segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

A lógica do Reino dos Céus é contrária à logica do Mundo

 

Estava a rezar, na Missa deste dia 29 de janeiro, por alma do Padre Armando Menezes e, ao Salmo Responsorial, lembrei-me de que viria aí o Evangelho das Bem-aventuranças (na novena dos Felizes: makárioi, em Grego). E o pensamento voou. Foi com este Evangelho que entrei no Granjal, na Vila da Ponte e em Freixinho, a 1 de novembro de 1979, e foi este o último Evangelho que o Cónego José Cardoso leu no 4.º domingo do Tempo Comum no Ano A, a 29 de janeiro de 1984, pois faleceu no dia seguinte (30 de janeiro). Por isso, eu não podia omitir a meditação das Bem-aventuranças evangélicas, na esteira da literatura veterotestamentária e na linha de Cristo.

Obviamente, a Liturgia da Palavra do 4.º domingo do Tempo Comum no Ano A concita a reflexão sobre o Reino dos Céus (Reino de Deus) e a sua lógica, mostrando que o plano de Deus roda em sentido contrário à lógica do mundo. Aos olhos de Deus, são felizes os pobres, os humildes, os que se despem do egoísmo, do orgulho, dos próprios interesses. Deles é o Reino de Deus.

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Na 1.ª leitura (Sf 2,3; 3,12-13), Sofonias denuncia o orgulho e a autossuficiência dos ricos e dos poderosos e insta o Povo de Deus a converter-se à pobreza, não à miséria ou à pobreza imposta pela injustiça dos poderosos. O pobre (ptôkhós) é quem se entrega nas mãos de Deus com humildade e confiança, acolhe com amor o seu desígnio, é justo e solidário com os irmãos.

O profeta pregou em Jerusalém no tempo de Josias (entre 639 e 609 a.C.), que subiu ao trono com oito anos de idade). Na menoridade do rei, presidia aos destinos de Judá um Conselho Régio.

É uma época difícil para o Povo de Deus. Judá está submetida aos assírios (desde o pedido de ajuda de Acaz a Tiglat-Pileser III contra Damasco e a Samaria, no ano 734 a.C.), cuja influência condiciona todos os escalões da vida nacional, sofrendo a nação as consequências da invasão de costumes estranhos e de práticas pagãs. Paralelamente, o país saíra do reinado de Manassés (698-643 a.C.), que reconstruiu os lugares de culto aos deuses estrangeiros, erigiu altares a Baal, ofereceu o filho em holocausto, se dedicou à adivinhação e à magia e instalou no Templo de Jerusalém a estátua de Astarte. A isto acrescem as injustiças que se abatem sobre os pobres e desprotegidos. Os príncipes e ministros, abusando da autoridade, cometem arbitrariedades, os juízes são corruptos e os comerciantes especulam com a miséria.

Em contraste, o profeta sabe que Javé não continuará a pactuar com o pecado, que virá o Dia do Senhor, em que os maus serão punidos e a injustiça banida da terra. Porém, escaparão os humildes e os pobres, os que se mantiveram fiéis à aliança. Assim, o escopo de Sofonias não é anunciar o castigo, mas suscitar a conversão, passo necessário para a salvação.

O passo bíblico em apreço começa com o apelo à conversão, a qual significa, objetivamente, justiça e humildade. Os humildes, neste contexto, são os se entregam confiadamente nas mãos de Deus, Lhe seguem os passos, aceitam o seu plano e não se posicionam contra Ele. São os que praticam a justiça para com os irmãos e que, respeitando os direitos dos mais débeis, não cometem arbitrariedades. São os pobres das bem-aventuranças evangélicas, não uma categoria sociológica, mas os que estão na atitude de abertura a Deus e aos irmãos. No lado oposto estão os orgulhosos e autossuficientes, que exploram, que são injustos, corruptos e arbitrários. Só a conversão à humildade permitirá encontrar proteção no “dia da ira do Senhor” que se aproxima.

Em seguida, Sofonias apresenta o resultado do “dia da ira do Senhor”. Surgirá o “resto de Israel”. Os orgulhosos, arrogantes e prepotentes serão banidos do meio do Povo de Deus e ficará um resto humilde e pobre, que se entregará nas mãos do Senhor, constituindo uma espécie de viveiro de reflorescimento da nação. Daí, ser pobre será a atitude de quem tem o coração aberto a Deus e é justo na relação com os outros. Na boa tradição bíblica, os pobres são pessoas pacíficas, humildes, piedosas, que confiam em Deus e Lhe obedecem e que são justos e solidários com os irmãos.

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Na 2.ª leitura (1Cor 1,26-31), Paulo denuncia a atitude dos que põem a esperança e segurança em pessoas ou em esquemas humanos, com atitudes de orgulho e de autossuficiência, e convida os crentes a encontrar em Cristo crucificado a verdadeira sabedoria que conduz à salvação e à vida.

Face a alguns equívocos sobre o valor dos mestres cristãos e à pretensa tentação de equiparar o cristianismo a uma escola filosófica, o apóstolo porfia aos Coríntios que entre os cristãos não há senão um mestre, que é Jesus Cristo, e que a experiência cristã não é a busca de uma filosofia brilhante que desemboque na sabedoria, entendida à maneira grega. Aliás, Cristo não se distinguiu pela arte oratória ou pela lógica do discurso filosófico. Ele é o Deus que, por amor, veio ao encontro dos homens e lhes ofereceu a salvação, através do dom da vida.

Por isso, o caminho cristão é a adesão a Cristo crucificado – o Cristo do amor e do dom da vida. Nele manifesta-se, de forma desconcertante, mas plena e definitiva, a força salvadora de Deus. Em mais ninguém se deve procurar a verdadeira sabedoria que conduz à vida eterna.

Considera Paulo que é difícil ver – do ângulo humano – num pobre galileu condenado a morte infamante (“escândalo para os judeus e loucura para os gentios”) uma proposta credível de salvação. Mas a lógica de Deus não é a lógica dos homens. “O que é loucura de Deus é mais sábio que os homens; e o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens” (1Cor 1,25).

Como exemplo da lógica de Deus, o apóstolo aponta o caso da comunidade cristã de Corinto: não abundam ali os ricos, nem os poderosos, nem os de boas famílias, nem os intelectuais, nem os aristocratas; ao invés, a maioria dos ali residentes são escravos, trabalhadores, gente simples e pobre. Não obstante, como previu Sofonias, Deus escolheu-os e chamou-os. E a vida de Deus manifestou-se nessa comunidade de desclassificados. Para a consecução dos seus projetos, os homens escolhem os ricos, os fortes, os mais bem preparados intelectualmente, os que provêm de boas famílias, os que asseguram maiores probabilidades de êxito do ponto de vista humano. Deus, porém, elege os pobres, os débeis, os que aos olhos do mundo são ignorados ou desprezados e, através deles, manifesta o seu poder e intervém no mundo. Sendo esta é a lógica de Deus, não surpreende que o poder salvador de Deus se tenha manifestado na cruz de Cristo.

Por isso, os Coríntios são convidados a não colocar a esperança e a segurança em pessoas ou em esquemas humanos de sabedoria, pois a sabedoria humana é incapaz de salvar, e, ao produzir autossuficiência, leva o homem a prescindir de Deus e a resvalar por caminhos de morte. Em contrapartida, os coríntios devem colocar a sua esperança e segurança em Cristo, que deu a vida por amor. É na loucura da cruz, na vida dada até às últimas consequências, que se exprime a radicalidade do amor de Deus, de oferta da salvação ao homem. A cruz manifesta a sabedoria de Deus, sabedoria que deve atrair o olhar e apaixonar o coração dos Coríntios e de todos nós.

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O Evangelho (Mt 5,1-12) apresenta a magna carta do Reino. Proclama bem-aventurados os pobres, os mansos, os que choram, os que procuram cumprir fielmente a vontade de Deus, porque vivem na lógica do Reino; e recomenda aos crentes a misericórdia, a sinceridade, a luta pela paz, a perseverança ante das perseguições: atitudes que correspondem ao compromisso pelo Reino.

Depois de dizer quem é Jesus e de definir a sua missão, Mateus apresenta a concretização dessa missão. Com palavras e com gestos, Jesus fala do Reino aos discípulos e às multidões.

Uma caraterística importante do Evangelho de Mateus é a importância dada aos ditos de Jesus. Ao longo deste Evangelho aparecem cinco longos discursos (cf Mt 5-7; 10; 13; 18; 24-25), em que Mateus junta ditos e ensinamentos proferidos por Jesus em várias ocasiões e contextos. Terá o autor do primeiro Evangelho visto nesses discursos a nova Lei, destinada a substituir a antiga Lei dada ao Povo por meio de Moisés e escrita nos cinco livros do Pentateuco.

