quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

A ética republicana não se esgota na lei

 

A República, num Estado de Direito democrático, em nome do primado da lei, proclama a igualdade de todos os cidadãos perante ela, rejeitando que uns beneficiem de prerrogativas ou direitos assentes em razões de hereditariedade familiar ou de títulos nobiliários.

Isto não quer dizer que a ética republicana consista apenas no cumprimento da lei. Recordo-me de que António Guterres, quando primeiro-ministro, respondeu aos deputados no Parlamento que a ética republicana está na lei. Porém, os republicanos mais convictos sempre apelaram para algo maior, algo acima do mero cumprimento da lei, algo que representa o princípio da prevalência do interesse público em detrimento do interesse privado, ou seja, do interesse da comunidade em detrimento do interesse do indivíduo. E sempre defenderam a educação cívica e o civismo.

Assim, a ética republicana, que se distingue da ética monárquica (que assume o imperador, o rei ou o príncipe como chefe do Estado e a estruturação da sociedade em classes hierarquicamente organizadas) como um sentimento de bem-fazer pela coisa pública, pela comunidade.

É óbvio que a lei deve, quanto possível, assumir os valores éticos, mas, devido à complexidade das situações que pretende abranger, da evolução social, da incapacidade ou das limitações do legislador e do circunstancialismo que rodeia, muitas vezes, o processo legislativo, pode não encerrar em si a totalidade da ética.   

Uma coisa é a lei penal estabelecer que só é crime o ato ou omissão tipificados na lei como crime e outra coisa seria dizer que só a lei suscita o comportamento adequado dos cidadãos.  

Assim, embora não haja ilegalidades formais em determinados comportamentos políticos, sociais e económicos, eles podem refletir atitudes de falta de ética – republicana ou outra. Por exemplo, o arranjismo amical, familiar ou partidário, que, por vezes, se verifica nas autarquias, na administração central, nas empresas, nos serviços de prestação social, cultural e desportiva, infringe os princípios basilares da ética. Com efeito, aos cidadãos e aos grupos de cidadãos deve ser conferida, sobretudo pelos serviços públicos, sempre a igualdade de oportunidades e responder, em tempo útil, aos requerimentos dos cidadãos, tal como deve ser dado o apoio aos menos dotados ou capacitados. E, na seleção para determinados encargos de natureza pública, deve prevalecer o critério da competência real e não factícia. Só para determinados cargos, como membros de gabinetes ministeriais ou equivalentes, além da competência, se requer a confiança pessoal. Muitas vezes, nem está em causa o nome dos escolhidos, nem a sua competência técnica ou profissional, mas a não abertura da possibilidade de acesso a outrem.    

Pode não haver infração à lei, mas contribuir para a degradação e descredibilização das instituições, maxime dos órgãos de poder, é inético e antidemocrático. Além disso, revela uma atitude contrária à democracia e abre caminho aos que se aproveitam do descontentamento para semearem ideias extremistas e adversas dos valores democráticos: respeito pela pessoa humana, sã convivência, equidade, justiça social, espírito de cooperação, escrupuloso respeito pela vontade popular expressa em eleições e em referendos, possibilidade e obrigatoriedade de intervenção na vida da sociedade, direito à vida e à integridade, direito ao nome à vida privada, direito ao trabalho e ao descanso, direito à saúde, direito à educação e direito à proteção social, liberdade de expressão, liberdade de iniciativa e liberdade de associação e de reunião.  

A ética republicana impende sobre os cidadãos e sobre os que detêm o exercício do poder político, seja o poder soberano, seja o poder autárquico, seja o poder militar. Por isso, o Presidente da República (PR), os membros do governo e os deputados não podem esquecer-se de que são representantes do povo, que é o verdadeiro detentor do poder político; os autarcas não podem obnubilar a sua obrigação de zelar pelo bem-estar das populações da sua autarquia e não lhes cabe distinguir entre “os nossos” e “os outros”; e os juízes não podem ignorar que administram a justiça (que é poder político soberano) em nome do povo e que julgam segundo a lei e segundo a convicção que a sua consciência profissional os leva a interpretar a lei e a aplicá-la a cada caso.  

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Muitas vezes vem à mesa do debate o conceito de ética republicana. Também, durante a última moção de censura apresentada no Parlamento, surgiu o conceito. O primeiro-ministro (PM) chegou a admitir que se demitiria, caso alguma vez “ferisse” a ética republicana. A “falta de ética” é apontada como uma das razões para as demissões de membros do governo. E o PR chegou a dizer que não basta ter havido infrações à lei ou até à ética, mas que tem de se atender à questão política. Outros atribuem algum afastamento de novas caras da política à falta de transparência.  

A ética republicana foi um argumento do PM para segurar a secretária de Estado da Agricultura – que viria a demitir-se poucas horas depois, mercê das declarações do PR. E, já antes, António Costa garantira: “Quando ferir a ética republicana, demito-me.”

Sobre o conceito de ética republicana, o Partido Socialista (PS) e o Partido Social Democrata (PSD) consideram que se trata de um comportamento da ordem da ética e da moral que vai além do decretado na lei. Contudo, divergem na forma de operacionalização e de sanção.

Marques Mendes diz que, nesta matéria, há uma linha mais restritiva e uma mais abrangente. Nos termos da primeira, só estão impedidos os comportamentos estabelecidos por lei; e, nos termos da segunda, há comportamentos que podem ser legais, mas que “não deixam de ser eticamente censuráveis”. A visão mais abrangente é partilhada por membros do PS socialista. João Soares, deputado do PS, ex-ministro e ex-presidente da Câmara de Lisboa, observa: “A lei é uma coisa, a ética ou a moral são outras. Há coisas legais que podem ser imorais.” Francisco Assis, ex-eurodeputado socialista e presidente do Conselho Económico e Social (CES), concorda e acrescenta que a ética republicana depende também da “cultura de rigor e exigência da sociedade” para com o “comportamento das pessoas”. E Ana Gomes, diplomata e ex-eurodeputada, diz: “A ética republicana não se confina ao que está plasmado na lei. [As pessoas] têm de se guiar por critérios éticos, morais e de respeito por aquilo que é o interesse geral”.

Por seu turno, o Chega, pela voz de Gabriel Mithá Ribeiro, vê o conceito como “injustificado” e não compreende a “valorização” que dele faz do PM. Para o deputado, a ética republicana está “em falência” e, para a recuperar, há que a abrir o debate às questões da “moral social” e da “autorresponsabilização”. E a Iniciativa Liberal (IL) categoriza a expressão “ética republicana” como “tentativa tosca” PM de se “arvorar” numa “tradição descontextualizada historicamente” para “afastar as nuvens que pairam sobre o seu governo”.

O caso de Carla Alves, que se demitiu de secretária de Estado da Agricultura, por ter contas bancárias arrestadas conjuntamente  com o marido, levantou uma questão de ética entre os governantes. E junta-se a polémicas como a de Alexandra Reis, em que o PR defendeu que não se trata de “juízo de legalidade”, mas de “juízo político”. E Marques Mendes atirou: “Como é que uma pessoa que aplicava cortes brutais na TAP sai com uma indemnização milionária? Pode não ser ilegal, mas é uma questão de ética.”

Já o caso de Rita Marques, ex-secretária de Estado do Turismo, que aceitou o convite para a administração da WoW, sem respeitar o período de nojo na passagem do setor público para o privado – e um setor que tutelou, – além de ilegal, é, no dizer de Ana Gomes, “um caso gritante de falta de ética republicana”. No programa “O princípio da Incerteza”, da CNN Portugal, Alexandra Leitão, deputada do PS, chamou à atenção para o caso, mas clarificou: “O governo não tem culpa nenhuma, as pessoas depois de saírem do Governo fazem o que entendem.”

João Soares fala de “sucessão de casinhos” que ficam de fora do “núcleo duro” do PS: “Há casos onde as pessoas abusam, mas não creio que tenham havido até agora casos graves no PS. A secretária de Estado do Tesouro chocou o PS, mas não estava alinhada com o aparelho. Não tinha cartão no bolso.” E lembrou que há muitas injustiças e, por isso, é “prudente” não fazer acusações na “praça pública”, pois as calúnias são fáceis de fazer e difíceis de limpar.

Um escrutínio mais apertado dos membros do governo – através de um circuito proposto pelo PM – é vantagem, por afastar quem tem esqueletos no armário, e como desvantagem, por ser um fator dissuasor para potenciais integrantes do governo. O pedido por transparência absoluta, que é, em muitos casos, um postulado da ética republicana e não apenas uma atitude política, pode afastar as pessoas da vida política, não por medo do escrutínio, mas pelo sensacionalismo e falta de rigor de algum escrutínio público. O receio de uma exposição indevida pode aumentar o número de declinações de convite para entrar no governo. “Qualquer dia ninguém vai querer estar ligado ao governo, a menos que esteja já dentro dos mecanismos dos partidos” – diz Francisco Assis.

E Ana Gomes sustenta que “os esqueletos no armário vão ser sempre descobertos e explorados, o que pode ser um fator dissuasor das pessoas quererem ir para a vida política”, mas adverte que isso não deve impedir o governo de exigir a máxima ética republicana a quem sirva o Estado.

Outra consequência da ética republicana é o crescimento de tensões dentro do partido do governo. Marques Mendes entende que o PM “só atua nos limites dos limites”. Considera-o “defensor dos princípios éticos”, mas permissivo, por não querer “comprar mais inimigos”. Afastar governantes que ponham em causa a ética republicana é um risco para o próprio partido, pois quem sai é um possível adversário do PM. Mas esta posição afoga os partidos, que estão desligados da realidade.

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Em suma, a ética republicana implica, antes de mais, o respeito pela lei e pelo seu cumprimento. Porém, essa mesma ética não permite que se aproveitem os hiatos da lei ao serviço indevido dos próprios interesses e a galgar os interesses dos outros, ou as falhas éticas da lei para assumir atitudes desviantes, só porque ninguém os pode punir. Para ir aperfeiçoando as leis e para elaborar novas leis, que a ética exija, é que temos os legisladores e, para que ninguém se julgue acima da lei, é que o legislador é um coletivo: assembleia, câmara, cortes, parlamento…

A ética obriga a todos, pois a cidadania o postula. E a ética tanto pode exigir a máxima transparência como algum secretismo. Tudo depende dos valores que estiverem em causa.

2023.01.11 – Louro de Carvalho

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