sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Multiplicação das salas de aula em Bissau: ação educativa e social

 

No ano de 1987, boa parte das suas crianças, em Bissau, não frequentava a escola e o jovem catequista de 18 anos, Raul Daniel da Silva, quis saber a razão. A resposta foi simples: não havia lugar para elas, pois a rede escolar deixada pelos portugueses em Bissau era exígua.

Assim, a solução foi simples: se não há lugar na escola, cria-se uma escola com uma sala para os alunos do 1.º ao 4.º anos. As paredes são de crintim (canas de bambu ao alto tecidas com fibras de palmeira) e o processo replicou-se sucessivamente. Passados quase 36 anos, a Cooperativa Escolar de S. José tem 62 salas para mais de 3.200 alunos, do jardim de infância ao 12.º ano, com 183 profissionais (professores e outros funcionários), em três centros escolares: Mindará, Cuntum e Jericó, em Bissau. E Raul Silva, diretor da cooperativa, não se envolve em qualquer partido político, nem compra apartamento na Europa, pois, como diz, se está em Bissau, não faz sentido comprar apartamento na Europa; se tiver dinheiro, construirá no seu país.

Em entrevista ao jornal digital 7margens, publicada a 8 de janeiro, conta como tudo aconteceu. Era catequista de muitas crianças na paróquia de Santo António do Bandim, em Bissau, e descobriu que muitos não iam à escola. Como gostava de trabalhar com as crianças, pesquisou e descobriu que o aparelho colonial dos portugueses, quando saíram da Guiné-Bissau, não era suficiente para receber todas as crianças em idade escolar. Então, recrutou colegas catequistas e construíram uma barraca em Mindará e as crianças vinham de toda a parte. Cada uma trazia, de casa, à cabeça um banquinho para se sentar e escrevia sobre as pernas. 

Como o bairro de onde vinham mais crianças era Cuntum, fez-se ali a cooperativa, pois uma pessoa sozinha não é suficiente para fazer funcionar uma escola: é uma coisa social. Ao invés da mentalidade de dar à escola o nome do fundador, esta nunca teve o nome do fundador, nem o catequista diz a ninguém que a escola é sua, dado que resulta do esforço de todos. Construiu-se a escola em Cuntum, que começou em crintim. E, depois, foi-se construindo o edifício em adobe e verificou-se a necessidade de fazer carteiras. 

Em 1992, a Fundação João XXIII, de Portugal, deu algum dinheiro, veio um grupo de jovens que ajudou a comprar materiais (cimento, chapas de zinco…), cobriu-se a construção e fez-se o pavimento. O bispo D. Settimio Arturo Ferrazzetta (1924-1999) apoiou com alguns materiais. E, à medida que os pais iam pagando a mensalidade, gastava-se gradualmente o dinheiro na melhoria da escola. Em 2016, demoliu-se essa escola e construiu-se a que existe hoje, em Mindará, com apoio do crédito bancário que se negociou.  O nome S. José tem a ver com o facto de o catequista, sendo religioso, não ter querido dar à escola um nome provindo da luta de libertação. Como S. José tem sempre uma criança e eles abraçam todas as crianças, “ficou assim”. 

O catequista foi sempre professor e gostou de o ser, mas deixou, há pouco, tal mister, para atender às funções de direção e para participar na formação dos professores. Frisa que não foi formado no ensino superior, tendo concluído apenas o 9.º ano. E, quando tinha aquela escola, com tantas crianças, não podia ir à escola e deixar as crianças sem direção. Tornou-se leitor e passou a contratar formadores, pedagogos, para darem formação aos professores e ao próprio, que estava também na escola. E, com tantos anos de serviço e de pesquisas sobre grandes pedagogos, como Paulo Freire, Jean Piaget e outros, julga estar em condições.

A explicar a opção pelo modelo de cooperativa, o diretor contesta que as escolas tenham o nome dos fundadores e donos, porque não se julga “dono das crianças, nem dos professores, nem dos funcionários” e “cooperativa era uma forma de dizer ação coletiva com as leis das nossas [três] escolas a serem aprovadas por nós”. Ainda em outubro de 2022, a direção da escola e os pais e encarregados de educação aprovaram, em reunião, o calendário para o ano letivo 2022-23. Nada de relevante é ideia de uma só pessoa, mas resulta da opinião das várias pessoas.

E Raul Silva explana: “Esta é a razão de ser de uma cooperativa, para que tenha a participação e as ideias de mais pessoas. Nós, para termos um plano político-pedagógico, precisamos de levá-lo a uma assembleia. Através da cooperativa já temos uma assembleia, que denominamos conselho diretivo. Nele participam representantes dos alunos, dos pais e encarregados de educação, dos professores dos diferentes blocos [os três centros escolares] e convidados que nos possam ajudar no tema que nós vamos discutir.” 

Sobre a posição da sua cooperativa no panorama escolar do país, recusa-se a fazer um juízo pessoal, deixando a avaliação para as outras pessoas. Porém, sabe que fazem comparação entre a S. José e o Liceu João XXIII (da diocese), sendo que, em termos organizativos, uns colocam o liceu (onde ele próprio estudou) acima da S. José, enquanto outros pensam o contrário.

Quanto ao que representa este projeto no panorama oficial e à relação com a diocese, sublinha o indispensável apoio do governo, através do Ministério da Educação Nacional, vincando que, em 1991, o governo aprovou um decreto em que reconhece não ter condições de atender todas as crianças em idade escolar, pelo que dá licença a uma pessoa particular ou coletiva para criar uma escola, embora defina as regras a observar. Assim, a S. José tem licença, alvará e inspeção. É escola particular, com ensino validado pelo Estado, senão não teria certificado válido. 

O governo está com problemas nas escolas oficiais, devido aos sindicatos, que fazem sucessivas greves, quebrando o ritmo das escolas estatais. Em termos de oferta, vêm logo a seguir às escolas estatais, as da diocese, que implantou escolas em quase todo o território nacional. Onde há missão católica, há escola e saúde. Os dirigentes da cooperativa integram a Comissão Diocesana do Ensino. A cooperativa tem autonomia, mas, sendo escola de inspiração religiosa, conforme a orientação da diocese, cumpre algumas regras. Por exemplo, a diocese introduziu a disciplina de Iniciação à Vida e a cooperativa é obrigada a lecioná-la. Porém, divide as coisas: de segunda-feira a sexta-feira, a escola é laica, com católicos, protestantes, muçulmanos, animistas, sem diferença entre cor, religião, etnia, nada; ao sábado e ao domingo, a escola é reservada à catequese, vindo grande quantidade de crianças.

A seguir, Raul Silva fala do percurso destes quase 36 anos de escola.

Jovem pobre, vendo crianças sem escola, sentia a necessidade de dar a sua contribuição. O sonho era implantar a escola nas localidades em que não havia escola pública. Mas não havia meios financeiros. Em muitas aldeias ou tabancas, não há escola. As crianças, para terem escola, andam sete, oito, 15 quilómetros, ida e volta, por dia. Algumas tabancas organizam-se, constroem a sua escola comunitária e colocam lá pessoas que estudaram na S. José (fizeram o 12.º ano, ou o 11.º ou o 9.º ano). E, como não têm condições de continuar a estudar, voltam para a tabanca e servem de professores, mas sem experiência pedagógica. Na região de Oio, a mais próxima de Bissau, a S. José trabalha com 18 escolas comunitárias, dando formação e assistência técnico-pedagógica aos jovens e apoio à população para livros. Para isto, põe combustível nos carros, leva formadores, paga-lhes, dá-lhes de comer e gasta alguns consumíveis. Não tem apoio financeiro para isso, pelo que retira verbas do seu orçamento. Lamenta não ter meios para responder às muitas solicitações de apoio de escolas comunitárias e para alargar o apoio a toda a gente. 

É claro que nem tudo corre da melhor maneira. Por vezes, as escolas comunitárias funcionam sem carteiras. Em 1992, o governo deu às ONG e a outras entidades isenção na importação de materiais para o seu trabalho, mas tal foi suspenso por um despacho temporário. S. José tem três contentores da Fundação João XXIII com carteiras e com material de saúde para desalfandegar, desde agosto, sem despacho de isenção. Vai-se terminar a construção da escola de Cuntum e tentar colocar lá educadores de infância e professores. Vai começar a formação de educadores de infância e de professores do ensino básico. As escolas de formação de professores já têm problemas, com greves sucessivas e com reclamações de professores. Se não se fizer a formação, não haverá professores formados com boa capacidade para dar aulas.  

Todos os anos, antes do início das aulas, há OTP (Organização Técnico-Pedagógica) ou seja, um seminário de preparação dos professores. Uma vez por mês, há comissões de estudo: no primeiro sábado, faz-se uma sessão coletiva e, depois, os professores de cada área partilham o que vão dar no mês. Os conteúdos são iguais. Produzem-se os livros a entregar aos alunos e todos os alunos e professores da mesma disciplina ou área curricular dão o mesmo. Os livros são vendidos, mas os pais vão pagando segundo as suas possibilidades: ninguém fica sem livro por não poder pagar. Já foi lançado o transporte escolar para alunos e professores. E há a rádio escolar, com dois jornalistas profissionais (o resto são alunos). “Foi a primeira rádio escolar do país”.

Sobre o papel da associação de pais, diz que, havendo qualquer programa a aprovar, chama-se o conselho diretivo, que a associação integra. Por exemplo, para aumentar as mensalidades, dialoga-se com a associação de pais, explicam-se os motivos e eles explicam aos outros pais, para não haver surpresa. Depois, numa “mesa”, aprova-se. Decide-se em diálogo. Nunca decide um só.  

No atinente à sua aprendizagem deste tipo de trabalho, confessa que é sempre a pessoa que encabeça a organização. Fundou o primeiro grupo paroquial de adolescentes da diocese, a primeira cooperativa escolar da Guiné-Bissau, exemplo para as muitas que já existem. Agora, há muitas, mas esta foi a primeira. Porém, frisa que “não somos donos de nós mesmos e sozinhos não somos nada”. E diz que este trabalho tem a ver com a sua natureza de partilhar o que tem: “É isso que me dá força para trabalhar. Além disso, ver pessoas, como as da Fundação João XXIII, que dão de si, pagam o avião e vêm de Portugal apoiar-nos, isso dá-me força.” 

Pensa que, para o futuro, é preciso criar condições para os jovens não terem de ir estudar para fora. Para tanto, é preciso haver ali universidades capazes de responder às necessidades dos jovens, de lhes inspirar confiança, que tenham ensino de qualidade e façam com que os jovens saiam preparados para o mercado de trabalho igual ao Senegal, a Marrocos, a Portugal.

Revela que vários partidos políticos o quiseram ter como filiado, mas que prefere trabalhar como cidadão, que ama o país e que o quer ver a avançar, pois não é preciso ser político para fazer algo pelo país. Em eleições, sabe em quem votar, porque estuda os programas. Recusa, como ficou dito, comprar apartamento na Europa e, se tiver dinheiro, comprará no seu país.

Critica a central elétrica, que ora dá luz, ora não dá, os buracos nas estradas, apesar do imposto para o Fundo Rodoviário, e o despesismo dos políticos. E, perguntando “onde é que os políticos põem esse dinheiro”, pensa que “tem de haver outra geração que faz a gestão do dinheiro”, a que se forma na S. José, com nova mentalidade, com consciência da cidadania.

Eis o trabalho e as aspirações de um cidadão livre, líder de cabeça e de coração!

2023.01.13 – Louro de Carvalho

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