quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Desclassificação dos documentos militares anteriores a 1975

 

Na Assembleia da República (AR), os deputados discutiram, a 26 de janeiro, um projeto de resolução do Bloco de Esquerda (BE) a recomendar ao Governo a desclassificação de todos os documentos que estão nos arquivos militares, anteriores a 1975, em particular os que respeitam à Guerra Colonial, a partir de 1961. O projeto foi rejeitado pelos votos contra do Partido Socialista (PS), do Partido Social Democrata (PSD) e do partido Chega; foi contemplado com a abstenção da Iniciativa Liberal (IL); e obteve os votos a favor da bancada bloquista, do Partido Comunista Português (PCP), do partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) e do Livre.

O PS, pela voz do deputado Diogo Leão, julgou excelente o propósito do BE, mas não conforme com a realidade. Ou seja, não é verdade que grande parte do acervo documental militar se encontra classificado. Com efeito, no Arquivo Histórico Militar não há um único documento anterior a 1974 que se encontre classificado. No Arquivo Histórico da Força Aérea a situação é semelhante, todos os documentos relativos à Guerra Colonial foram desclassificados e são passíveis de consulta. Só no Arquivo Histórico de Marinha é que há alguns documentos classificados, mas a Comissão de Desclassificação de Documentos da Marinha Portuguesa fez a desclassificação da vasta maioria dos documentos deste período histórico. Já os documentos Organização do tratado do Atlântico Norte (NATO) anteriores a 1975 ainda estão classificados, mas o Estado português não tem, de motu proprio e de forma unilateral, capacidade jurídica ou poder para desclassificar estes documentos. Assim, como disse o deputado, “não se desmontam mitos, como o mito imperial, à custa de criar mitos contemporâneos”, como o de que “a vasta maioria dos documentos militares são secretos”, quando o “são uma absoluta minoria”.

Também o PSD, pelo deputado Pedro Roque, afirmou a consonância com o “espírito” do projeto, mas vincou o “facto de esta matéria ter um enquadramento legal” que impede, por exemplo, a divulgação de documentos que contenham dados pessoais. 

Patrícia Gilvaz, da IL, sustentou que o partido não se opõe à divulgação de documentos históricos relativos à Guerra Colonial, mas questionou a intenção do BE: “Será reconstruir a História tendo como base um princípio de transparência ou contribuir para uma visão ideológica da História, esperando com isso encontrar novas formas de atacar as forças militares e fazer ruído?”

João Dias, do PCP, vincou a necessidade de desclassificação dos documentos históricos e alertou para a falta de recursos dos arquivos para tratar esta documentação. 

Rui Tavares, do Livre, defendeu que não há debate maduro acerca do passado “sem acesso a documentos disponibilizados aos historiadores, aos professores, à academia, aos investigadores”.

E André Ventura, do Chega, classificou o projeto do BE como uma “enorme irresponsabilidade” que “põe em risco a nossa História”.

Porém, Joana Mortágua, do BE lembrou que os dados pessoais podem ser expurgados dos documentos e sublinhou a irónica contradição das críticas ao projeto, visado simultaneamente pela inutilidade e pelos perigos. E, frisando que “nenhum país se constrói no presente e no futuro, sem olhar para trás com verdade”, explicitou: “Queremos acesso à verdade toda, para que as gerações futuras possam ter acesso à História baseada em factos e não em mitos.”

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Não é a primeira vez que os deputados se debruçaram sobre o tema: há dois anos uma iniciativa idêntica ficou pelo caminho, com o voto contra do PS e do PSD, com a alegação de que uma medida desta natureza pode pôr em causa o interesse nacional. Contudo, militares e historiadores garantem que o maior problema é a falta de recursos e de organização dos arquivos.

Um “imperativo histórico” – refere agora o projeto de resolução do BE rejeitado na AR.

O debate parlamentar levanta a questão: o que está ainda classificado nos arquivos militares e porquê? Augusto Santos Silva, presidente da AR, era ministro da Defesa em 2010, quando recebeu o pedido para a desclassificação dos fundos do acervo documental do Arquivo da Defesa Nacional (ADN). E, em despacho de 14 de dezembro de 2010 (interno, não publicado), mandou desclassificar todos os documentos constantes dos arquivos anteriores a 1975.

O coronel Aniceto Afonso, militar, historiador (coautor da obra Guerra Colonial , com o coronel Carlos Matos Gomes) e, entre 1993 e 2007, diretor do Arquivo Histórico Militar (pertencente ao Exército), conta que, naquele período, a desclassificação de documentos era feita casuisticamente: quando um leitor sabia que um documento existia e o queria ler, o documento ia a “uma comissão e era desclassificado”. Era o que se fazia até o ministro exarar o dito despacho, que devia valer, para todos os arquivos militares. Desde aí, todos os documentos estão desclassificados, pelo que podem ir a leitura sem a desclassificação por essa comissão. São excecionados os documentos que se regem por normas próprias, por exemplo, os respeitantes à Justiça ou à Saúde.

Aos documentos que “integrem dados nominativos” (informação pessoal), de acordo com a lei, só se pode aceder, “decorridos 30 anos sobre a data da morte das pessoas” ou, não sendo conhecida a data da morte, “decorridos 40 anos sobre a data dos documentos” e não menos de “dez sobre o momento do conhecimento da morte” (limitação não absoluta, desde que os dados pessoais sejam expurgados do documento antes de este ser consultado). Estas determinações aplicam-se a todos os arquivos. No caso dos militares, acresce a possibilidade duma classificação específica, de segurança – muito secreto, secreto, confidencial e reservado –, que é a que esteve em causa no debate parlamentar acima referido.

Em geral, toda a documentação está a consulta no Arquivo Histórico Nacional e no ADN, mas há resistências, nomeadamente no atinente aos arquivos afetos aos ramos das Forças Armadas. E há documentação não acessível por algumas hesitações em considerar o despacho do ministro da Defesa suficiente para desclassificar. Por isso, segundo alguns, conviria uma lei que clarifique a desclassificação e confirme o despacho, que é utilizado um pouco casuisticamente.

Às vezes a documentação não está a leitura, porque os fundos dos arquivos não estão tratados. E esse é o principal problema, pelo devia a lei obrigar a pôr lá pessoal que o pudesse fazer. O ADN, por exemplo, que teve cerca de uma dezena de funcionários, está reduzido a dois/três.

O coronel Borges da Fonseca, que também liderou o Arquivo Histórico Militar, garante que, pelo menos, nos arquivos do Exército, todos os documentos estão acessíveis, nos limites impostos pela lei. E qualifica de “mito” a ideia de que há um manto de secretismo à volta dos documentos militares. E, observando que se tem falado muito do massacre de Wiriyamu, aponta que o relatório está disponível e que, em vez de imaginar que é muito secreto, o melhor é ir consultar os arquivos.

Entretanto, vários historiadores pronunciam-se de diversos modos. Irene Flunser Pimentel, que defende que os 50 anos do 25 de Abril (que se cumprem em 2024) devem dar o mote para abrir toda a documentação histórica relativa ao Estado Novo e à Guerra Colonial, tem viva a memória de quando avançou para a tese doutoramento. Os entraves no acesso às fontes foram de tais que mudou o objeto da investigação: ia fazer a tese de doutoramento sobre a Guerra Colonial, mas acabou por se doutorar em 2007 com um aclamado estudo sobre a polícia política.

Já o historiador António Araújo diz não ter razões de queixa dos arquivos militares: “Sempre foram dos mais abertos.” Foi isto que lhe permitiu, em 2008, com António Duarte Silva, trazer ao público quatro documentos que comprovam o uso de napalm (bomba com mistura química de Naftenato de alumínio e Palmitato de alumínio mono e di-hidroxilados) pelas tropas portuguesas e que estavam classificados como “muito secretos” ou “secretos”. Só então foram desclassificados, a pedido dos dois historiadores. Não tiveram problema nenhum em desclassificar, mas António Araújo diz que faz sentido “clarificar, de uma vez por todas, que os documentos são acessíveis”.

Fernando Rosas observa que há barreiras no acesso à documentação guardada em arquivos militares, quer pela documentação que está classificada, quer pelo facto de haver muito material não tratado. Ainda é do tempo em que, para se consultar o Arquivo Histórico Militar, era precisa uma cunha ao general e eram precisos uns conciliábulos. Com Aniceto Afonso como diretor, isso mudou substancialmente, passou a ser um arquivo com regras. Mas decaiu. E um arquivo decaído facilita a existência de critérios, formais ou informais, de restrição do acesso. Há “uma espécie de burocracia cinzenta em que ninguém se interessa muito pelo arquivo”. Por outro lado, diz que “não há boa vontade dos responsáveis militares no que toca à facilitação do acesso a certos tipos de documentação”. A memória da Guerra Colonial continua, por vezes, traumática.

Carlos Matos Gomes, capitão de Abril, coautor de A Guerra Colonial, também aponta como principal problema a falta de recursos e a consequente falta de organização da documentação disponível. Não é questão política de secretismo, pois o Exército tem os seus arquivos abertos, é questão de falta de meios e de organização. Por isso, defende que a presidência do Conselho de Ministros, porque é um assunto interministerial, deveria nomear uma comissão de pessoas ligadas aos arquivos que verificasse em que moldes e que regras existem para estes arquivos, para saber o que há, porque não se faze ideia. Porém, entende que “não é preciso fazer uma lei nova, é preciso tornar eficaz o que já existe”.

E, quanto à questão do secretismo – diz o militar historiador –, ela não se põe em relação ao que está nos arquivos, mas ao que lá não está: “Há arquivos secretos fechados em gabinetes há 50 anos.” E dá o exemplo do navio Angoche, de que não se sabe nada. “Sabe-se que há um processo, mas está fechado” – atira.

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Não se percebe, a não ser por falta de informação correta o motivo por que o BE apresentou a Resolução. Não se entende que, perante dúvidas a esclarecer e arestas a limar, se rejeitou o projeto do BE. Não é questão da maioria absoluta do PS, pois os votos contra são da esmagadora maioria. É pudor, é trauma. Assim, não haverá Museu da Guerra do Ultramar e não se reescreverá a História segundo ou contra “o politicamente correto”. E a verdade jazerá no limbo do tempo.  

2023.01.26 – Louro de Carvalho

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