sábado, 14 de janeiro de 2023

Urge o compromisso coletivo com um mundo sem armas nucleares

 

O diretor-geral da Agência Internacional de Energia Atómica teve e aproveitou o ensejo para explanar, quase Urbi et Orbi, as razões atuais do perigo da posse e da utilização das armas nucleares pelos Estados, as dificuldades de negociação que tem enfrentado para um certo desanuviamento, os esforços que tem feito e continuará a fazer e o que o motiva nesta sua cruzada profissional. Por outro lado, aponta a forte possibilidade de, em vez da sua utilização como armamento de guerra (que destrói, mutila e mata), se rendibilizar o nuclear como energia limpa, no contexto do combate às alterações climáticas.    

O Papa Francisco recebeu, na manhã de 12 de janeiro, no Palácio Apostólico, o diretor-geral da Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA), Rafael Grossi, que visitou o Vaticano, onde manteve conversações com o cardeal Secretário de Estado, Pietro Parolin, e com o secretário para as Relações com Estados e Organizações Internacionais, o arcebispo Paul Richard Gallagher.

Em entrevista aos meios de comunicação do Vaticano – Sala de Imprensa da Santa Sé, Rádio Vaticano, Vatican News, L’Osservatore Romano e Vatican Media (antigo Centro Televisivo) –, Grossi enfatizou a necessidade de encontrar soluções multilaterais para as crises internacionais e a de evitar a escalada nuclear, que parece cada vez mais iminente. Em particular, debruçou-se sobre a delicada situação na central nuclear de Zaporizhzhia, na Ucrânia, anunciando que, em breve, visitará o país, o que fará pela quinta vez, desde o início do conflito.

Confrontado com a forte denúncia, por parte do Papa Francisco, da gravidade da ameaça nuclear que hoje paira sobre a humanidade, o diretor-geral da AIEA, sublinhou que se avistou com Francisco, porque lhe parece indispensável ouvir a sua voz, a sua mensagem sobre estas ameaças neste momento difícil, com uma agenda internacional complexa. O trabalho da AIEA tornou-se urgente. E não se trata apenas da questão da Ucrânia. Também são preocupantes os casos do Irão e da Coreia do Norte.

Neste momento, é claro que a segurança das instalações nucleares na Ucrânia se tornou urgente, indispensável mesmo. A situação atual é precária, frágil: continuam os bombardeios em torno da central de Zaporizhzhia e, às vezes, sobre ela.

Desde a sua visita, em setembro passado, Grossi pôde estabelecer uma presença contínua da AIEA em Zaporizhzhia; e, agora, o seu compromisso é chegar a um acordo político entre Moscovo e Kiev, para assegurar uma zona de proteção e de segurança nuclear em torno da central.

Tendo o Papa repetidamente expressado apoio a uma abordagem multilateral em grandes crises internacionais, o entrevistado reconhece que é muito importante, e até fundamental, o apoio da Santa Sé, porque enfatiza a relevância do problema em termos de paz, com uma voz universal como é a voz do Santo Padre, e em particular neste conflito na Ucrânia, que é, seguramente, um conflito na Europa, mas também um conflito que envolve cristãos em todo o Mundo. Veja-se como é diferente a posição dos católicos e protestantes e a dos ortodoxos em relação à guerra russo-ucraniana e como os próprios ortodoxos se dividiram nesta matéria. Assim, é indispensável escutar a voz do Santo Padre. Por isso, o diretor-geral da AIEA sente-se na órbita desta orientação espiritual do Santo Padre, não apenas por ser católico, mas também por causa da força real desta voz no Mundo, neste horizonte de guerra.

Rafael Grossi mencionou a central nuclear de Zaporizhzhia e a possibilidade de se criar, nesta, uma zona de segurança. Disse ter já visitado a Ucrânia, por quatro vezes, e anunciou uma quinta visita. Por isso, os entrevistadores questionaram-no sobre as expectativas em relação à possibilidade da criação de uma zona de segurança naquela central nuclear. A resposta é que não se trata de uma negociação fácil, porque envolve aspetos técnicos e aspetos políticos e militares. Por outro lado, como referiu a 11 de janeiro, em Roma, a mesa de negociações tornou-se maior. Raphael Grossi não fala apenas com diplomatas e com líderes políticos; fala também com militares: generais, coronéis, pessoas que têm objetivos militares numa zona de combate ativo. E deixa isto claro para a comunidade internacional, já que, para as forças militares de dois países inimigos, a zona em causa é de intensa atividade militar, não de ações intermitentes ou fortuitas.

Nestes termos, o desafio do diretor-geral da Agência Internacional de Energia Atómica é que se chegue a uma “santuarização” (um neologismo que assume) da central nuclear, de modo que seja vista, não como um problema, mas como uma solução para quaisquer consequências mais graves.

É clarividente que um acidente nuclear teria consequências não limitadas a um dos dois Estados em guerra, mas a uma área geográfica maior e talvez a toda a Europa (provavelmente ao chamado Ocidente, digo eu), pelo que há a insistência da AIEA e a insistência pessoal do seu diretor-geral nesse magno desafio.

Portanto, fala-se muito, neste momento, de aspetos territoriais, perimetrais, que são as preocupações das forças armadas dos dois lados e há progressos. O diretor-geral da AIEA, que estará, novamente, na Ucrânia, para continuar esta rodada de negociações, pensa que, depois disso, é possível ir à Rússia, embora a visita a este país ainda não esteja confirmada.

Quanto à preocupação de Francisco com o impasse sobre o acordo nuclear iraniano, expressa no discurso ao Corpo Diplomático acreditado junto à Santa Sé, por ocasião da entrada no novo ano, Grossi, reconhece que o Santo Padre tem razão. Há, de facto, um impasse, “as negociações foram interrompidas, há muitas reuniões e intercâmbios”. Por isso, a AIEA e o seu diretor-geral, pessoalmente, não querem deixar o vazio político em torno de uma questão tão volátil como perigosa. Há dois caminhos paralelos: o acordo global, o JCPOA (Joint Comprehensive Plan of Action); e a negociação bilateral entre a AIEA e o Irão.

Não tem havido progressos nas negociações. Ao invés, o Irão está a avançar no processo de enriquecimento de urânio, no desenvolvimento e na construção de centrífugas cada vez mais avançadas, o que é muito preocupante, porque estes são passos para a proliferação nuclear que urge conter e evitar. Por isso, Grossi espera ir a Teerão. Como sempre diz que a AIEA é “um lugar de acordo, um espaço, uma plataforma de entendimento mútuo”, sente-se “pronto para viajar e começar de novo, se possível, o mais rápido possível”.

O Sumo Pontífice denunciou repetidamente a imoralidade do uso de armas nucleares e a da sua posse, pelo que Gossi, interpelado sobre o que a agência internacional que lidera pode fazer para promover o uso exclusivamente pacífico do nuclear, vincou a importância e a premência desse uso exclusivamente pacífico, especialmente quando outra crise terrível, a da mudança climática, atingiu a humanidade. Obviamente existe, se não uma redescoberta, pelo menos, “um foco muito mais intenso na capacidade da energia nuclear de fornecer uma solução limpa e livre de carbono para a economia global”, o que se pode ver na Europa Oriental, na China, na Ásia do Sul emergente e em quase todos os lugares.

Contudo, ao mesmo tempo, o problema da posse de armas nucleares está sempre presente. É claro que temos de reconhecer que este é um processo gradual e que “a obrigação do momento é impedir que mais e mais países procurem armas nucleares, especialmente num contexto internacional de grande tensão. Muitos países têm a ideia ideia absolutamente incorreta de que talvez deva ser reconsiderada, neste momento, a possibilidade de desenvolvimento nacional de armas nucleares. É a isso que a AIEA deve dizer “não”. A situação internacional já é difícil e não é lícito torná-la ainda mais difícil. E é verdade o que o Santo Padre, a Igreja disseram: “As armas nucleares não fornecem segurança: é o oposto. É o oposto!” E isto deve ser dito claramente. É preciso ter “a paciência e a capacidade de convencer os Estados”, o que não é fácil.

***

Em suma, é preciso esclarecer que a energia nuclear não está condenada, pois, não é, em si, um perigo especial, como não o é a energia elétrica, a pólvora, a gelomonite ou a dinamite. O que está em causa é o seu uso destrutivo, contaminante e mortífero. Por isso, como em relação a outros tipos de armamento, é de questionar porque se continua a investir em armas, em conflitos, em guerras. Parece que há um certo prazer em destruir e em matar e formar para isso…

Porque não aproveitar a energia nuclear, como energia limpa e livre de carbono, com vista à minoração da crise climática, reduzindo tão drasticamente como possível o recurso às fontes de energia de origem fóssil, às não renováveis?

Dizia em tempos o Papa que se governa com a cabeça. Se calhar, é também preciso governar com o coração, não com a folha de Excel ou com os pés. Trata-se de pessoas e de povos.

2023.01.14 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário