domingo, 29 de janeiro de 2023

Ainda não está construído o altar-palco da JMJ, mas já é famoso

 

A opinião pública está alarmada com a previsão de custos do altar-palco – no Parque Tejo, junto ao rio Trancão – de onde o Papa Francisco presidirá às celebrações do encerramento da próxima Jornada Mundial da Juventude (vigília de oração e missa) que se realizará em Lisboa, de 1 a 6 de agosto deste ano. Com efeito, a estrutura e as suas fundações comportarão, se não houver revisão do projeto, cerca de seis milhões de euros, a expensas da Câmara Municipal de Lisboa (CML).

Todavia, está previsto um outro palco no Parque Eduardo VII para a missa de abertura da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), sob a presidência do Cardeal Patriarca de Lisboa, cujo custo rondará os dois milhões de euros, também a expensas da mesma CML.

Fazem-se as contas, juntando ao preço base destas edificações o referente ao imposto sobre o valor acrescentado (IVA), que, tratando-se de obras a cargo de entidades públicas, não representa despesa sem retorno para o Estado. Na prática, é apenas um custo de oportunidade.

Em termos de gestão de dinheiros públicos e de equipamentos, no caso uns palcos-altares, questiono-me se eram necessárias duas estruturas deste jaez, uma no Parque Eduardo VII e outra no Parque Tejo. Se o mais contém o menos – e é possível que o número se participantes no ato inaugural da JMJ se aproxime bastante do dos participantes nos atos do encerramento – porque não se optou apenas pela estrutura do Parque Tejo? O mesmo não digo do atinente ao local, que, pelos vistos, já existe, para a celebração do Papa com os voluntários, após o encerramento formal da JMJ, pois aí o número de participantes será bastante reduzido.

Argumenta a CML que se trata de investimento em estruturas que servirão, no futuro, para outros eventos, mas não diz quais, nem de que género. E os organizadores de eventos dizem que não temos eventos com assistência de mais de 80 mil pessoas.

Pensa o Governo – e bem – tal como a CML e a Câmara Municipal de Loures que a JMJ serve de pretexto para a requalificação daquela zona dos concelhos de Lisboa e de Loures, ficando para o futuro um belo parque urbano.      

Voltando ao altar-palco, é de referir que, sendo uma estrutura para eventual serventia futura, seria conveniente não a vincular, de todo, ao momento da JMJ. Assim, elementos religiosos, cadeiras, bancos, etc. não devem ser fixos, mas ser colocados para o momento e ser retirados sem dano para a estrutura. E não se justifica a dimensão: 1300 concelebrantes em palco asfixiam o Papa!

Por outro lado, deviam as empresas candidatas à construção das estruturas e das fundações não se aproveitar da ocasião para meterem a mão na bolsa do erário público. E os responsáveis deviam ter a capacidade de evitar o tentador oportunismo. É certo que tudo é caro em Lisboa, mercê da natureza dos terrenos, neste caso, por se tratar de uma zona degradada e pantanosa, e da tentação especulativa. Mas os custos anunciados, se não há forte probabilidade de utilização futura, raiam o escândalo, face à magreza de recursos das nossas populações, especialmente em tempo de crise provocada pela inflação e pela guerra na Europa. E espanta-me que não estivessem ao corrente dos custos tanto o chefe da estrutura de missão para a JMJ, José Sá Fernandes, como o presidente da Fundação JMJ, D. Américo Aguiar. Não se entende esta falta de articulação entre parceiros do mesmo projeto.

A CML declarou ter seguido as indicações da Igreja, enquanto o Vaticano se demarca do projeto. E penso que nem a Igreja, isto é, D. Américo Aguiar, tem poder para vincular a CML, nem esta necessita de aceitar literalmente todas as indicações. Há o que se chama negociação.  

Dizem agora que vão rever os projetos. Espero que ultrapassem o problema da falta de tempo e que não ponham em causa a segurança das estruturas, desde logo através da drenagem, da impermeabilização e da compactação do terreno e da solidez das fundações.

***

A enormidade de custos, que os responsáveis reconhecem, não invalida a necessidade e a oportunidade da obra, sobretudo de um altar-palco no Parque Tejo, para a JMJ. E não vale a pena derramar lágrimas de crocodilo pelos pobres, pelo dinheiro que não há. A CML e o Estado Português comprometeram-se, ao mais alto nível, com a JMJ em Lisboa. Isto aconteceu em janeiro de 2019. Já estava em vigor a Constituição que nos rege. É certo que as circunstâncias mudaram, mas não mudaram o compromisso. Houve tempo mais do que suficiente para voltarem atrás. Preferiram, no entanto, respeitar a boa relação com a Santa Sé e cuidar da imagem externa do país, bem como aproveitar o ensejo para requalificar uma zona degradada na capital e arredores. Há que assumir o ónus do evento, que é único no país.

