sábado, 21 de janeiro de 2023

São Sebastião celebrado em religião, em folguedo e em cultura

Um pouco por todo o Ocidente, o glorioso santo milanês, martirizado em Roma, é celebrado como padroeiro de comunidades cristãs (dioceses, paróquias, etc.) ou como significativa referência na proteção contra a peste, a guerra e a fome.

É claro, não faltam as trezenas, as novenas, as missas, as procissões. Todavia, é estranho que um mártir seja celebrado com bailes, excesso de comida e de bebida, excecional estralejar de foguetes e atuação de modernos conjuntos musicais. E é incongruente que os povos devotos do protetor das populações contra a peste, a guerra e a fome ignorem, talvez propositadamente, a fome que grassa pelo Orbe, não por falta de recursos, mas pela sua má distribuição; é imoral que, em tempo de pandemia (peste), alguns oportunistas hajam enriquecido despudoradamente, à custa do sofrimento da maior parte dos cidadãos dos diversos países; é absurdo que um dos líderes mundiais confesse desavergonhadamente que as armas são necessárias para alcançar a paz.

Não obstante, há lugares em que a festa se exprime em termos religiosos e em termos culturais. A religião, a arte e a história (com alguns nacos de lenda) emparceiram bem.

Como referi, a festa de São Sebastião, faz-se em muitos lugares do Mundo, muitos dos quais o denominam simplesmente como “o Mártir”. Por exemplo, em terras da Beira Alta, donde sou oriundo, a festividade tem relevância como grande festa de inverno, para Vila Nova de Paiva, de que é o padroeiro, para Moimenta da Beira e para Sernancelhe, embora nestas duas vilas o padroeiro seja São João Batista.             

Porém, onde a festa é celebrada com singularidade é a cidade de Santa Maria da Feira, na diocese do Porto e no distrito de Aveiro. Aqui, a propaganda da festa assinala, obnubilando um pouco o santo, o evento como “Festa das Fogaceiras”, protagonizada por 250 meninas (em alguns anos, o número é maior), “as fogaceiras”, de traje branco e fogaça à cabeça.

As celebrações em causa radicam numa tradição de há 518 anos, segundo a qual, em 1505, estando o território nacional assolado pela peste negra, a população das Terras de Santa Maria, cujo epicentro era Vila da Feira (hoje Santa Maria da Feira), prometeu ao Mártir que, em troca da erradicação da doença, lhe ofereceria, todos os anos, o pão doce local (a fogaça), para a respetiva bênção e para a subsequente distribuição pelos pobres da terra.

Todos os anos, o dia 20 de janeiro, feriado municipal, constitui o ponto culminante das festas. Dantes, as pessoas que ofereciam as fogaças incorporavam-se, com elas, na procissão que saía do Paço dos Condes da Feira e passava pela igreja do Espírito Santo (igreja do Convento dos Loios, hoje igreja matriz), onde o pão era benzido e partido em pedaços para distribuir pelos pobres.

Hoje, as cerimónias do dia 20 abrem, a meio da manhã, com o cortejo cívico (introduzido após a implantação da República), em que se incorporam “as fogaceiras” e que parte do edifício dos Paços do Concelho, seguindo até à igreja matriz, onde é celebrada missa solene e são benzidas as fogaças. De tarde, Sai a procissão em que se incorporam “as fogaceiras”, as autoridades as diversas associações e organizações religiosas e cívicas, com destaque para a Confraria da Fogaça, e que percorre o centro histórico da cidade, para a comunidade poder observar a fogaça já benzida. Se a missa solene é abrilhantada pelo orfeão da Feira, acompanhado a órgão e aos demais instrumentos, a procissão é acompanhada por uma ou duas bandas filarmónicas do concelho.

Atualmente, a maior parte das pessoas já não espera receber a fogaça. Compram-na junto dos diversos fabricantes, nas respetivas pastelarias e similares. Porém, os pobres não são esquecidos pelos promotores e pelos oferentes.

A cerimónia é, depois, replicada em três cidades estrangeiras com uma grande comunidade de emigrantes e lusodescendentes da Feira: este ano, no Rio de Janeiro (Brasil), dia 22, em celebração organizada pela Casa da Vila da Feira e Terras de Santa Maria; em Caracas (Venezuela), na mesma data, num evento promovido pela Associação Civil Amigos das Terras de Santa Maria da Feira; e, em Pretória (África do Sul), dia 29, numa iniciativa da Associação da Comunidade Portuguesa de Pretória. Para o presidente da Câmara Municipal da Feira, Emídio Sousa, esta difusão internacional da festa mais tradicional do concelho demonstra que as ligações entre a população emigrada e a terra natal continuam vivas e dinâmicas, representando um momento de “proximidade e reciprocidade” entre as duas comunidades.

Segundo os promotores, a mais identitária festividade religiosa das Terras de Santa Maria, uma referência cultural e turística em toda a região Norte, “celebra 518 anos de história com uma renovada e fortalecida participação das nossas comunidades”.

A imagem promocional da edição de 2023 expressa o sonho e o orgulho de ser fogaceira, concretizados por cinco irmãs feirenses, que formam belíssimo quadro e reforçam a importância de preservar esta tradição multissecular, transmitida de geração em geração através da família.

O projeto comunitário “Ponto Fogaça”, que envolve cerca de 55 voluntárias do concelho e da região na produção artesanal de casacos de lã, para aconchegar as meninas fogaceiras, reaviva o sentido de pertença e de identidade e o sentido de união e de partilha, caraterísticos da festividade.

A programação cultural das Fogaceiras estende-se por todo o mês e integra a primeira edição do projeto “3 Concertos, 3 Casas”, transportando-nos para o aconchego de três espetáculos intimistas em três espaços carismáticos do nosso território, repletos de história e de memórias.

De 1 a 28 de janeiro, Santa Maria da Feira celebra, em pleno, a Festa nas suas múltiplas dimensões – cultural, religiosa e cívica – num ano marcado pelo regresso de centenas de meninas fogaceiras às ruas do centro histórico, onde desfilam, trajadas de branco e faixa de cor, com a fogaça à cabeça, dando expressão ao voto do povo ao mártir São Sebastião.

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Independentemente da réplica feirense no Brasil, o Rio de Janeiro celebrou a Festa de São Sebastião, padroeiro da arquidiocese, estado e cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. E o cardeal Orani João Tempesta, O. Cist. (da Ordem Cisterciense), arcebispo metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ, falou do Mártir na missa. Respigam-se alguns conteúdos.

Muitos esquecem que aquela cidade se chama São Sebastião do Rio de Janeiro. Por isso, rendem-se graças o santo por interceder pelas pessoas e pela cidade e roga-se-lhe proteção e paz, ao longo do ano, contra a peste, a fome e a guerra.

As celebrações começaram com a trezena (atos de culto e sociais em 13 dias), de 7 a 19 de janeiro, ensejo para reunir vizinhos, amigos e comunidade e para agradecer a intercessão de São Sebastião. Visitam-se as casas das pessoas, passa-se nos morros da cidade e todos param a rezar ante a imagem do santo. O cardeal visitou adolescentes privados de liberdade, bem como as obras sociais do Cristo Redentor, e deu a bênção aos profissionais da Rede Globo.

Com a novena e com a missa, procura-se imitar a vida do santo mártir e ser testemunha de Jesus Cristo para os que são próximos de nós. São Sebastião defendeu a fé até às últimas consequências, atitude que os cristãos devem ter no coração, vivendo o batismo na coragem, sem medo de evangelizar os irmãos. A paz que anelamos só se consegue pelo anúncio do Evangelho.

A arma de Jesus Cristo e dos seus seguidores, que somos cada um de nós, é o amor. Só amor constrói uma sociedade mais justa e fraterna. São Sebastião viveu o amor. Os superiores e o imperador perseguiam os cristãos e achavam que o único modo de anunciar a verdade era pelas armas. São Sebastião, ao invés, anunciava o amor e seguia Cristo, mesmo às escondidas.

Urge enveredar, como Sebastião, pelo caminho do amor e da verdade e anunciar Jesus Cristo. Os discípulos são os que levam ânimo aos entristecidos, coragem aos desanimados e conforto aos enlutados. São missionários de Jesus Cristo na cidade, “que tanto precisa de paz”.

No ano vocacional, o cardeal diz que é preciso atender ao chamamento de Deus para sermos suas testemunhas. Como São Sebastião, somos vocacionados à missão.

Diz o arcebispo metropolitano que São Sebastião é um santo muito popular no Rio de Janeiro, mas a partir da devoção dos seus arquidiocesanos, o Brasil inteiro passará a conhecê-lo melhor.

São Sebastião nasceu em Narbonne. Os pais eram oriundos de Milão, na Itália do século III. Foi, desde cedo, muito generoso, procurando ajudar os irmãos. Recebeu o batismo e zelou por ele.

Entrou para o serviço do império romano, integrou exército, devido ao vigor físico e boa saúde e cedo se tornou primeiro capitão da guarda imperial. Teve muita coragem, pois em tempos de perseguição aos cristãos, anunciava Jesus Cristo aos presos e aos companheiros de exército, sabendo os riscos que corria. Como defensor da fé e da Igreja, ouvia os presos e consolava-os, pondo em prática o que Jesus disse: “Estive preso e fostes-me visitar”Defendeu e guardou os preceitos da fé até ao martírio, ou seja, defendeu a fé até às últimas consequências, sabendo que em algum momento poderia ser denunciado. E isso aconteceu.

Um soldado denunciou-o ao imperador, que o chamou e lhe questionou a fé. Ele manteve-se firme e, com muita coragem, disse que era preciso denunciar as injustiças e o paganismo e, sobretudo, anunciar Jesus. O imperador, furioso, mandou prendê-lo num tronco, e foram lançadas sobre ele muitas flechadas, ao ponto de pensarem que estava morto. Mas Irene, esposa de um mártir, conhecia-o, aproximou-se dele e, vendo que estava vivo, passou a cuidar-lhe das feridas.

Após restabelecer a saúde, o capitão foi ter com o imperador, pois queria o seu bem e o de todo o império. Evangelizou e testemunhou Jesus Cristo por um determinado tempo, mas foi martirizado brutalmente no ano 288, e o seu corpo foi lançado nos esgotos de Roma. Contudo, outra mulher, Luciana, recolheu-o e deu-lhe sepultura nas atuais catacumbas de São Sebastião, em Roma.

São Sebastião pode ser apontado pela prontidão em fazer a Vontade de Deus e pelo espírito de serviço, pois, após recobrar a saúde, voltou-se para os outros e continuou a fazer o bem.

Olhando para vida do grande santo, percebemos que só foi possível ser corajoso devido ao grande amor pelo Evangelho e por Jesus. Temos de aprender com Ele a ter amor a Deus e ao próximo e a vontade de nos doarmos sempre. Sebastião compreendeu que a sua permanência em Milão seria insignificante. Era preciso dialogar com o hostil. A ação de Sebastião foi levar o que carregava dentro: o amor gratuito de Deus por cada homem e por cada mulher que vêm a este mundo.  

Diz o cardeal que o Rio precisa de paz. Por isso, estando a passar pela retoma prudencial depois da pandemia, os cristãos rogam a São Sebastião que afaste da cidade toda a peste, fome e guerra. Pedem ao insigne guerreiro pelos desempregados e pelos que estão no trabalho informal e no subemprego. Pedem que ajude a superar as divisões, os ódios e os muros construídos para separar os irmãos. Enfim, pedem-lhe saúde e paz. Deseja o arcebispo que o exemplo de São Sebastião nos ensine a ser bons cristãos, amando a Deus e ao próximo; e deseja o dom do serviço em favor do outro e implora a graça de sempre se buscar a justiça e o Reino de Deus.

Cultura, civismo e folguedo, sim, mas sobretudo a força da fé, para que a festa seja plena!

2023.01.21 – Louro de Carvalho 

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