domingo, 22 de janeiro de 2023

Emagrecem os recursos humanos nas empresas nacionais e no Estado

 

Há cada vez mais empresas estrangeiras a recrutar portugueses para trabalharem à distância, sem terem de sair do país, os quais chegam a receber o dobro, têm melhores condições laborais do que no mercado de trabalho nacional e nem precisam de emigrar.

A tendência está a crescer e já ameaça as empresas nacionais, bem como o setor do Estado. Com efeito, o regime de trabalho “para fora cá dentro” começou há alguns anos, sobretudo no setor tecnológico, mas cresceu bastante com a pandemia e com a generalização do trabalho remoto. Já abrange muitas outras áreas, para lá deste setor, e ninguém tem dúvidas de que se generalizará.

Um jovem de 23 anos, recém-licenciado em Engenharia Informática, que é programador numa empresa norte-americana e costuma trabalhar a partir de um café, recebeu quase em simultâneo duas propostas de trabalho para a mesma função provindas de empresas da mesma área, uma portuguesa e outra dos Estados Unidos da América (EUA). O ordenado oferecido por esta era bastante mais alto e não tinha de emigrar. Trabalhava perto da família e dos amigos e em condições melhores do que as do mercado nacional.

Como este, há já muitos portugueses que estão a seguir tal rumo. Por exemplo, um designer trabalha para uma empresa norte-americana. Ganha mais do dobro do que recebia numa empresa nacional. A empresa está sediada na Califórnia, com a diferença de oito horas face à hora de Portugal. A princípio trabalhava, regularmente, à noite, mas já tem horário compatibilizado: trabalha com um colega da Turquia e com outro do Midwest americano. Marcam as reuniões para o início da tarde portuguesa. Um está a arrancar o dia, o outro a terminar e ele está a meio.

Além do salário, encontrou outras vantagens de ouro, como os incentivos à formação, os dias de férias ilimitados e “uma organização e visão de futuro muito bem estruturadas”, que nunca viu em Portugal. Por isso, se vier a deixar a empresa, não será para trabalhar no mercado nacional.

Está visto que, para os trabalhadores portugueses, são inequívocas as vantagens de trabalhar para fora, nomeadamente a nível salarial, de currículo, de flexibilidade e de progressão na carreira.

Segundo o relatório “Global Tech Talent Trends 2022”, no atinente à remuneração, os profissio­nais portugueses que trabalham para empresas estrangeiras do setor tecnológico, por exemplo, recebem, em média, mais 30%.

Porém, as organizações estrangeiras também ganham muito, pois os portugueses são vistos como profissionais sérios, competentes, com boa formação superior, com facilidade em falar línguas e com bom relacionamento interpessoal. Por isso, começam a aparecer no topo das preferências de recrutamento a nível internacional, sobretudo para a Europa e para os EUA.

Segundo a Autoridade Tributária (AT), 24660 residentes em Portugal declararam rendimentos obtidos no estrangeiro em 2021. Todavia, estes números incluem os portugueses que trabalham para fora, mas também os estrangeiros que vivem no nosso país como nómadas digitais, não sendo possível desagregar uma e outra situação. A grande maioria (87%) é trabalhador por conta de outrem, mas o número dos que declaram rendimentos como trabalhadores independentes duplicou desde 2018.

É claro que os baixos salários pagos em Portugal constituem fator de peso nesta equação, tornando os portugueses recetivos a propostas que nem são altas à luz dos valores internacionais. Em Portugal, um recém-licenciado, ao entrar no mercado de trabalho, ganha mil euros – e há muita dificuldade em entrar, a não ser que tenha um padrinho –, enquanto nos EUA ou no Norte da Europa o nível de entrada está nos €3 mil. Se a empresa lhe pagar €2 mil, dá-lhe o dobro do que ele ganha. Mas paga um terço abaixo do que pagaria, se recrutasse no próprio país. Por isso, se ganha o trabalhador, a empresa também ganha. E, enquanto se esvaem os recursos humanos no mercado de trabalho nacional, no estrangeiro, depaupera-se grossa fatia dos trabalhadores.

No tempo da Troika, de 2011 a 2013, o aliciamento dos trabalhadores portugueses por empresas estrangeiras implicava emigração; hoje, não precisam de sair do país. Até podem muitos regressar, o que pode ajudar a conter o despovoamento. Esta é uma das vantagens do trabalho remoto.

Residindo em Portugal, estes profissionais contribuem para o consumo interno, pagam cá os impostos e têm aqui os filhos, mantendo vivos os laços familiares e ajudando a amenizar o problema demográfico. Além de fixar profissio­nais que de outra forma poderiam emigrar em busca de melhores salários, esta tendência pode até incentivar portugueses a regressar ao país.

Isto aconteceu com uma arquiteta de 44 anos, consultora de uma empresa na Irlanda, que voltou para Portugal e passou a trabalhar à distância a partir de um coworking (trabalho a com partilha de espaço e de recursos de escritório, reunindo pessoas que podem não trabalhar para a mesma empresa ou na mesma área de atuação).

Uma coisa certa. Se o Estado não aumentar consideravelmente, muito em breve, os salários na administração pública, arrisca-se-á a ficar sem quadros ou ater-se-á a quadros medíocres, que mais ninguém aceita. Se as empresas nacionais não aumentarem salários, estarão condenadas a perder os mais trabalhadores qualificados. E não vale a pena o lamento de que perdemos a geração mais qualificada de sempre. Paguem, que eles ficam.

Não sei se isso da “geração mais qualificada” corresponde mesmo à realidade, porque a qualificação não se cinge à competência meramente técnica. Pauta-se também por valores de inter-relação, sentido de pertença, sentido de solidariedade, respeito, humanidade e outros mais.    

Na competição dos salários o país estará sempre condenado a perder, dado que o nível de vida é bastante inferior aos dos países donde surge a tentativa de recrutamento. As empresas portuguesas e a Administração Pública estão a sentir enormes dificuldades em reter e recrutar talentos, porque não têm capacidade de rivalizar com os ordenados oferecidos pelas empresas estrangeiras.

Sobretudo na área tecnológica, se os recém-licenciados não tiverem aumentos na casa dos 20% será impossível fixá-los. Às empresas nacionais e ao Estado restará recrutar pessoas de menor qualidade ou com menos formação. Por outro lado, os trabalhadores portugueses precisam de ver, nas empresas e no Estado, outras condições: maior capacidade de organização e de planeamento, apreço pela formação inicial e contínua adequadas, desburocratização (reduzir ao mínimo necessário a burocracia), eliminação das tarefas desnecessárias, comunicação na empresa ou serviço, respeito pelas pessoas e equidade na apreciação do mérito (contra o amiguismo).

O problema está longe de se resumir ao setor tecnológico. O recrutamento de portugueses por empresas estrangeiras ganha cada vez mais expressão. Já abrange a banca e toda a área dos recursos humanos e estender-se-á a praticamente todas as áreas qualificadas, com exceção das que exigem trabalho presencial

No Estado já são visíveis os sintomas de uma crise de recursos humanos. Se o problema não for tratado rapidamente, haverá colapso de vários serviços públicos. E o setor privado não escapará à debandada, pois muitas empresas já viram sair equipas inteiras, recrutadas por estrangeiros.

É, pois, necessário aumentar salários e criar melhores condições de trabalho. Para isso, as empresas têm de se focar em áreas efetivamente produtivas. Se não pagarem melhor, terão de contratar noutras geografias, como a Europa de Leste, a Ásia ou o Brasil, onde, com o trabalho remoto, as próprias empresas portuguesas já começaram a contratar. Deixarão de contar com os portugueses mais qualificados. Continuarão a viver cá, mas o seu talento estará lá fora.  

***

Se o setor privado tem dificuldade em reter profissionais qualificados, por não poder competir com os salários oferecidos por empresas estrangeiras, o cenário é mais negro quando o Estado tenta contratar e fixar trabalhadores. Sem grande margem de manobra para aumentar ordenados, vários setores do Estado vêm perdendo profissionais: uns vão para empresas privadas, outros vão para o estrangeiro, muitos outros aposentam-se e, ultimamente, muitos trabalham “para fora cá dentro”, com salários que chegam a saltar para mais do dobro em áreas como a programação.

Muitos serviços públicos enfrentam situações de contingência onde já só se pretende que alguém aceite o trabalho, mesmo que não seja das pessoas mais qualificadas ou com mais experiência. Nos últimos anos, entre 25% e 33% das vagas têm ficado por preencher, o que revela uma crise, ainda que incipiente, dos recursos humanos no setor público. A primeira debandada deu-se na crise de 2009 a 2014. Depois, houve um reajustamento na pandemia, com o trabalho remoto. E agora basta uma nova crise, que parece já em curso, para a Administração Pública entrar num ponto sem retorno e alguns dos serviços públicos poderem colapsar.

As tecnologias de informação (TIC) são uma das áreas mais críticas. Há organismos que perderam equipas inteiras de programadores. Mas a falta de profissionais atinge áreas como engenharias, finanças, educação ou serviços jurídicos, o que tem impactos muito negativos na gestão pública.

Para evitar que a situação dê em crise, é preciso começar a tratar já o problema. Há que reforçar os salários, sobretudo em setores críticos, criar benefícios para os trabalhadores e apostar na valorização das carreiras, no teletrabalho, nos horários bem definidos e na estabilidade.

Por fim, diga-se que o Estado tem o problema do envelhecimento dos seus trabalhadores, cuja idade média supera os 50 anos. É difícil competir com o setor privado, mas tem de o fazer!

2023.01.22 – Louro de Carvalho

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