A este propósito, lembro-me de que, numa festa-encontro, em Lamego, dos alunos e professores do Seminário de Lamego (seminário maior) com os do Seminário de Resende (seminário menor), a meio da tarde, o ecónomo veio ter comigo a pedir que fosse com ele à padaria da Rina comprar pão. É óbvio que a satisfação de tal pedido era irrecusável.

Entretanto, o ecónomo confidenciou-me: “Gastou-se tanto dinheiro com a festa.” E eu retorqui: “Pois, mas quem organiza festas tem de arranjar forma de as pagar.” Lá seguimos com o pão para o jantar. E tudo correu bem, na maior alegria, sobretudo dos miúdos de Resende, que não se deram conta das preocupações do ecónomo do seminário maior.  Enfim, quem quer festas paga-as!

***

Juntamente com as críticas à despesa excessiva numa Igreja pobre à maneira do Papa Francisco e num Estado que mal arranja dinheiro para os seus encargos vitais, surgem os pruridos conexos com a índole aconfessional do Estado nos termos da Constituição da República Portuguesa (CRP). Há quem aponte a incongruência destes encargos do Governo e dos municípios com a laicidade do regime republicano, falando mesmo em laicismo, raiando a indignação.

Há constitucionalistas a defender que o Governo e os municípios não devem empenhar-se nesse tripo de construções, invocando a separação entre o Estado e as Igrejas; e há constitucionalistas a sustentar que a aconfessionalidade do Estado, seja no quadro da administração central, seja no da administração regional ou local, não impede a cooperação, desde que o tratamento seja equânime para as diversas confissões religiosas. Aliás, é este o espírito da lei da liberdade religiosa (Vejam-se os artigos 2.º e 5.º da Lei n.º 16/2001, de 22 de junho, cuja última alteração lhe foi introduzida pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro): a não discriminação e a cooperação.

Aliás, nos termos da CRP, o Estado português não é explicitamente laico, no sentido que lhe deu o republicanismo francês, transferido para a nossa I República com o bom senso da separação Igreja-Estado, mas imbuído do espírito anticlerical, da ideia de que a religião acabaria em breve, mas que era lícito a cada um ter as suas convicções religiosas e exercer o culto nos lugares próprios (proibido nos lugares públicos). Porém, não vale a pena dizer que o Estado é laico, mas a sociedade é religiosa (que também não o é de todo atualmente, se é que alguma vez o foi).

Por definição da CRP, Portugal “é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária” (artigo 1.º). Baseia-se “na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas” (cf artigo 2.º). A única referência a algo parecido com a laicidade vem no artigo 43.º (liberdade de aprender e ensinar): “O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas” (n.º 2); e “o ensino público não será confessional” (n.º 3).           

A este respeito, é de atender ao escrito por Filipe Correia, editor do Expresso, no Expresso Curto de 26 de janeiro, estribado na opinião de Tiago Serrão, constitucionalista e docente na faculdade de Direito da Universidade de Lisboa:

“A expressão ‘Estado laico’ não consta, em termos literais, da Constituição, mas é o que resulta da mesma quando se alude à separação das igrejas e outras comunidades religiosas da pessoa coletiva pública Estado. A jurisprudência do Tribunal Constitucional corrobora esta leitura […] Veja-se, por exemplo, o Acórdão 544/14, no qual se alude a uma neutralidade dos poderes públicos, imposta pela Constituição, embora, naturalmente, não em termos rígidos.”

Aquele acórdão, de 15 de Julho de 2014, explicita: “[…] a Constituição exige dos poderes políticos a neutralidade em matéria religiosa, num Estado laico e não confessional, com expressão no princípio da separação entre as igrejas e outras comunidades religiosas e o Estado (artigo 41.º, n.º 4) […]. E o n.º 4 do artigo 41.º estipula: “As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto.”

Sabemos da neutralidade colaborante portuguesa, por exemplo na Guerra do Golfo (1990-91)!

O regime dos Estados Unidos da América (EUA) é republicano e os Chefes de Estado juram sobre a Bíblia e clamam “God bless America!” e tem o dia de Ação de Graças. Por sua vez a França, tão radicalmente laica, financia as obras de restauro das catedrais. Por isso, o laicismo não é um imperativo do republicanismo. Existe em ditaduras e monarquias e não em algumas repúblicas.

Quanto à JMJ, a despesa é necessária. Importa que seja mínima e que haja retorno significativo.

De laicismo, como luta pelo bem-estar do povo (láos, em Grego), é que Portugal precisa!

2023.01.29 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário