terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Democracia viva contra democracia pantanosa

 

O Presidente da República (PR) assegurou, a 31 de janeiro, em declarações aos jornalistas, a meio de uma sessão do programa “Músicos no Palácio de Belém”, no antigo picadeiro real, em Lisboa, que não quer uma crise política a seguir às eleições europeias de meados de 2024, mas não se coíbe de sugerir que pode acontecer, recordando até exemplos passados.

Esta declaração, aliás como outras, vem na sequência de asserções do primeiro-ministro (PM) em entrevista à RTP1, no dia anterior, a propósito do primeiro aniversário das eleições legislativas que outorgaram a maioria absoluta ao Partido Socialista (PS), liderado por António Costa.

Questionado o PM sobre a fragilidade do Governo, manifestada nos “casos e casinhos” que brotaram do seio do executivo em 10 meses de governança, não por obra dos partidos da oposição, a resposta foi multiforme. Por um lado, as situações de ilegalidade duvidosa ou de suspeitas de falta de ética foram sendo resolvidas e os responsáveis, diretos ou indiretos, pelos criticáveis atos ou omissões foram tirando as consequências políticas; por outro, em certa medida, o Governo pôs-se a jeito e teve de corrigir os erros, na certeza que, nestes meses de governação, o PM prendeu muito com os portugueses, nessa matéria.

Respondendo à questão se um membro do Governo a braços com a Justiça tem condições para governar, declarou que o facto de alguém ser arguido não significa ter incorrido em ilícito criminal (antes implica a possibilidade de ter melhores condições para se defender, bem como o direito ao silêncio) e, ainda que acusado, não significa que venha a ser condenado. É sempre necessário esperar pelo trabalho da Justiça, independente dos demais poderes. E disse que, em princípio, um membro do Governo, se acusado de crime, deve deixar a governação. Porém, é preciso analisar caso a caso, ponderando, por exemplo, o tipo e a gravidade do crime, cabendo à Assembleia da República (AR) a autorização para responder aos tribunais ou o levantamento da imunidade.

Interpelado sobre determinadas afirmações do PR e sobre algum prurido na relação entre o Governo e o chefe do Estado acentuou dois elementos interessantes, que outros, a meu dever, deveriam ter em conta: não é comentador das asserções do Presidente da República; e não tem por hábito referir, na comunicação social o teor das conversas que mantém com o chefe do Estado.                 

No atinente a uma eventual crise política após as eleições europeias, pelo facto de eventualmente o PS ter perdido as eleições, o PM observou que só por três vezes, um partido do Governo ganhou as europeias. Com efeito, são eleições para o Parlamento Europeu e algumas pessoas aproveitam para exprimir protesto contra a governação através do voto. Poderia ter acrescentado – digo eu – que o painel de escolhas é muito pouco diversificado, tratando-se de apenas um círculo eleitoral com um número reduzido de eurodeputados a eleger. Disse que pretendia que o seu partido as ganhasse, mas sabe que as pode perder, não advindo daí prejuízo para a governação.

Tendo o entrevistador insistido no que o PR tem apontado, o PM recordou que o Chefe do Estado, aquando da tomada de posse do XXIII Constitucional, frisou que o eleitorado resolvera entregar a governação do país ao partido liderado por António Costa por quatro anos, tendo até personalizado a eleição no atual líder do PS, mal a meu ver esta personalização.

Já na ocasião exprimi a minha discordância neste ponto: os eleitores votam em partidos e cabe ao PR, nos termos constitucionais, nomear o primeiro-ministro, tendo em conta os resultados eleitorais e ouvidos os partidos com assento parlamentar. Isto implica, em meu entender, que a mudança de líder partidário não legitima a dissolução parlamentar, embora possa implicar a formação de outro governo. Assim, entendi que Jorge Sampaio não devia ter dissolvido a AR.        

Entretanto, João Henriques escreveu, no Diário de Notícias (DN) online, a 31 de janeiro, que “o

Presidente produziu, esta terça-feira, extensa doutrina sobre como há maiorias absolutas que são “de nome e de obra” e outras que acabam por se “esgotar” muito antes de eleições.

Na verdade, o PR apontou o fim da segunda maioria absoluta do Partido Social Democrata (PSD) liderado por Cavaco Silva, na década de 1990, como exemplo a não seguir: “Essa maioria foi-se esvaziando, enfrentou eleições europeias.” E o jornalista anotou: “Na altura, o partido no Governo perdeu as eleições europeias, não houve dissolução do Parlamento, a maioria formalmente continuou de pé, mas estava morta, e, nessa fase final, ‘foi uma maioria que depois se limitou apenas a discutir a sucessão do chefe do Governo e a transição para outra realidade’. ‘Ora – acrescentou – nós o que queremos é uma maioria absoluta que não seja dessas’.”

Não creio que se produza extensa doutrina, sobretudo consolidada, com base num caso quase esquecido e de duvidosa aplicação e, muito menos, ao dobrar da esquina, refletindo sobre uma entrevista da véspera.  

Respondendo a perguntas sobre a entrevista do primeiro-ministro à RTP1, no dia 30 de janeiro, o PR defendeu que se espera do Governo que seja “maioria absoluta de obra” (todos o sabemos), que aproveite os fundos europeus (Irra! Sempre os fundos europeus! Estará em jogo caça ao dinheiro?) e dure até ao fim da legislatura, sem entrar em “dissolução interna”.

Espera-se “que, neste ano decisivo, utilize os fundos e que possa, portanto, ser motora de uma recuperação económica que tire proveito dos números de 2022 e projete para o futuro, e com isso ganhe um dinamismo que lhe permita ultrapassar o resultado das eleições europeias, qualquer que ele seja”, insistiu o PR. “E que chegue ao fim do seu mandato com os portugueses a dizerem: valeu a pena dar maioria absoluta, porque a maioria absoluta não se esgotou, não se cansou, não descolou do país. É isso que os portugueses querem.”

Marcelo Rebelo de Sousa distinguiu entre maiorias absolutas em “de nome e de obra” e outras que, a partir de certo momento, passam a ser só de nome, por se terem esvaziado, cansadas e descoladas da realidade do país. Pegando numa expressão utilizada pelo PM, observou que a função do PR “é ajudar o Governo a não se pôr a jeito de a maioria absoluta que é de nome deixe de ser uma maioria absoluta de obra também”. E disse que é essa a situação atual: “queremos que haja uma legislatura que seja cumprida e queremos que seja uma maioria não apenas de nome, mas de obra.”

Não creio que a função do PR seja de ajudar ou de desajudar o Governo. Recordo o brado do primeiro-ministro em 1994-1995: “Deixem-nos trabalhar!” Cavaco Silva acusava as “forças de bloqueio”; agora Marcelo Rebelo de Sousa acusa a maioria desgastada. Em que ficamos?

Cavaco Silva tinha obtido a segunda maioria absoluta para o PSD em outubro de 1991. Em 1992, colapsaram algumas das moedas europeias, que o PS ganhou, embora o PSD tenha obtido 33,7% dos votos em câmaras municipais. E, em 1995, apesar de ter perdido as eleições legislativas para o PS, ainda obteve, com Fernando Nogueira, 34,12% dos votos. Por isso, em minha opinião, é de duvidosa legitimidade apontar a maioria de 1991-1995 como sendo maioria só de nome ou maioria esvaziada. Tanto assim foi que Mário Soares, dito animal político, não arriscou a dissolução da Parlamento. E, agora, é difícil sustentar a debilidade política da maioria. O protesto é notório, os casos abundaram, o PS desce nas sondagens (que valem o que valem), mas não é líquido que haja solução melhor, nos próximos tempos. Aguarde-se o refrescamento político.

Interpelado sobre a sucessão de “casos e casinhos” no Governo, o PR considerou que são “sinal de que a democracia portuguesa está mais forte”, sendo preferível uma “democracia viva” a uma “democracia pantanosa”. E explicitou: “É bom para a democracia haver exigência em antigos e novos partidos políticos no sistema partidário, na comunicação social. O contrário é que seria uma situação pantanosa. Mais vale ver se há problemas, levantá-los, depois uns são, outros não são, e isso é uma democracia viva, a ser uma democracia pantanosa.”

Neste ponto, concordo: mais vale emergir a verdade dos casos e eles serem resolvidos de imediato do que ficarem submersos no limbo da hipocrisia.

E o PR, ao apontar o exemplo do Governo britânico, chefiado por Rishi Sunak, que “em cem dias já teve não sei quantas demissões, por razões éticas”, deslegitima os permanentes ataques ao Governo pela abundância de casos “em apenas 10 meses”. Tem é de se conter nos comentários personalizados neste ou naquele governante, privilegiando a separação de poderes e a cooperante interdependência, através de mensagens mais discretas e mais eficazes.  

A seu ver, o que sucede no Reino Unido sucede em Portugal “mais do que acontecia”, porque, “nas democracias de hoje, o escrutínio é muito apertado”. E isso “é bom, é sinal de que a democracia portuguesa está mais forte, não está mais fraca”. E sentenciou: “O haver capacidade de controlar e haver a capacidade de em função desse controlo haver respostas que correspondam a padrões de exigência crescente dos portugueses, quer dizer que os portugueses estão muito, muito mais exigentes.” Porém, defendo que, em vez de nos atermos ao legítimo escrutínio da comunicação social (não sei o que move alguma), deviam as instituições com função reguladora e/ou fiscalizadora estar atentas aos eleitos e aos nomeados. Não há nisto doutrina alguma!

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O professor e constitucionalista Vital Moreira, comentando o caso da maioria social, contraposta à maioria política, evoca o revelho argumento antidemocrático de que “a democracia política, baseada nas eleições, dá o mesmo peso a todos”: elite e plebe, letrados e analfabetos, ricos e pobres, cidadãos empenhados e cidadãos desinteressados, prevalecendo o governo da maioria sobre o dos melhores. E aplica-o à extrema-esquerda, “boa a explorar os descontentamentos sociais” e a sustentar que “uma coisa são as maiorias eleitorais, que governam, e outra, as alegadas ‘maiorias sociais’, ou seja, a coligação de organizações e movimentos que comandam as reivindicações sociais, e que são tudo menos maioritárias, política ou sociologicamente”. 

Refere-se, em concreto, à logica antidemocrática do discurso da coordenadora do Bloco de Esquerda (BE), que tenta “fazer esquecer a enorme derrota que sofreu nas últimas eleições”. 

E diz Vital Moreira que “o antigo argumento antidemocrático – a elite contra a maioria da plebe – só mudou de sinal”: agora, as minorias nas ruas pretendem prevalecer sobre a maioria das urnas.

Dá que pensar se não será este o pensamento larvado do PR e de algumas forças da oposição, que vêm para a rua contestar a revisão constitucional em curso.

2023.01.31 – Louro de Carvalho

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Número de denúncias indicia decréscimo da violência no namoro

 

O número de denúncias de violência no namoro foi, em 2022, o mais baixo dos últimos quatro anos. Com efeito, segundo a Polícia de Segurança Pública (PSP), houve 2019 denúncias por violência no namoro no ano passado, menos do que em qualquer um dos últimos anos.

Também é factual que, nos mais novos, há tendência similar. A polícia está convicta de que estamos perante boas notícias, mas os especialistas continuam preocupados e têm as suas razões.

As 2019 denúncias por violência no namoro que a PSP recebeu no ano passado indiciam uma diminuição das queixas apresentadas, comparativamente com 2020 (2051) e com 2021 (2215), bem como relativamente aos anos da pré-pandemia (2185 queixas, em 2019). O número mais baixo de queixas apresentadas aconteceu em 2018, com 1920 queixas.

A tendência mantém-se também entre os mais novos. Na verdade, a faixa etária compreendida entre os 13 e 25 anos, acusa a diminuição: 500 denúncias em 2022 (dados provisórios).

Crê a PSP que, para este decréscimo, contribui o trabalho de proatividade do seu pessoal, “nomeadamente através das ações de sensibilização junto da comunidade escolar”. Di-lo fonte daquela força de segurança, vincando que a diminuição das queixas “é muito relevante”. E conta que, naquelas ações, se abordam “os tipos mais comuns de violência, desde a física, passando pela restrição ou proibição de contactos com outras pessoas do círculo de amigos da pessoa violentada, restrições à forma de vestir ou de conviver, etc.”.

Nos últimos cinco anos, entre os mais novos, ou seja, entre os 13 e 25 anos, a PSP registou mais de 3000 denúncias, sendo 2019 (845) o período com mais queixas. Em 2018, o registo foi de 703; em 2020, foi de 688; e, em 2021, foi de 733. E a PSP deixa o apelo: “As vítimas, ou qualquer outra pessoa que seja testemunha, devem apresentar queixa nas esquadras ou procurar ajuda junto das equipas da Escola Segura ou das equipas de Proteção e Apoio à Vítima.”

No âmbito do programa Escola Segura, no último ano letivo, a PSP desenvolveu 1297 ações de sensibilização relacionadas com a violência no namoro, com a participação de 24 mil alunos.

A Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) considera essencial vincar que, tal como na violência doméstica, nestes casos há uma “cifra negra” que pode esconder uma realidade mais preocupante do que a revelada pelo número de denúncias. Daniel Cotrim, psicólogo e responsável pela área de violência doméstica e de género da APAV, alertando que o decréscimo de denúncias possa não significar diminuição deste tipo de crime, afirma: “Acreditamos que o número negro pode ser mais elevado. Por outro lado, haver uma diminuição do número de denúncias é importante, porque significa que as campanhas de prevenção e sensibilização estão a surtir efeito.”

O fenómeno da violência no namoro – diz o psicólogo – imita, muitas vezes, o da violência doméstica. Também aqui o controlo constante da vítima por parte do agressor dificulta a denúncia. Na verdade, como aponta, “há muitas jovens que nem dizem aos pais que namoram, quanto mais denunciar”, o que “é mais uma barreira”. No século XXI continua a haver raparigas de 12, 13, 14 ou 15 anos a dizerem que os pais não as deixam namorar e, “se souberem, ficam de castigo”. Esta desigualdade em relação aos rapazes e o discurso patriarcal inibidor continuam a vincar muito esta forma de violência. Por isso, é necessário envolver as famílias e as comunidades nestes processos. E muitas mentalidades devem mudar, para proveito dos jovens e para a realização do bem comum, nas melhores condições de tolerância, de igualdade e de bem-estar.

As vítimas são maioritariamente do género feminino e raramente são as próprias a pedir ajuda. À APAV os casos chegam por via de professores que se apercebem das relações violentas ou porque a vítima lho confidenciou.

E Daniel Cotrim observa que uma das formas mais comuns de agressão às vítimas de violência no namoro é o controlo, controlo nas redes sociais, na forma de vestir, nas amizades, com quem se pode falar. Outra forma de violência no namoro é o ciúme, tolerado como “manifestação romântica”. É frequente, na violência sexual, a pressão para ter relações, forçando a vítima com a ameaça de, “se não fizer, vai ser contado na escola e aos amigos”. E há a violência na internet, por exemplo, com a ameaça de, se quiser terminar, serão divulgadas fotos e conversas íntimas.

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A violência no namoro é um ato (ou um conjunto de atos) de agressão, pontual ou contínua, cometida por um dos parceiros (ou por ambos) numa relação de namoro, com o fito de controlar, dominar ou ter mais poder do que o outro envolvido na relação.

Esta violência assume várias modalidades. A mais óbvia é a violência física e acontece quando há empurrões, manietação, lançamento de objetos contra o outro, bofetadas, pontapés, murros ou mesmo ameaça de uso da força ou de agressão.

A violência verbal, que pode anteceder a violência física, acompanhá-la ou ser-lhe subsequente, ocorre, por exemplo, quando há nomes inconvenientes ou gritos, críticas humilhantes ou comentários demolidores, intimidação ou ameaça.

A violência sexual consiste em obrigar o parceiro à prática de atos sexuais (sexo anal, oral e/ou vaginal), ou a carícias.

A violência psicológica acontece quando o parceiro parte ou estraga objetos ou roupa da outra pessoa, lhe controla a maneira de vestir, lhe vigia o que faz nos tempos livres e ao longo do dia, lhe liga constantemente ou lhe envia mensagens ou ameaça terminar a relação como estratégia de manipulação.

A violência social ocorre, por exemplo, quando o parceiro humilha o outro, o envergonha ou tenta denegrir a sua imagem em público, especialmente junto dos familiares e amigos, ou mexe, sem consentimento, no seu telemóvel, nas suas contas de correio eletrónico ou na sua conta do Facebook ou de outras redes sociais, e o proíbe de conviver com os amigos e/ou com a família.

Podem acontecer diferentes formas de violência na mesma relação. Na maior parte das vezes, vai do rapaz para a rapariga, mas também funciona em sentido contrário ou em sentido recíproco, tal como sucede na relação entre pessoas do mesmo sexo, sobretudo quando uma das partes tem resistências na família ou esta não sabe do que se passa (aí a ameaça é constrangedora).

Todas as formas de violência no namoro têm um escopo: magoar, humilhar, controlar e assustar. 

A violência nunca é um gesto de amor. E o ciúme nunca pode ser pretexto para a violência. Aliás, a violência no namoro é insustentável, pois o namoro não é propriamente constitutivo de vínculo.

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No entanto, a maioria dos jovens acha legítima a violência no namoro, o que é assustador.

Estudo da UMARUnião de Mulheres Alternativa e Resposta, publicado em 12 de fevereiro de 2021 (a mentalidade não terá mudado significativamente desde então), mostrava que 67% dos jovens consideram legítima a violência no namoro, dos quais 26% dos jovens acham legítimo o controlo, 23% a perseguição, 19% a violência sexual, 15% a violência psicológica, 14% a violência através das redes sociais e 5% a violência física.

Entre estes quase cinco mil jovens, cuja média de idades é de 15 anos, 25% acham aceitável insultar durante uma discussão, outros 35% que é aceitável entrar nas redes sociais sem autorização, 29% que se pode pressionar para beijar e 6% entendem mesmo que podem empurrar/esbofetear sem deixar marcas.

No atinente às diferenças por género, é por parte dos rapazes que a legitimação é maior, com destaque para o comportamento “pressionar para ter relações sexuais”, em que a legitimação entre os rapazes (16%) é quatro vezes superior à das raparigas (4%).

Quase sete em cada dez jovens que participaram nesse estudo sobre violência no namoro acha legítimo o controlo ou a perseguição na relação e quase 60% admitiram já ter sido vítimas de comportamentos violentos.

No respeitante aos indicadores de vitimação, o estudo mostra que 58% dos jovens inquiridos admitiram já ter sofrido de violência no namoro, havendo 20% que admitiram ter sofrido violência psicológica, 17% terem sido vítimas de perseguição ou ainda 8% que foram vítimas de violência sexual. Os indicadores de vitimação mais frequentes são insultar durante uma discussão (30%), proibir de estar ou falar com os amigos (23%) ou incomodar/procurar insistentemente (17%). Também na vitimação há uma diferença de género, com uma prevalência de vítimas entre as raparigas, sobretudo na violência psicológica (22%), na perseguição (19%) ou no controlo (15%).

Tais dados foram apresentados durante um webinar sobre prevenção e combate à violência no namoro, promovido pela Comissão para a Igualdade de Género (CIG), no âmbito da campanha #NamorarSemViolência, criada pela então Secretaria de Estado para a Cidadania e a Igualdade, a propósito do dia de São Valentim.

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Os números lembram o que falta alcançar: que as relações saudáveis não sejam privilégio só de alguns, mas que sejam transversais na sociedade. Para tanto, há muito a fazer no refrescamento das mentalidades, das atitudes e dos comportamentos. Valores éticos são precisos.

2023.01.30 – Louro de Carvalho

A lógica do Reino dos Céus é contrária à logica do Mundo

 

Estava a rezar, na Missa deste dia 29 de janeiro, por alma do Padre Armando Menezes e, ao Salmo Responsorial, lembrei-me de que viria aí o Evangelho das Bem-aventuranças (na novena dos Felizes: makárioi, em Grego). E o pensamento voou. Foi com este Evangelho que entrei no Granjal, na Vila da Ponte e em Freixinho, a 1 de novembro de 1979, e foi este o último Evangelho que o Cónego José Cardoso leu no 4.º domingo do Tempo Comum no Ano A, a 29 de janeiro de 1984, pois faleceu no dia seguinte (30 de janeiro). Por isso, eu não podia omitir a meditação das Bem-aventuranças evangélicas, na esteira da literatura veterotestamentária e na linha de Cristo.

Obviamente, a Liturgia da Palavra do 4.º domingo do Tempo Comum no Ano A concita a reflexão sobre o Reino dos Céus (Reino de Deus) e a sua lógica, mostrando que o plano de Deus roda em sentido contrário à lógica do mundo. Aos olhos de Deus, são felizes os pobres, os humildes, os que se despem do egoísmo, do orgulho, dos próprios interesses. Deles é o Reino de Deus.

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Na 1.ª leitura (Sf 2,3; 3,12-13), Sofonias denuncia o orgulho e a autossuficiência dos ricos e dos poderosos e insta o Povo de Deus a converter-se à pobreza, não à miséria ou à pobreza imposta pela injustiça dos poderosos. O pobre (ptôkhós) é quem se entrega nas mãos de Deus com humildade e confiança, acolhe com amor o seu desígnio, é justo e solidário com os irmãos.

O profeta pregou em Jerusalém no tempo de Josias (entre 639 e 609 a.C.), que subiu ao trono com oito anos de idade). Na menoridade do rei, presidia aos destinos de Judá um Conselho Régio.

É uma época difícil para o Povo de Deus. Judá está submetida aos assírios (desde o pedido de ajuda de Acaz a Tiglat-Pileser III contra Damasco e a Samaria, no ano 734 a.C.), cuja influência condiciona todos os escalões da vida nacional, sofrendo a nação as consequências da invasão de costumes estranhos e de práticas pagãs. Paralelamente, o país saíra do reinado de Manassés (698-643 a.C.), que reconstruiu os lugares de culto aos deuses estrangeiros, erigiu altares a Baal, ofereceu o filho em holocausto, se dedicou à adivinhação e à magia e instalou no Templo de Jerusalém a estátua de Astarte. A isto acrescem as injustiças que se abatem sobre os pobres e desprotegidos. Os príncipes e ministros, abusando da autoridade, cometem arbitrariedades, os juízes são corruptos e os comerciantes especulam com a miséria.

Em contraste, o profeta sabe que Javé não continuará a pactuar com o pecado, que virá o Dia do Senhor, em que os maus serão punidos e a injustiça banida da terra. Porém, escaparão os humildes e os pobres, os que se mantiveram fiéis à aliança. Assim, o escopo de Sofonias não é anunciar o castigo, mas suscitar a conversão, passo necessário para a salvação.

O passo bíblico em apreço começa com o apelo à conversão, a qual significa, objetivamente, justiça e humildade. Os humildes, neste contexto, são os se entregam confiadamente nas mãos de Deus, Lhe seguem os passos, aceitam o seu plano e não se posicionam contra Ele. São os que praticam a justiça para com os irmãos e que, respeitando os direitos dos mais débeis, não cometem arbitrariedades. São os pobres das bem-aventuranças evangélicas, não uma categoria sociológica, mas os que estão na atitude de abertura a Deus e aos irmãos. No lado oposto estão os orgulhosos e autossuficientes, que exploram, que são injustos, corruptos e arbitrários. Só a conversão à humildade permitirá encontrar proteção no “dia da ira do Senhor” que se aproxima.

Em seguida, Sofonias apresenta o resultado do “dia da ira do Senhor”. Surgirá o “resto de Israel”. Os orgulhosos, arrogantes e prepotentes serão banidos do meio do Povo de Deus e ficará um resto humilde e pobre, que se entregará nas mãos do Senhor, constituindo uma espécie de viveiro de reflorescimento da nação. Daí, ser pobre será a atitude de quem tem o coração aberto a Deus e é justo na relação com os outros. Na boa tradição bíblica, os pobres são pessoas pacíficas, humildes, piedosas, que confiam em Deus e Lhe obedecem e que são justos e solidários com os irmãos.

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Na 2.ª leitura (1Cor 1,26-31), Paulo denuncia a atitude dos que põem a esperança e segurança em pessoas ou em esquemas humanos, com atitudes de orgulho e de autossuficiência, e convida os crentes a encontrar em Cristo crucificado a verdadeira sabedoria que conduz à salvação e à vida.

Face a alguns equívocos sobre o valor dos mestres cristãos e à pretensa tentação de equiparar o cristianismo a uma escola filosófica, o apóstolo porfia aos Coríntios que entre os cristãos não há senão um mestre, que é Jesus Cristo, e que a experiência cristã não é a busca de uma filosofia brilhante que desemboque na sabedoria, entendida à maneira grega. Aliás, Cristo não se distinguiu pela arte oratória ou pela lógica do discurso filosófico. Ele é o Deus que, por amor, veio ao encontro dos homens e lhes ofereceu a salvação, através do dom da vida.

Por isso, o caminho cristão é a adesão a Cristo crucificado – o Cristo do amor e do dom da vida. Nele manifesta-se, de forma desconcertante, mas plena e definitiva, a força salvadora de Deus. Em mais ninguém se deve procurar a verdadeira sabedoria que conduz à vida eterna.

Considera Paulo que é difícil ver – do ângulo humano – num pobre galileu condenado a morte infamante (“escândalo para os judeus e loucura para os gentios”) uma proposta credível de salvação. Mas a lógica de Deus não é a lógica dos homens. “O que é loucura de Deus é mais sábio que os homens; e o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens” (1Cor 1,25).

Como exemplo da lógica de Deus, o apóstolo aponta o caso da comunidade cristã de Corinto: não abundam ali os ricos, nem os poderosos, nem os de boas famílias, nem os intelectuais, nem os aristocratas; ao invés, a maioria dos ali residentes são escravos, trabalhadores, gente simples e pobre. Não obstante, como previu Sofonias, Deus escolheu-os e chamou-os. E a vida de Deus manifestou-se nessa comunidade de desclassificados. Para a consecução dos seus projetos, os homens escolhem os ricos, os fortes, os mais bem preparados intelectualmente, os que provêm de boas famílias, os que asseguram maiores probabilidades de êxito do ponto de vista humano. Deus, porém, elege os pobres, os débeis, os que aos olhos do mundo são ignorados ou desprezados e, através deles, manifesta o seu poder e intervém no mundo. Sendo esta é a lógica de Deus, não surpreende que o poder salvador de Deus se tenha manifestado na cruz de Cristo.

Por isso, os Coríntios são convidados a não colocar a esperança e a segurança em pessoas ou em esquemas humanos de sabedoria, pois a sabedoria humana é incapaz de salvar, e, ao produzir autossuficiência, leva o homem a prescindir de Deus e a resvalar por caminhos de morte. Em contrapartida, os coríntios devem colocar a sua esperança e segurança em Cristo, que deu a vida por amor. É na loucura da cruz, na vida dada até às últimas consequências, que se exprime a radicalidade do amor de Deus, de oferta da salvação ao homem. A cruz manifesta a sabedoria de Deus, sabedoria que deve atrair o olhar e apaixonar o coração dos Coríntios e de todos nós.

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O Evangelho (Mt 5,1-12) apresenta a magna carta do Reino. Proclama bem-aventurados os pobres, os mansos, os que choram, os que procuram cumprir fielmente a vontade de Deus, porque vivem na lógica do Reino; e recomenda aos crentes a misericórdia, a sinceridade, a luta pela paz, a perseverança ante das perseguições: atitudes que correspondem ao compromisso pelo Reino.

Depois de dizer quem é Jesus e de definir a sua missão, Mateus apresenta a concretização dessa missão. Com palavras e com gestos, Jesus fala do Reino aos discípulos e às multidões.

Uma caraterística importante do Evangelho de Mateus é a importância dada aos ditos de Jesus. Ao longo deste Evangelho aparecem cinco longos discursos (cf Mt 5-7; 10; 13; 18; 24-25), em que Mateus junta ditos e ensinamentos proferidos por Jesus em várias ocasiões e contextos. Terá o autor do primeiro Evangelho visto nesses discursos a nova Lei, destinada a substituir a antiga Lei dada ao Povo por meio de Moisés e escrita nos cinco livros do Pentateuco.

O primeiro discurso de Jesus – de que o trecho em referência é a primeira parte – é conhecido como o sermão da montanha (Mt 5-7). Agrupa um conjunto de palavras de Jesus que Mateus colecionou com o intuito de propiciar à sua comunidade uma série de ensinamentos básicos para a vida cristã, configuradores de um novo código ético, que superasse a antiga Lei que guiava o Povo de Deus. Mateus situa esta intervenção de Jesus no cimo de um monte, transportando-nos para o monte da Lei (Sinai), onde Deus Se revelou e deu ao Povo a antiga Lei. Agora é Jesus, que, no monte, dá ao novo Povo de Deus a Lei que o deve guiar ao Reino. As bem-aventuranças que Mateus põe na boca de Jesus são diferentes das apresentadas por Lucas (cf Lc 6,20-26). Mateus tem nove bem-aventuranças, enquanto Lucas tem quatro. Além disso, Lucas prossegue com quatro maldições, ausentes do texto mateano. Outras caraterísticas da versão de Mateus são a espiritualização (os pobres de Lucas são, em Mateus, os pobres em espírito) e a aplicação dos ditos originais de Jesus à vida da comunidade e ao comportamento dos cristãos, sendo provável que a versão lucana seja mais fiel à tradição original e que o texto de Mateus seja mais trabalhado.

As bem-aventuranças como fórmulas da tradição bíblica e judaica aparecem nos anúncios proféticos de alegria futura, nas ações de graças pela alegria presente e nas exortações a uma vida sábia, refletida e prudente. Contudo, definem sempre a alegria doada por Deus.

As bem-aventuranças evangélicas devem ser entendidas no contexto da pregação do Reino. Jesus proclama felizes os que estão em situação de debilidade, de pobreza, porque Deus está a ponto de instaurar o Reino e a situação destes pobres mudará radicalmente. São bem-aventurados porque, na fragilidade e dependência, estão de espírito aberto e coração disponível para acolher a salvação e que Deus lhes oferece em Jesus. As quatro primeiras bem-aventuranças de Mateus relacionam-se entre si, dirigindo-se aos pobres: a segunda, terceira e quarta são desenvolvimentos da primeira, que proclama: “felizes os pobres em espírito”. Saúdam a felicidade dos que se entregam confiadamente nas mãos de Deus e procuram fazer sempre a sua vontade, dos que deixam de colocar a sua confiança e esperança nos bens, no poder, no êxito, nos homens, para esperar e confiar em Deus e dos que renunciam ao egoísmo e se despojam de si próprios, para estarem disponíveis para Deus e para os irmãos, servindo e partilhando.

Os pobres não são os privados de bens para o seu côngruo sustento, mas os que se despojam, mesmo do que lhe faça míngua para acolherem Deus e servirem o próximo. Os mansos não são os que suportam passivamente as injustiças, mas os que recusam a violência. Os que choram são os que vivem no sofrimento provocado pela injustiça e pela miséria. Os famintos e sedentos de justiça são os totalmente fiéis aos compromissos assumidos para com Deus e para com os irmãos.

O segundo grupo de bem-aventuranças está mais orientado para definir o comportamento cristão. Os misericordiosos são os que têm um coração capaz de se compadecer, de amar sem limites, de ir ao encontro dos irmãos e estender-lhes a mão, mesmo quando eles falharam. Os puros de coração são os que têm um coração honesto e leal, que não pactua com a duplicidade e o engano.

Os pacíficos são os que recusam a violência e a lei do mais forte nas relações humanas e os que procuram ser – até com o risco da vida – instrumentos de reconciliação entre os homens. Os perseguidos por causa da justiça são os que lutam pela instauração do Reino, desautorizados, humilhados, agredidos, marginalizados pelos que praticam a injustiça, que fomentam a opressão, que constroem a morte. E a última bem-aventurança constitui a exortação de Mateus aos membros da comunidade que têm a experiência da perseguição, por causa de Jesus, a que resistam ao sofrimento e à adversidade. É, na prática, uma aplicação concreta da oitava bem-aventurança.

Enfim, as bem-aventuranças deixam uma mensagem de esperança e de alento aos pobres e débeis. Anunciam que Deus os ama e que está do lado deles. E asseguram que eles vivem na dinâmica do Reino onde encontrarão a felicidade e a plenitude da vida.

2023.01.39 – Louro de Carvalho

domingo, 29 de janeiro de 2023

Ainda não está construído o altar-palco da JMJ, mas já é famoso

 

A opinião pública está alarmada com a previsão de custos do altar-palco – no Parque Tejo, junto ao rio Trancão – de onde o Papa Francisco presidirá às celebrações do encerramento da próxima Jornada Mundial da Juventude (vigília de oração e missa) que se realizará em Lisboa, de 1 a 6 de agosto deste ano. Com efeito, a estrutura e as suas fundações comportarão, se não houver revisão do projeto, cerca de seis milhões de euros, a expensas da Câmara Municipal de Lisboa (CML).

Todavia, está previsto um outro palco no Parque Eduardo VII para a missa de abertura da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), sob a presidência do Cardeal Patriarca de Lisboa, cujo custo rondará os dois milhões de euros, também a expensas da mesma CML.

Fazem-se as contas, juntando ao preço base destas edificações o referente ao imposto sobre o valor acrescentado (IVA), que, tratando-se de obras a cargo de entidades públicas, não representa despesa sem retorno para o Estado. Na prática, é apenas um custo de oportunidade.

Em termos de gestão de dinheiros públicos e de equipamentos, no caso uns palcos-altares, questiono-me se eram necessárias duas estruturas deste jaez, uma no Parque Eduardo VII e outra no Parque Tejo. Se o mais contém o menos – e é possível que o número se participantes no ato inaugural da JMJ se aproxime bastante do dos participantes nos atos do encerramento – porque não se optou apenas pela estrutura do Parque Tejo? O mesmo não digo do atinente ao local, que, pelos vistos, já existe, para a celebração do Papa com os voluntários, após o encerramento formal da JMJ, pois aí o número de participantes será bastante reduzido.

Argumenta a CML que se trata de investimento em estruturas que servirão, no futuro, para outros eventos, mas não diz quais, nem de que género. E os organizadores de eventos dizem que não temos eventos com assistência de mais de 80 mil pessoas.

Pensa o Governo – e bem – tal como a CML e a Câmara Municipal de Loures que a JMJ serve de pretexto para a requalificação daquela zona dos concelhos de Lisboa e de Loures, ficando para o futuro um belo parque urbano.      

Voltando ao altar-palco, é de referir que, sendo uma estrutura para eventual serventia futura, seria conveniente não a vincular, de todo, ao momento da JMJ. Assim, elementos religiosos, cadeiras, bancos, etc. não devem ser fixos, mas ser colocados para o momento e ser retirados sem dano para a estrutura. E não se justifica a dimensão: 1300 concelebrantes em palco asfixiam o Papa!

Por outro lado, deviam as empresas candidatas à construção das estruturas e das fundações não se aproveitar da ocasião para meterem a mão na bolsa do erário público. E os responsáveis deviam ter a capacidade de evitar o tentador oportunismo. É certo que tudo é caro em Lisboa, mercê da natureza dos terrenos, neste caso, por se tratar de uma zona degradada e pantanosa, e da tentação especulativa. Mas os custos anunciados, se não há forte probabilidade de utilização futura, raiam o escândalo, face à magreza de recursos das nossas populações, especialmente em tempo de crise provocada pela inflação e pela guerra na Europa. E espanta-me que não estivessem ao corrente dos custos tanto o chefe da estrutura de missão para a JMJ, José Sá Fernandes, como o presidente da Fundação JMJ, D. Américo Aguiar. Não se entende esta falta de articulação entre parceiros do mesmo projeto.

A CML declarou ter seguido as indicações da Igreja, enquanto o Vaticano se demarca do projeto. E penso que nem a Igreja, isto é, D. Américo Aguiar, tem poder para vincular a CML, nem esta necessita de aceitar literalmente todas as indicações. Há o que se chama negociação.  

Dizem agora que vão rever os projetos. Espero que ultrapassem o problema da falta de tempo e que não ponham em causa a segurança das estruturas, desde logo através da drenagem, da impermeabilização e da compactação do terreno e da solidez das fundações.

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A enormidade de custos, que os responsáveis reconhecem, não invalida a necessidade e a oportunidade da obra, sobretudo de um altar-palco no Parque Tejo, para a JMJ. E não vale a pena derramar lágrimas de crocodilo pelos pobres, pelo dinheiro que não há. A CML e o Estado Português comprometeram-se, ao mais alto nível, com a JMJ em Lisboa. Isto aconteceu em janeiro de 2019. Já estava em vigor a Constituição que nos rege. É certo que as circunstâncias mudaram, mas não mudaram o compromisso. Houve tempo mais do que suficiente para voltarem atrás. Preferiram, no entanto, respeitar a boa relação com a Santa Sé e cuidar da imagem externa do país, bem como aproveitar o ensejo para requalificar uma zona degradada na capital e arredores. Há que assumir o ónus do evento, que é único no país.

A este propósito, lembro-me de que, numa festa-encontro, em Lamego, dos alunos e professores do Seminário de Lamego (seminário maior) com os do Seminário de Resende (seminário menor), a meio da tarde, o ecónomo veio ter comigo a pedir que fosse com ele à padaria da Rina comprar pão. É óbvio que a satisfação de tal pedido era irrecusável.

Entretanto, o ecónomo confidenciou-me: “Gastou-se tanto dinheiro com a festa.” E eu retorqui: “Pois, mas quem organiza festas tem de arranjar forma de as pagar.” Lá seguimos com o pão para o jantar. E tudo correu bem, na maior alegria, sobretudo dos miúdos de Resende, que não se deram conta das preocupações do ecónomo do seminário maior.  Enfim, quem quer festas paga-as!

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Juntamente com as críticas à despesa excessiva numa Igreja pobre à maneira do Papa Francisco e num Estado que mal arranja dinheiro para os seus encargos vitais, surgem os pruridos conexos com a índole aconfessional do Estado nos termos da Constituição da República Portuguesa (CRP). Há quem aponte a incongruência destes encargos do Governo e dos municípios com a laicidade do regime republicano, falando mesmo em laicismo, raiando a indignação.

Há constitucionalistas a defender que o Governo e os municípios não devem empenhar-se nesse tripo de construções, invocando a separação entre o Estado e as Igrejas; e há constitucionalistas a sustentar que a aconfessionalidade do Estado, seja no quadro da administração central, seja no da administração regional ou local, não impede a cooperação, desde que o tratamento seja equânime para as diversas confissões religiosas. Aliás, é este o espírito da lei da liberdade religiosa (Vejam-se os artigos 2.º e 5.º da Lei n.º 16/2001, de 22 de junho, cuja última alteração lhe foi introduzida pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro): a não discriminação e a cooperação.

Aliás, nos termos da CRP, o Estado português não é explicitamente laico, no sentido que lhe deu o republicanismo francês, transferido para a nossa I República com o bom senso da separação Igreja-Estado, mas imbuído do espírito anticlerical, da ideia de que a religião acabaria em breve, mas que era lícito a cada um ter as suas convicções religiosas e exercer o culto nos lugares próprios (proibido nos lugares públicos). Porém, não vale a pena dizer que o Estado é laico, mas a sociedade é religiosa (que também não o é de todo atualmente, se é que alguma vez o foi).

Por definição da CRP, Portugal “é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária” (artigo 1.º). Baseia-se “na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas” (cf artigo 2.º). A única referência a algo parecido com a laicidade vem no artigo 43.º (liberdade de aprender e ensinar): “O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas” (n.º 2); e “o ensino público não será confessional” (n.º 3).           

A este respeito, é de atender ao escrito por Filipe Correia, editor do Expresso, no Expresso Curto de 26 de janeiro, estribado na opinião de Tiago Serrão, constitucionalista e docente na faculdade de Direito da Universidade de Lisboa:

“A expressão ‘Estado laico’ não consta, em termos literais, da Constituição, mas é o que resulta da mesma quando se alude à separação das igrejas e outras comunidades religiosas da pessoa coletiva pública Estado. A jurisprudência do Tribunal Constitucional corrobora esta leitura […] Veja-se, por exemplo, o Acórdão 544/14, no qual se alude a uma neutralidade dos poderes públicos, imposta pela Constituição, embora, naturalmente, não em termos rígidos.”

Aquele acórdão, de 15 de Julho de 2014, explicita: “[…] a Constituição exige dos poderes políticos a neutralidade em matéria religiosa, num Estado laico e não confessional, com expressão no princípio da separação entre as igrejas e outras comunidades religiosas e o Estado (artigo 41.º, n.º 4) […]. E o n.º 4 do artigo 41.º estipula: “As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto.”

Sabemos da neutralidade colaborante portuguesa, por exemplo na Guerra do Golfo (1990-91)!

O regime dos Estados Unidos da América (EUA) é republicano e os Chefes de Estado juram sobre a Bíblia e clamam “God bless America!” e tem o dia de Ação de Graças. Por sua vez a França, tão radicalmente laica, financia as obras de restauro das catedrais. Por isso, o laicismo não é um imperativo do republicanismo. Existe em ditaduras e monarquias e não em algumas repúblicas.

Quanto à JMJ, a despesa é necessária. Importa que seja mínima e que haja retorno significativo.

De laicismo, como luta pelo bem-estar do povo (láos, em Grego), é que Portugal precisa!

2023.01.29 – Louro de Carvalho

sábado, 28 de janeiro de 2023

Protestos dos professores e obrigatoriedade de serviços mínimos

 

Já é proverbialmente conhecida a aguda insatisfação dos professores, que está a atingir limites inéditos na duração das greves e um novo pico do volume nas manifestações.

Queixam-se os educadores de infância e os professores (do 1.º ano ao 12.º), cujo estatuto é comum, da não contagem integral, para progressão na carreira, do tempo de serviço que esteve congelado (de 9 anos, 4 meses e dois dias, foram contados apenas 2 anos, 9 meses e 18 dias); das constrições no acesso aos dois níveis superiores da avaliação do desempenho docente, do estabelecimento de quotas para o acesso do 4.º para o 5.º escalão e do 6.º para o 7.º, com a subsequente impossibilidade de um imenso número de docentes atingirem o topo da carreira; da escandalosa magreza salarial, sem qualquer apoio pecuniário à fixação de residência longe de casa ou de subsídio de deslocação, face ao custo das rendas de casa, dos automóveis, dos combustíveis e das portagens; da excessiva e inútil carga burocrática que enxameia a escola e que leva a prestar informação quase permanente a todos os escalões da administração e dos clientes da Educação, faltando o tempo para a docência; da abusiva interferência dos poderes e dos pais na prática letiva; da não existência de condições específicas para a aposentação, como o requer esta profissão de desgaste; da ginástica do Ministério da Educação (ME), pela qual, a pretexto de reduzir a área dos atuais quadros de zona pedagógica (QZP), pretende que os professores possam lecionar em vários estabelecimentos da mesma comunidade intermunicipal (CIM) ou da mesma área metropolitana (AM); e da ambiguidade da tentativa de seleção de alguns professores por conselhos locais de diretores, de acordo com algum projeto local, podendo não ser respeitada a lista nacional de graduação profissional, apesar do desmentido do Governo de que tal desrespeito nunca esteve em equação, tal como a seleção de professores pelas câmaras municipais.

Tudo isto está a acontecer em modo cada vez mais agravado, porque a classe docente foi progressivamente desacreditada, desrespeitada e vilipendiada, pelo menos desde a governação de José Sócrates (embora a semente haja sido lançada, de mansinho, nos dois governos anteriores, como já cheguei a explicar). É por isso que a reivindicação de fundo é “respeito”.   

Face a esta onda de protesto, a generalidade da comunicação social, nomeadamente a conotada com a direita clássica, e alguns comentadores dizem estar do lado dos professores, quando, em 2005-2008, teciam rasgados elogios à política educativa protagonizada pela ministra de Educação, Maria de Lurdes Rodrigues. Os professores trabalhavam pouco e estavam, havia 30 anos, sem qualquer tipo de avaliação do desempenho docente, o que não era verdade.

“Os professores têm carradas de razão” – dizem. Mas temos de ser francos. Hoje a razão por que estão a favor dos professores é que, ao invés de 2005 a 2008, em que o Governo estava em estado de graça pelas reformas estruturais (?) se avizinhavam, o atual Governo está desgastado, um largo setor da opinião pública, não gosta de António Costa e “espantalha” o Governo com a enumeração dos casos e casinhos graves, mas que sempre existiram (não é o caso dos cidadãos, que esses contam bem pouco). Por outro lado, está em jogo a febre dos dinheiros europeus. Quem não anseia por vir a administrá-los a seu jeito (talvez não bom), diferente do jeito deste Governo?

Alguns táticos defensores da luta dos professores avisam que as greves devem ser suspensas e que se devem intensificar as negociações, sempre em ambiente de boa-fé de todas as partes. É que a população pode cansar-se e voltar-se contra os professores e eles perderem a razão.

Ora bem, os professores só perdem a razão, se o grosso das reivindicações não for satisfeito. Por exemplo, há dinheiro para tudo (juízes, TAP, Caixa Geral de Depósitos, Novo Banco, pagamento a lesados do BPN, palcos de 6 milhões de euros, etc.), mas (Ditoso “mas”!) não há dinheiro para salários decentes dos professores, para a dignificação salarial da carreira docente, para a contagem integral do tempo de serviço, para a redução da carga burocrática ao mínimo necessário!  

Muitos defensores dos docentes estão de acordo com as queixas que levam aos protestos, mas não têm onde deixar os filhos, quando não há aulas. É pena que a escola, em vez de se focar na missão de ensinar e na de emparceirar com os pais na tarefa da educação, se tenha transformado num depósito de crianças, de adolescentes e de jovens. Deveria o Estado e a sociedade civil encontrar forma de ocupar as crianças quando dos pais estão a trabalhar e quando a escola não tem de os acompanhar no ensino, no estudo e noutras atividades educativas. Já repararam que, ao invés de outros tempos, a maior parte dos estabelecimentos escolares, pelos muros e pelo gradeamento, parece um convento ou um quartel militar? E poucos têm uma porta com saída direta para a rua.

É óbvio que nada tenho contra a possibilidade de centros de atividade de tempos livres (ATL) funcionarem nas instalações escolares, mas com outros profissionais. E não vale a pena dourar a pílula: os professores não são pais, nem mães, nem amas dos alunos. Dedicação, clareza, empatia, proximidade pedagógica, sim, mas não mais!       

Face aos protestos – as greves não estão a paralisar as escolas há tanto tempo como se julga, por serem feitas a determinados tempos ou por distritos ou em dias singelos –, o ME pediu a definição de serviços mínimos para a greve do Sindicato de Todos Os Profissionais da Educação (STOP) que se arrasta desde 9 de dezembro e que não tem data para terminar. E o tribunal arbitral, constituído para decidir se havia lugar a limitação do direto à greve, aceitou e definiu um conjunto mínimo de serviços a garantir, diariamente, nas escolas, envolvendo professores e funcionários.

Para isso, o ME invocou a “duração e imprevisibilidade da greve decretada pelo Sindicato de Todos os Profissionais da Educação e consequências acumuladas para os alunos, no que concerne a sua proteção, alimentação e apoio em contextos de vulnerabilidade”.

A decisão, tomada por unanimidade, prevê, por exemplo, que sejam garantidos apoios aos alunos com necessidades especiais e a menores em risco, bem como o serviço de portaria, a vigilância e segurança dos alunos no espaço escolar e também o funcionamento do refeitório.

Também queria o ME a definição de serviços mínimos que garantissem um número de horas diárias de aulas, mas esta parte não foi aceite. Porém, foi-se mais longe do que no governo de Passos Coelho, em que os serviços mínimos se cingiam as exames e à avaliação sumativa interna das aprendizagens, o que então se criticava na alegação de que a principal função da escola não é avaliar, mas ensinar. É certo que a possibilidade de estabelecer limites ao direito à greve está prevista na lei, sempre que esteja em causa a “satisfação de necessidades sociais impreteríveis”, como serviços médicos, higiene pública, telecomunicações ou transportes (veja-se artigo 537.º do Código do Trabalho). Porém, é de perguntar se faz sentido haver serviços mínimos em Educação.

A greve do STOP abrange, desde o início do ano, professores e funcionários (não percebo como pode um sindicato de professores decretar greve de outros funcionários, que têm os seus sindicatos) e os grevistas têm optado por parar o dia ou só em parte do serviço, levando a que algumas escolas encerrem à vez, total ou parcialmente, por insuficiência de funcionários.

Tem sido notícia que professores pagam a funcionários para fazerem greve, de modo que a escola esteja encerrada. É uma situação não inédita. Com efeito, já há muitos anos, havia escolas em que professores se quotizavam para pagar os dias de greve aos funcionários. Porém, essas greves eram decretadas pelos respetivos sindicatos, que não sindicatos de professores, mas da função pública.   

***

Entretanto, milhares de profissionais das escolas (o STOP estima 100 mil) estiveram em protesto em Lisboa, a 28 de janeiro, garantindo que os serviços mínimos não irão acabar com a greve por tempo indeterminado, que começou a 9 de dezembro, e exigindo que o Presidente da República (PR) “tome uma posição de uma vez por todas”, face aos problemas que assolam o ensino.

Na verdade, o PR disse, na qualidade de professor, que os professores têm reivindicações que devem ser ouvidas, que o problema não é só do ME, mas de todos o Governo, e que é preciso ver, com o ministro das Finanças o que é possível fazer – posição que foi criticada por alguns observadores, nomeadamente alguns constitucionalistas, por ingerência na área do Governo.   

O decretar de serviços mínimos foi visto como um boicote pelos professores e por todo o pessoal escolar, que se manifestaram em Lisboa. “É greve porque é grave”, e “quem dorme em democracia, acorda em ditadura”, ostentavam alguns cartazes da manifestação de professores.

“Habituem-se à nossa luta”, “a lutar também estamos a ensinar” ou “estou em luta pela educação”, foram algumas das palavras de ordem entoadas na manifestação.

É emblemático (há tantos casos como este) a indignação de uma professora de Matemática, do Norte, deslocada no Alentejo, que tem 49 anos, recebe 1000 euros, é contratada há 16 anos e tem apenas 11 anos de tempo de serviço, pois esteve no ensino profissional, que não é contabilizado.

Por fim, registo duas coisas curiosas, que dão que pensar.

Um dos cartazes em exibição mostra Sócrates a dar um recado ao primeiro-ministro: “Ó Costa, a culpa não é tua; é minha e da Maria de Lurdes.” Dá que pensar…

No Japão, os únicos cidadãos que não se inclinam diante do Imperador são os professores, porque, se não houvesse professores, não haveria imperadores. É bom que os Portugueses pensem nisto.

2023.01.28 – Louro de Carvalho

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

O nefasto fenómeno da “aporofobia”

 

O livro O Mundo pelos olhos da língua, de Manuel Monteiro, editado pela Objetiva, em novembro de 2022, dedica um capítulo ao fenómeno da aporofobia, que está na raiz de alguns fenómeno de racismo e de xenofobia.

Diz Manuel Monteiro que, efetivamente, não repelimos os estrangeiros ou os de outras etnias como tais, mas por serem pobres e, por consequência, não nos trazerem qualquer mais-valia, antes constituírem um estorvo para os nossos interesses. E, na verdade, nós absorvemos, atualmente os estrangeiros e os de outras etnias que ostentem riqueza, poder e prestígio (Veja-se como tratamos os turistas estrangeiros e os detentores de grandes fortunas, mesmo que de etnias diferentes). Porém, temos dificuldade em incluir no nosso ambiente político, social, económico e cultural os pobres e acusamo-los de serem culpados da sua condição de vida e responsabilizamo-los por todos os desmandos que se verificam entre nós, enquanto vamos clamando que não somos racistas, que não somos xenófobos, mas que somos democratas, cosmopolitas, cidadãos do Mundo.   

Assim, “aporofobia” (do Grego áporos, sem recursos, indigente, pobre; e phóbos, medo, aversão, fuga) significa medo, rejeição, hostilidade e aversão às pessoas pobres e à pobreza.

O conceito de “aporofobia” foi proposto, nos anos 1990 (mais exatamente em 1995), pela filósofa Adela Cortina, professora catedrática de Ética e Filosofia Política da Universidade de Valência, para diferenciar essa atitude da xenofobia, que só se refere à rejeição do estrangeiro, e do racismo, que é a discriminação por grupos étnicos. A diferença entre aporofobia e xenofobia ou racismo é que não se discrimina nem se marginaliza, socialmente, o imigrante ou o membro de outra etnia, quando tem recursos económicos ou relevância social e mediática.

Em 2020, a editora brasileira Contracorrente editou, em Português do Brasil, o livro Aporofobia. A aversão ao pobre um desafio para a democracia, da autoria de Adela Cortina. E explicava que o neologismo “aporofobia” fora escolhido como a palavra do ano 2017 pela Fundación del Español Urgente (Fundéu BBVA) e incorporado ao Diccionario de la lengua española no mesmo ano. Segunda a autora, os que produzem verdadeira fobia são os pobres. Os estrangeiros com dinheiro não produzem rejeição. Ao invés, espera-se que tragam recursos e são recebidos com entusiasmo. Aqueles que inspiram desprezo são os pobres, os que parecem não poder oferecer nada de bom, sejam migrantes, sejam refugiados políticos, sejam trânsfugas.

E, no entanto, não havia nome para esta realidade social inegável. Face a tal situação, Adela Cortina procurou no léxico grego a palavra “áporos”, que significa pobre, e cunhou o termo “aporofobia”. No livro, além de definir e contextualizar o termo, explica a predisposição que todos nós temos para esta fobia e propõe formas de a superar, através da educação, da eliminação das desigualdades económicas, da promoção de uma democracia que leva a igualdade a sério e da promoção de uma hospitalidade cosmopolita. Enfim, o conceito desenvolvido por Adela Cortina evidencia o que a filósofa chama de sistémica rejeição da pobreza e das pessoas sem recursos.

A autora estabelece as fronteiras conceituais entre xenofobia e aporofobia, indicando o apreço xenofílico pelos milhões de turistas estrangeiros que aportam, anualmente, aos países da Europa, provindos de países e de regiões de diversidade étnica, racial, linguística, religiosa, fortalecendo a indústria económica do turismo em cada país do continente. A estes turistas capazes de mover a economia a Europa rende-se com mimos e com possibilidades variadas de lazer e de cultura, para os seduzir com a possibilidade do retorno breve.

Em contraste, grassa a milenar hospitalidade ocidental convertida em ódio, quando se trata do acolhimento aos refugiados da guerra, da miséria e da fome, provenientes do outro lado do Mediterrâneo, mais acentuadamente a partir de 2007, após o início dos conflitos bélicos em países da Ásia e da África, notadamente desde 2011 com o advento da guerra na Síria, o que instalou – talvez consolidadamente – novos e arrebicados populismos e nacionalismos.  

A xenofobia como rejeição do estrangeiro, de raça ou etnia distinta, coexiste, com a misoginia, com a cristianofobia, com a islamofobia, com a homofobia, instaladas como patologias sociais, milenares, necessitando de reconhecimento e de intervenção para erradicá-las. Porém, na raiz dessas modalidades de fobias sociais está a aporofobia, a rejeição do pobre, do que não participa no jogo político-económico senão para demandar, para exigir atenção do Estado e do contrato político, sem possibilidade de devolução financeira. Esta aporofobia representa um atentado diário, universal, quase invisível, contra a dignidade de pessoas concretas, às quais o preconceito é direcionado e vinculado a caraterísticas negativas de um coletivo.  

Ora, o reconhecimento de que somos todos aporófobos permitir-nos-á modificar as raízes sociais e culturais, para evitar essa forma de preconceito, agindo com compromisso para a defesa da igualdade e da dignidade das pessoas com o sentido de inclusão, de integração, de convivência social efetiva e de comparticipação no devir da comunidade.

A história humana precisa de dar nomes às coisas, aos factos e aos fenómenos sociais, para os incorporar no mundo humano do diálogo, da consciência e da reflexão. No entanto, é impossível apontar a dedo a democracia, a liberdade, a consciência, a beleza, o totalitarismo, a hospitalidade, o capitalismo financeiro, como é impossível sinalizar fisicamente preconceitos, realidades sociais que necessitam de ser nomeadas para terem reconhecimento e se poder analisar e tomar posição, reduzindo assim a força ideológica que o anonimato lhes impõe.

Assim acontece com a xenofobia e com o racismo, preconceitos tão velhos como a Humanidade e que só foram reconhecidos como realidades sociais num determinado período histórico, conferindo-se, desde então, o compromisso com o respeito pela dignidade humana. Porém, somente a xenofobia não explica a rejeição dos refugiados políticos, dos imigrantes pobres, dos ciganos, dos mendigos, mundialmente invisíveis. Os imigrantes qualificados e os aposentados estrangeiros instalados noutros países não são alvos de rejeição, de medo ou de aversão, já que trazem qualidade aos serviços e incrementam a economia local. O problema reside na pobreza. E o mais sensível é que há muitos xenófobos e racistas, mais aporófobos, quase todos.

Daí deriva muito do discurso do ódio (expresso de vários modos) e do delito de ódio ao pobre. As agressões dirigem-se a pessoas concretas, mas identificadas com um grupo; e o discurso é dirigido a um indivíduo identificado com um traço caraterístico de um grupo. Os delitos de ódio estigmatizam a pessoa ou o grupo, atribuindo-lhes risco para a sociedade, difícil de comprovar, baseado em preconceitos e na tradição oral (Assim tem acontecido com os judeus); põem o grupo no ponto de mira do ódio com a criação de lendas para justificar a incitação ao desprezo e à agressão; impõem a crença na naturalização da desigualdade estrutural entre a vítima e o agressor, que se crê em posição de superioridade perante ela; e incitam ao compartilhamento do desprezo.

Nestes termos, para Adela Cortina, não é fácil organizar a construção de uma sociedade pluralista com o compartilhamento de uma justiça mínima, porque não há uma relação de igualdade, de respeito e de reconhecimento da dignidade merecida pelo agredido, supondo-se uma violação flagrante do imperativo ético categórico kantiano.

Se Ronald Dworkin, filósofo e jurista estadunidense, considera a igualdade como a virtude soberana, Cortina utiliza-a como o caminho a construir pela educação formal e informal para suplantar os delitos e os discursos de ódio, pelo recurso institucional ao direito penal e civil para a punição e reabilitação, e pela função comunicadora e de intolerância a determinadas ações violadoras de valores que dão sentido e identidade à sociedade. Por isso, é de relevar o papel da sociedade na erradicação da pobreza e das desigualdades e no cultivo de valores e de sentimentos de igual dignidade para todos. Obviamente, a lei não é suficiente para resolver o problema; requer-se a ética cívica, estribada numa eticidade democrática que tenha como sagrada a liberdade, construída no diálogo e no reconhecimento mútuo da dignidade inerente e toda a vida humana.

Isto implica a construção de uma consciência pessoal e social que assuma uma consolidada moralidade definida como um conjunto de valores, princípios, costumes, que nos leve a controlar o egoísmo e a reforçar a cooperação e a solidariedade, entre os mais próximos, inicialmente, e ao conjunto da humanidade, em seguida, resultante de pressões evolucionárias forjadoras de experiências humanizadoras, fautoras de generoso altruísmo tornado eficácia, visando a cultura do respeito, da cooperação e da implantação da verdadeira cidadania que realize cabalmente o ser humano e a comunidade justa, fraterna e solidária, sem fobias de qualquer matiz e sem filias descabidas, nomeadamente a “plutofilia” (amor desmedido à riqueza e aos ricos) e a “filiocracia” (apego desmedido ao poder e aos poderosos).

O posicionamento ético e político de Adela Cortina instiga à reflexão para uma cidadania ativa que promova e assegure a toda a pessoa, na condição de vulnerabilidade extrema como refugiado, o direito à hospitalidade – materializada no acolhimento, na integração e na inclusão –, que devia ser incorporado, por exemplo, como princípio, na Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).

Na verdade, somos pessoas, somos comunidade humana, com direitos e com deveres.

2023.01.27 – Louro de Carvalho

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Desclassificação dos documentos militares anteriores a 1975

 

Na Assembleia da República (AR), os deputados discutiram, a 26 de janeiro, um projeto de resolução do Bloco de Esquerda (BE) a recomendar ao Governo a desclassificação de todos os documentos que estão nos arquivos militares, anteriores a 1975, em particular os que respeitam à Guerra Colonial, a partir de 1961. O projeto foi rejeitado pelos votos contra do Partido Socialista (PS), do Partido Social Democrata (PSD) e do partido Chega; foi contemplado com a abstenção da Iniciativa Liberal (IL); e obteve os votos a favor da bancada bloquista, do Partido Comunista Português (PCP), do partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) e do Livre.

O PS, pela voz do deputado Diogo Leão, julgou excelente o propósito do BE, mas não conforme com a realidade. Ou seja, não é verdade que grande parte do acervo documental militar se encontra classificado. Com efeito, no Arquivo Histórico Militar não há um único documento anterior a 1974 que se encontre classificado. No Arquivo Histórico da Força Aérea a situação é semelhante, todos os documentos relativos à Guerra Colonial foram desclassificados e são passíveis de consulta. Só no Arquivo Histórico de Marinha é que há alguns documentos classificados, mas a Comissão de Desclassificação de Documentos da Marinha Portuguesa fez a desclassificação da vasta maioria dos documentos deste período histórico. Já os documentos Organização do tratado do Atlântico Norte (NATO) anteriores a 1975 ainda estão classificados, mas o Estado português não tem, de motu proprio e de forma unilateral, capacidade jurídica ou poder para desclassificar estes documentos. Assim, como disse o deputado, “não se desmontam mitos, como o mito imperial, à custa de criar mitos contemporâneos”, como o de que “a vasta maioria dos documentos militares são secretos”, quando o “são uma absoluta minoria”.

Também o PSD, pelo deputado Pedro Roque, afirmou a consonância com o “espírito” do projeto, mas vincou o “facto de esta matéria ter um enquadramento legal” que impede, por exemplo, a divulgação de documentos que contenham dados pessoais. 

Patrícia Gilvaz, da IL, sustentou que o partido não se opõe à divulgação de documentos históricos relativos à Guerra Colonial, mas questionou a intenção do BE: “Será reconstruir a História tendo como base um princípio de transparência ou contribuir para uma visão ideológica da História, esperando com isso encontrar novas formas de atacar as forças militares e fazer ruído?”

João Dias, do PCP, vincou a necessidade de desclassificação dos documentos históricos e alertou para a falta de recursos dos arquivos para tratar esta documentação. 

Rui Tavares, do Livre, defendeu que não há debate maduro acerca do passado “sem acesso a documentos disponibilizados aos historiadores, aos professores, à academia, aos investigadores”.

E André Ventura, do Chega, classificou o projeto do BE como uma “enorme irresponsabilidade” que “põe em risco a nossa História”.

Porém, Joana Mortágua, do BE lembrou que os dados pessoais podem ser expurgados dos documentos e sublinhou a irónica contradição das críticas ao projeto, visado simultaneamente pela inutilidade e pelos perigos. E, frisando que “nenhum país se constrói no presente e no futuro, sem olhar para trás com verdade”, explicitou: “Queremos acesso à verdade toda, para que as gerações futuras possam ter acesso à História baseada em factos e não em mitos.”

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Não é a primeira vez que os deputados se debruçaram sobre o tema: há dois anos uma iniciativa idêntica ficou pelo caminho, com o voto contra do PS e do PSD, com a alegação de que uma medida desta natureza pode pôr em causa o interesse nacional. Contudo, militares e historiadores garantem que o maior problema é a falta de recursos e de organização dos arquivos.

Um “imperativo histórico” – refere agora o projeto de resolução do BE rejeitado na AR.

O debate parlamentar levanta a questão: o que está ainda classificado nos arquivos militares e porquê? Augusto Santos Silva, presidente da AR, era ministro da Defesa em 2010, quando recebeu o pedido para a desclassificação dos fundos do acervo documental do Arquivo da Defesa Nacional (ADN). E, em despacho de 14 de dezembro de 2010 (interno, não publicado), mandou desclassificar todos os documentos constantes dos arquivos anteriores a 1975.

O coronel Aniceto Afonso, militar, historiador (coautor da obra Guerra Colonial , com o coronel Carlos Matos Gomes) e, entre 1993 e 2007, diretor do Arquivo Histórico Militar (pertencente ao Exército), conta que, naquele período, a desclassificação de documentos era feita casuisticamente: quando um leitor sabia que um documento existia e o queria ler, o documento ia a “uma comissão e era desclassificado”. Era o que se fazia até o ministro exarar o dito despacho, que devia valer, para todos os arquivos militares. Desde aí, todos os documentos estão desclassificados, pelo que podem ir a leitura sem a desclassificação por essa comissão. São excecionados os documentos que se regem por normas próprias, por exemplo, os respeitantes à Justiça ou à Saúde.

Aos documentos que “integrem dados nominativos” (informação pessoal), de acordo com a lei, só se pode aceder, “decorridos 30 anos sobre a data da morte das pessoas” ou, não sendo conhecida a data da morte, “decorridos 40 anos sobre a data dos documentos” e não menos de “dez sobre o momento do conhecimento da morte” (limitação não absoluta, desde que os dados pessoais sejam expurgados do documento antes de este ser consultado). Estas determinações aplicam-se a todos os arquivos. No caso dos militares, acresce a possibilidade duma classificação específica, de segurança – muito secreto, secreto, confidencial e reservado –, que é a que esteve em causa no debate parlamentar acima referido.

Em geral, toda a documentação está a consulta no Arquivo Histórico Nacional e no ADN, mas há resistências, nomeadamente no atinente aos arquivos afetos aos ramos das Forças Armadas. E há documentação não acessível por algumas hesitações em considerar o despacho do ministro da Defesa suficiente para desclassificar. Por isso, segundo alguns, conviria uma lei que clarifique a desclassificação e confirme o despacho, que é utilizado um pouco casuisticamente.

Às vezes a documentação não está a leitura, porque os fundos dos arquivos não estão tratados. E esse é o principal problema, pelo devia a lei obrigar a pôr lá pessoal que o pudesse fazer. O ADN, por exemplo, que teve cerca de uma dezena de funcionários, está reduzido a dois/três.

O coronel Borges da Fonseca, que também liderou o Arquivo Histórico Militar, garante que, pelo menos, nos arquivos do Exército, todos os documentos estão acessíveis, nos limites impostos pela lei. E qualifica de “mito” a ideia de que há um manto de secretismo à volta dos documentos militares. E, observando que se tem falado muito do massacre de Wiriyamu, aponta que o relatório está disponível e que, em vez de imaginar que é muito secreto, o melhor é ir consultar os arquivos.

Entretanto, vários historiadores pronunciam-se de diversos modos. Irene Flunser Pimentel, que defende que os 50 anos do 25 de Abril (que se cumprem em 2024) devem dar o mote para abrir toda a documentação histórica relativa ao Estado Novo e à Guerra Colonial, tem viva a memória de quando avançou para a tese doutoramento. Os entraves no acesso às fontes foram de tais que mudou o objeto da investigação: ia fazer a tese de doutoramento sobre a Guerra Colonial, mas acabou por se doutorar em 2007 com um aclamado estudo sobre a polícia política.

Já o historiador António Araújo diz não ter razões de queixa dos arquivos militares: “Sempre foram dos mais abertos.” Foi isto que lhe permitiu, em 2008, com António Duarte Silva, trazer ao público quatro documentos que comprovam o uso de napalm (bomba com mistura química de Naftenato de alumínio e Palmitato de alumínio mono e di-hidroxilados) pelas tropas portuguesas e que estavam classificados como “muito secretos” ou “secretos”. Só então foram desclassificados, a pedido dos dois historiadores. Não tiveram problema nenhum em desclassificar, mas António Araújo diz que faz sentido “clarificar, de uma vez por todas, que os documentos são acessíveis”.

Fernando Rosas observa que há barreiras no acesso à documentação guardada em arquivos militares, quer pela documentação que está classificada, quer pelo facto de haver muito material não tratado. Ainda é do tempo em que, para se consultar o Arquivo Histórico Militar, era precisa uma cunha ao general e eram precisos uns conciliábulos. Com Aniceto Afonso como diretor, isso mudou substancialmente, passou a ser um arquivo com regras. Mas decaiu. E um arquivo decaído facilita a existência de critérios, formais ou informais, de restrição do acesso. Há “uma espécie de burocracia cinzenta em que ninguém se interessa muito pelo arquivo”. Por outro lado, diz que “não há boa vontade dos responsáveis militares no que toca à facilitação do acesso a certos tipos de documentação”. A memória da Guerra Colonial continua, por vezes, traumática.

Carlos Matos Gomes, capitão de Abril, coautor de A Guerra Colonial, também aponta como principal problema a falta de recursos e a consequente falta de organização da documentação disponível. Não é questão política de secretismo, pois o Exército tem os seus arquivos abertos, é questão de falta de meios e de organização. Por isso, defende que a presidência do Conselho de Ministros, porque é um assunto interministerial, deveria nomear uma comissão de pessoas ligadas aos arquivos que verificasse em que moldes e que regras existem para estes arquivos, para saber o que há, porque não se faze ideia. Porém, entende que “não é preciso fazer uma lei nova, é preciso tornar eficaz o que já existe”.

E, quanto à questão do secretismo – diz o militar historiador –, ela não se põe em relação ao que está nos arquivos, mas ao que lá não está: “Há arquivos secretos fechados em gabinetes há 50 anos.” E dá o exemplo do navio Angoche, de que não se sabe nada. “Sabe-se que há um processo, mas está fechado” – atira.

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Não se percebe, a não ser por falta de informação correta o motivo por que o BE apresentou a Resolução. Não se entende que, perante dúvidas a esclarecer e arestas a limar, se rejeitou o projeto do BE. Não é questão da maioria absoluta do PS, pois os votos contra são da esmagadora maioria. É pudor, é trauma. Assim, não haverá Museu da Guerra do Ultramar e não se reescreverá a História segundo ou contra “o politicamente correto”. E a verdade jazerá no limbo do tempo.  

2023.01.26 – Louro de Carvalho