Na explicitação deste “pôr em comum”, é dito que “não havia entre eles qualquer necessitado, porque todos os que possuíam terras ou casas as vendiam e traziam o produto das vendas, que depunham aos pés dos apóstolos. Distribuía-se então a cada um conforme a sua necessidade”. É uma forma concreta de mostrar que a vida nova de Jesus, assumida pelos crentes, não é conversa, mas é efetiva libertação da escravidão do egoísmo e compromisso verdadeiro com o amor, com a partilha, com o dom da vida. Onde a realização e o êxito se medem pelos bens acumulados, não se entendendo a partilha e o dom, a comunidade de Jesus é chamada a dar exemplo de uma lógica diferente e a propor um Mundo baseado nos valores de Deus.

É uma comunidade que dá testemunho: “os apóstolos davam testemunho da ressurreição de Jesus com grande poder”. Os gestos dos apóstolos infundiam em todos os que os testemunhavam a inegável certeza da presença de Deus e dos seus dinamismos de salvação.

É de realçar que a partilha de bens referida não era imposta por qualquer poder autocrático ou ditatorial, mas resultava da convicção profunda da fraternidade que implica a comunhão total.

Os Atos relatam o caso de um casal que foi severamente punido, não por recusar a partilha do dinheiro que recebera pela venda de uma sua propriedade, mas por ter mentido aos apóstolos, declarando um preço de venda inferior ao preço efetivo e arrecadando a respetiva diferença.   

A fé dos discípulos, a sua união e, mais do que tudo, a ilógica e absurda partilha dos bens eram a prova de que Jesus Cristo estava vivo e a atuar no Mundo, oferecendo aos homens um Mundo novo. Os habitantes de Jerusalém não podiam ver Cristo Ressuscitado, mas podiam ver a espantosa transformação operada no coração dos discípulos, capazes de superar o egoísmo, o orgulho e a autossuficiência e de viver no amor, na partilha, no dom. Viver segundo os valores de Jesus é a melhor forma de anunciar e de testemunhar que Jesus está vivo.

Possivelmente, a comunidade cristã de Jerusalém não era a comunidade ideal. Outros textos falam de tensões e de problemas, como em qualquer comunidade humana, mas a descrição de Lucas aponta para a meta a que toda a comunidade cristã deve aspirar, confiada na força do Espírito. É, pois, a descrição da comunidade, que serve de modelo às Igrejas de todas os tempos.

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A segunda leitura (1Jo 5,1-6) recorda à comunidade os critérios da vida cristã: o crente ama Deus, a Jesus Cristo e à salvação que, através d’Ele, o Pai oferece aos homens; e que vive no amor aos irmãos. Ora, quem vive desta forma vence o Mundo e integra a família de Deus.

Não é fácil identificar o autor da Primeira Carta de João. Ele apresenta-se como “o Ancião” e como testemunha da Vida manifestada em Jesus, mas não refere o seu nome. Tradicionalmente, atribui-se a Primeira Carta de João (como a segunda e a terceira) ao apóstolo João. Porém, essa atribuição é problemática. Em todo o caso, o autor é alguém que se move no mundo joânico e que conhece bem a sua Teologia. Também não há referência a um destinatário, a pessoas ou a comunidades concretas. Contudo, parece dirigir-se a um grupo de igrejas ameaçadas pelas heresias. E o autor não refere as circunstâncias que motivaram a composição da carta. Porém, o tom polémico que atravessa várias passagens, leva a concluir que as comunidades às quais a carta se dirige vivem crise grave. A difusão de doutrinas incompatíveis com a revelação cristã ameaça comprometer a pureza da fé.

A Carta chama aos autores de tais heresias anticristos, profetas da mentira e mentirosos. Diz que “são do mundo” e que se deixam levar pelo espírito do erro. Os heréticos em causa queriam conhecer Deus (gnósticos), vê-Lo, viver em comunhão com Eles. Porém, recusavam-se a ver em Jesus o Messias e o Filho de Deus, negavam a encarnação. Segundo eles, o Cristo celeste tinha-Se apropriado do homem Jesus de Nazaré no Batismo, tinha-o utilizado para levar a cabo a revelação e tinha-O abandonado antes da paixão, porque o Cristo celeste não podia padecer. Diziam não ter pecados e não guardavam os mandamentos, em particular o mandamento do amor fraterno. Seria um dos movimentos pré-gnósticos que desembocaria nos grandes movimentos gnósticos do século II.

Na confusão causada pelas doutrinas heréticas, o autor da Carta oferece aos crentes uma certeza: não esses profetas da mentira que vivem em comunhão com Deus e que possuem a vida divina.

Os crentes amam a Deus e a Jesus Cristo, o Filho que nasceu de Deus. Jesus de Nazaré é, ao invés do que diziam os hereges, é o Filho de Deus desde a encarnação e em toda a sua existência terrena. A sua paixão e morte fazem parte do projeto salvador de Deus (Jesus veio trazer aos homens um projeto de salvação, “não só pela água, mas com a água e o sangue”.

Porém, amar a Deus significa cumprir os mandamentos. Quando amamos alguém, realizamos obras que agradem a quem amamos. Não se pode dizer que se ama a Deus se não se cumprem os seus mandamentos. E o mandamento de Deus é amar os irmãos. Todo aquele que se considera filho de Deus e que pertence à família de Deus deve amar os irmãos, que são membros da mesma família. Quem não ama os irmãos não pode amar a Deus e fazer parte da família de Deus.

Quando o crente ama a Deus, crê em Jesus, o Filho de Deus, e vive de acordo com os mandamentos de Deus (sobretudo com o mandamento do amor aos irmãos), vence o Mundo.

Amar Deus, amar Jesus e amar os irmãos significa construir a própria vida numa dinâmica de amor, derrotando o egoísmo, o ódio, a injustiça – típicos da dinâmica do Mundo.

Esta vida nova que permite aos crentes vencer o Mundo é oferecida aos homens por Jesus Cristo. A vida nova que Jesus veio oferecer chega aos homens pela “água” (pela adesão a Cristo, no Batismo) e pelo “sangue” (alusão à vida de Jesus, feita dom na cruz por amor). O Espírito Santo atesta a validade e a verdade da proposta trazida por Jesus Cristo, por mandato de Deus Pai.

Quando o homem responde positivo ao desafio que Deus lhe faz (Batismo), oferece a vida como dom de amor para os irmãos, a exemplo de Cristo, e cumpre os mandamentos de Deus, vence o Mundo, torna-se filho de Deus e membro da família de Deus.

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Enfim, filhos de Deus, irmãos de e em Cristo, somos membros de uma Igreja viva e apostólica ou missionária, que reconhece em Jesus, como Tomé, o seu Senhor e o seu Deus.

2024.04.07 – Louro de Carvalho

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