sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Que remodelação governamental quer o PR e a oposição?

 

O “aeremoto” provocado pela atribuição da indemnização de quinhentos mil euros a Alexandra Reis, pela saída forçada ou voluntária da administração da TAP (a transportadora aérea nacional), a que se seguiram a passagem pela presidência da NAV Portugal (a controladora do tráfego aéreo) e a integração no XXIII Governo Constitucional como secretária de Estado do Tesouro, a 2 de dezembro de 2022, ditou a queda da governante (imposta pelo ministro das Finanças), o pedido de demissão do secretário de Estado das Infraestruturas, Hugo Santos Mendes, e o pedido de demissão do Ministro das Infraestruturas e da Habitação, Pedro Nuno Santos. 

Perante o facto, o primeiro-ministro (PM) procedeu a remodelação governamental, sendo João Saldanha de Azevedo Galamba ministro das Infraestruturas, Marina Sola Gonçalves ministra da Habitação, Pedro Nuno Pereira de Sousa Rodrigues secretário de Estado do Tesouro, Ana Cláudia Fontoura Gouveia secretária de Estado da Energia e Clima, Hugo Alexandre Polido Pires secretário de Estado do Ambiente, Frederico André Branco dos Reis Francisco secretário de Estado das Infraestruturas, Maria Fernanda da Silva Rodrigues secretária de Estado da Habitação e Carla Maria Gonçalves Alves Pereira secretária de Estado da Agricultura.

Vão para o governo quase só pessoas do aparelho partidário, pois as outras dificilmente aceitam ver permanentemente escrutinada a sua vida e a dos seus e ganhar pouco dinheiro no cargo!   

Esperava-se que os cidadãos, os partidos da oposição, alguns militantes do Partido Socialista (PS) e o Presidente da República (PR) se indispusessem contra o que se passou na TAP, mas na certeza de que o sucedido com Alexandra Reis é apenas a ponta do icebergue. E queira Deus que a administradora não tenha sido “corrida”, só depois de ter feito o trabalho que mais ninguém queria fazer, por exemplo o processo de milhares de despedimentos, com indemnizações bem modestas em comparação com a sua, que baixou de cerca de um milhão e meio de euros para 500 mil euros, por obra e graça da sociedade de advogados (um irmão do PR integra-a) que assessorou a TAP no caso da ex-administradora. Entende-se que a oposição considere minimalista a remodelação e que diga que temos mais do mesmo, que aumentou a mediocridade ou que o PM se valeu da prata da casa e do aparelho partidário, esquecendo que as pessoas escolhidas para ministro/a ganharam traquejo na governação, rede de conhecimentos, capital de relação e até mais competências.

Todavia, a luta político-partidária faz-se também desta maneira, o que pode levar os governantes a enervarem-se ou a melhorem o seu modus operandi. E compreende-se que o chefe do Governo defenda até ao fim os escolhidos, deixando-os cair só quando perde a confiança neles ou quando eles se tornam inequívoco estorvo para a eficácia governativa, a que o PM não é alheio.

Já não se entende que o PR – o garante constitucional do “regular funcionamento das instituições democráticas” (CRP, artigo 120.º), não o seu perturbador mor – haja tecido “publicamente” considerações individualizadas a governantes e à remodelação. Os presidentes que serviram o país em democracia influenciaram como puderam a queda de ministros e de secretários de Estado. Conheceram-se algumas simpatias e antipatias de António de Spínola, de Mário Soares e de Jorge Sampaio, para não falarmos da hostilidade inicial de Cavaco Silva para com o primeiro governo de António Costa, por ter, supostamente, quebrado a tradição portuguesa segundo a qual formava governo o líder cujo partido tivesse ganhado aritmeticamente as eleições. Porém, nenhum dos chefes de Estado anteriores a Marcelo Rebelo de Sousa criticou “publicamente” um ministro ou secretário de Estado em concreto. Provavelmente tê-lo-ão feito em conversas telefónicas com o primeiro-ministro ou nas conversas semanais em que o chefe do Governo se desloca a Belém ou a outro lugar em que se encontre o PR.

Parece que o chefe de Estado, que logrou pôr em sentido um ministro das Finanças e banir uma ministra da Agricultura, mas não um ministro da Administração Interna, rivaliza com a oposição no combate ao governo, que é apoiado pela maioria absoluta de um só partido. Já não bastava o PR comentar tudo e todos, explicar por que motivo veta diplomas legislativos ou os promulga, acentuando-lhes os aspetos positivos e os negativos. Só me lembro de dois casos em que os PR justificaram a promulgação: Ramalho Eanes, quando se pronunciou publicamente a propósito da promulgação da lei da interrupção voluntária da gravidez (Lei n.º 6/84, de 11 de maio); e Mário Soares, aquando da promulgação da lei dos coronéis (Lei n.º 15/92, de 5 de agosto).

Neste segundo mandato, Marcelo pré-avisou a dissolução do Parlamento, caso este não aprovasse o Orçamento do Estado para 2022, o que acabou por acontecer, mas tendo os eleitores conferido a maioria absoluta ao PS, pelo que agora não arrisca a mesma medida implosiva do governo, esperando que haja condições lá mais para diante. Aliás, prometeu-o na tomada de posse do XXIII Governo Constitucional (esquecendo que são os partidos com assento parlamentar que têm legitimidade para a formação do governo – os resto será brincar à política), para o caso de o PM migrar para cargo europeu em 2024 e vai dizendo que 2023 é o ano decisivo. 

Não se me conhece simpatia para com o atual primeiro-ministro, nem para com qualquer um dos atuais governantes, mas lamento, de coração, como diria Bento XVI, as turbulências que o PR fornece à governação. Disse “publicamente” não perdoar à ministra da Coesão Territorial, se vierem a perder-se fundos europeus, como se isso não dependesse também da capacidade das autarquias e dos agentes económicos. Disse “publicamente” que a então secretária de Estado do Tesouro deveria avaliar se tinha condições para continuar no governo, mas que, embora a indemnização tenha sido legal, não será compatível com o exercício de funções governativas. 

Após as demissões da secretária de Estado do Tesouro, do secretário de Estado das Infraestruturas e do ministro das Infraestruturas e da Habitação, referiu “publicamente” que era de pensar se tais demissões eram suficientes, que se ia vendo e que, se fosse necessário mudar mais, se mudaria, pois iria estando atento e controlando. Sobre a remodelação em referência, apontou que o PM, sobre quem recai toda a responsabilidade da remodelação, preferiu a continuidade e a solução com a prata da casa. “Vamos ver se dá resultado” – atirou. Entretanto, a secretária de Estado da Agricultura, empossada a 4 de janeiro, foi apontada, de imediato, pelo facto de o marido estar acusado de corrupção ativa e de prevaricação. E, enquanto António Costa perguntava aos deputados: “Vou demitir alguém porque o marido é acusado?”, o PR colocou o problema a partir da visão contrária, como uma questão “política” e não de “legalidade ou constitucionalidade”. E sustentou que a governante tinha “limitações políticas” e constituía um “ónus político”, pelo que devia “formular um juízo sobre si própria”. E argumentou: “Esse é o juízo que a pessoa devia formular sobre si própria, quando avançou para determinado lugar.” Carla Alves ajuizou e demitiu-se pouco depois, tendo permanecido no cargo 26 horas.

O PR fez a sua intervenção, quando estava a decorrer o debate parlamentar da moção de censura ao governo, que tinha como desfecho a não aprovação. Criou mais um facto político em direto, pelas televisões, ao convidar a nova secretária de Estado da Agricultura a demitir-se. Contrariou a teoria, defendida por António Costa, da “legalidade ou constitucionalidade”.

Marcelo Rebelo de Sousa falou pelas 19 horas e, quase às 20, as redações recebiam um comunicado do Ministério da Agricultura: “A secretária de Estado da Agricultura, Carla Alves, apresentou esta tarde a sua demissão por entender não dispor de condições políticas e pessoais para iniciar funções no cargo. A demissão foi prontamente aceite.”

O primeiro-ministro dissera a Catarina Martins, coordenadora do BE, que estava “espantado” por uma deputada do Bloco de Esquerda colocar “a questão de saber a necessidade de demitir uma mulher no Governo, porque o marido é acusado num processo-crime”. E atirou que “não se combate o populismo de direita com populismo de esquerda”.

Ora, o PR está com os supostos populistas (na ótica de Costa), quando evidencia as “limitações políticas” de Carla Alves, por ser mulher do ex-presidente de câmara de Vinhais, em investigação da Polícia Judiciária (PJ), por suspeita de crimes de corrupção ativa e de prevaricação em negócios entre 2006 e 2015. E António Costa assumiu, no Parlamento, que ele próprio pegou no dossiê, ao afirmar que a secretária de Estado lhe garantiu, que “na conta dela, não há rendimento não-declarados, não sabe se consta ou não nas contas do marido e que tudo o que ganhou declarou.”. Porém, deixou uma fresta: “Em abstrato, se um membro do governo tiver na sua conta rendimentos não declarados, claro que não pode continuar”.

Questionado sobre se a secretária de Estado devia ser demitida, o PR respondeu que não se queria pronunciar porque ainda estava a decorrer o debate da moção de censura, mas insinuou que a saída devia ser da iniciativa da própria, que devia saber que se tornaria num embaraço para o Governo, devido ao processo do marido: “O problema não é jurídico nem para já ético, é um peso político negativo, na pessoa que sabe que apareceu com esse peso”. O PR pisa terreno perigoso.

Porém, quanto à ideia do PM de criar um circuito de avaliação entre a proposta de um membro do Governo e a efetiva nomeação, o PR reagiu, quase afastando essa hipótese por ser um modo de o primeiro-ministro se desresponsabilizar e de presidencializar o regime. Sugeriu que se estudassem os modelos de outros países. E aludiu a hipotético reforço do presidencialismo: “O Presidente da República não se pode substituir ao primeiro-ministro.”

Ora, a meu ver, a cooperação institucional entre PR e governo compromete muito menos o semipresidencialismo do que a turbulência a partir da Presidência da República. Mas o PR quer manter-se a falar de alto, sem a corresponsabilidade nas escolhas, o que agrada à onda populista a quem interessa um D. Sebastião que não seja da família política de António Costa.

***

Em suma, a oposição e o PR não querem uma remodelação governo, mas o seu desgaste. A esquerda está na dinâmica do protesto e de algum ganho político, porque o governo não responde às exigências do tempo; a direita espera que venha depressa o tempo da sua ascensão ao poder; e o PR, sob a capa da valia política – já não basta a lei, nem a ética (perigoso) – faz o pisca para a direita (Será a direita social de que se reclama?), pensando que o cruzamento está perto.

Que se habitue o PM a governar sob o látego ameaçador da dissolução parlamentar em 2024!

2023.01.06 – Louro de Carvalho

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