O primeiro discurso de Jesus – de que o trecho em referência é a primeira parte – é conhecido como o sermão da montanha (Mt 5-7). Agrupa um conjunto de palavras de Jesus que Mateus colecionou com o intuito de propiciar à sua comunidade uma série de ensinamentos básicos para a vida cristã, configuradores de um novo código ético, que superasse a antiga Lei que guiava o Povo de Deus. Mateus situa esta intervenção de Jesus no cimo de um monte, transportando-nos para o monte da Lei (Sinai), onde Deus Se revelou e deu ao Povo a antiga Lei. Agora é Jesus, que, no monte, dá ao novo Povo de Deus a Lei que o deve guiar ao Reino. As bem-aventuranças que Mateus põe na boca de Jesus são diferentes das apresentadas por Lucas (cf Lc 6,20-26). Mateus tem nove bem-aventuranças, enquanto Lucas tem quatro. Além disso, Lucas prossegue com quatro maldições, ausentes do texto mateano. Outras caraterísticas da versão de Mateus são a espiritualização (os pobres de Lucas são, em Mateus, os pobres em espírito) e a aplicação dos ditos originais de Jesus à vida da comunidade e ao comportamento dos cristãos, sendo provável que a versão lucana seja mais fiel à tradição original e que o texto de Mateus seja mais trabalhado.

As bem-aventuranças como fórmulas da tradição bíblica e judaica aparecem nos anúncios proféticos de alegria futura, nas ações de graças pela alegria presente e nas exortações a uma vida sábia, refletida e prudente. Contudo, definem sempre a alegria doada por Deus.

As bem-aventuranças evangélicas devem ser entendidas no contexto da pregação do Reino. Jesus proclama felizes os que estão em situação de debilidade, de pobreza, porque Deus está a ponto de instaurar o Reino e a situação destes pobres mudará radicalmente. São bem-aventurados porque, na fragilidade e dependência, estão de espírito aberto e coração disponível para acolher a salvação e que Deus lhes oferece em Jesus. As quatro primeiras bem-aventuranças de Mateus relacionam-se entre si, dirigindo-se aos pobres: a segunda, terceira e quarta são desenvolvimentos da primeira, que proclama: “felizes os pobres em espírito”. Saúdam a felicidade dos que se entregam confiadamente nas mãos de Deus e procuram fazer sempre a sua vontade, dos que deixam de colocar a sua confiança e esperança nos bens, no poder, no êxito, nos homens, para esperar e confiar em Deus e dos que renunciam ao egoísmo e se despojam de si próprios, para estarem disponíveis para Deus e para os irmãos, servindo e partilhando.

Os pobres não são os privados de bens para o seu côngruo sustento, mas os que se despojam, mesmo do que lhe faça míngua para acolherem Deus e servirem o próximo. Os mansos não são os que suportam passivamente as injustiças, mas os que recusam a violência. Os que choram são os que vivem no sofrimento provocado pela injustiça e pela miséria. Os famintos e sedentos de justiça são os totalmente fiéis aos compromissos assumidos para com Deus e para com os irmãos.

O segundo grupo de bem-aventuranças está mais orientado para definir o comportamento cristão. Os misericordiosos são os que têm um coração capaz de se compadecer, de amar sem limites, de ir ao encontro dos irmãos e estender-lhes a mão, mesmo quando eles falharam. Os puros de coração são os que têm um coração honesto e leal, que não pactua com a duplicidade e o engano.

Os pacíficos são os que recusam a violência e a lei do mais forte nas relações humanas e os que procuram ser – até com o risco da vida – instrumentos de reconciliação entre os homens. Os perseguidos por causa da justiça são os que lutam pela instauração do Reino, desautorizados, humilhados, agredidos, marginalizados pelos que praticam a injustiça, que fomentam a opressão, que constroem a morte. E a última bem-aventurança constitui a exortação de Mateus aos membros da comunidade que têm a experiência da perseguição, por causa de Jesus, a que resistam ao sofrimento e à adversidade. É, na prática, uma aplicação concreta da oitava bem-aventurança.

Enfim, as bem-aventuranças deixam uma mensagem de esperança e de alento aos pobres e débeis. Anunciam que Deus os ama e que está do lado deles. E asseguram que eles vivem na dinâmica do Reino onde encontrarão a felicidade e a plenitude da vida.

2023.01.39 – Louro de Carvalho

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