quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

Ocidente, Islão e Rússia face à democracia liberal representativa

 

A 3 de janeiro, José Pedro Teixeira Fernandes escreveu, no Público, um artigo de opinião sob o título “A Rússia, o Ocidente e a democracia liberal”, em que sustenta a tese de que a Rússia não adotará uma democracia liberal representativa ao jeito do Ocidente.

A contemporânea ideia de democracia representativa, enquanto modelo político, remonta, no Ocidente, à transição do século XVIII para o século XIX, sendo o seu evento de referência a Revolução Francesa, com a trilogia da igualdade, liberdade e fraternidade.

O tríplice ideário abateu, ao menos teoricamente, a desigualdade tradicional entre príncipes e súbditos, criando para todos o estatuto de cidadãos (foram definidos os direitos do homem e do cidadão), e extinguiram-se os títulos nobiliárquicos. Porém, não foi um sucesso de igualdade a revolução, pois deixou para trás as mulheres (a declaração dos direitos da mulher não foi assumida) e estabeleceu o voto censitário (aberto a quem tivesse poder económico e o mínimo de literacia). A liberdade defendida era a do cidadão e não apenas a da nação. No entanto, a onda de perseguições surgiu do não reconhecimento prático da liberdade para todos. A fraternidade ficou eclipsada, exceto no quadro dos franco-mações e em grupos congéneres. E o regime de república desembocou no regime imperial de Napoleão Bonaparte.     

Com a invasão da Ucrânia pela Rússia reergueu-se em muitas das mentes o facto da não absorção da democracia representativa liberal pela Rússia, o que nem mesmo Mikhail Gorbatchov propunha no âmbito da Perestroica e da Glasnost.

Diz o renomado colunista que, olhando para a história da Rússia, “apenas houve duas curtas experiências liberais à entrada e à saída do século XX”. A primeira, efémera, ocorreu em 1917, na I Guerra Mundial, com a Revolução de Fevereiro, e foi anulada pela Revolução bolchevique de outubro, transformação que levou à “desintegração parcial do Estado russo, com substanciais perdas territoriais só recuperadas com dificuldade mais à frente”. A segunda ocorreu nos anos 1990, após a desintegração da União Soviética, de que resultaram significativas perdas territoriais e de influência no mundo, bem como a mudança para a economia capitalista liberal, o que, para muitos russos, constitui “uma memória traumática, de penúria, de caos e de fraqueza”. E Teixeira Fernandes questiona-se se “a inexistência de uma democracia liberal” resulta só do “autoritarismo de Vladimir Putin” ou se “a explicação é mais complexa e profunda”.

Todavia, face ao caso da Rússia, levantam-se outras questões pertinentes sobre a democracia liberal e sobre a validade universal das suas características: se é forma de governo válida para qualquer sociedade; se é “a melhor forma de governação humana” ou a menos má, frente às demais alternativas de regimes políticos; e, sendo forma de governo generalizada nas sociedades humanas, por que motivo não funciona em muitos Estados nem é desejada por muita da população. Não obstante, a rejeição da tirania e da opressão é transversal a todo o ser humano. Pela sua complexidade, não há resposta definitiva, mas o colunista dá sugestões de resposta.

A ideia de democracia liberal, enquanto pretenso modelo político universal, “tem a sua génese no Ocidente na transição do século XVIII para o século XIX”, inspirada na democracia ateniense da Antiguidade clássica (rejeitou-se o modus vivendi espartano), embora assuma o status de criação moderna e contemporânea. E Teixeira Fernandes sustenta que, sendo ideia política secular, está subtilmente imbuída da mundivisão universalista do Cristianismo latino (católico e protestante). Aliás, o conceito de Ocidente, inicialmente geográfico-secular “tem origem na designação medieval de Cristandade ocidental”. Contudo, o Iluminismo do século XVIII fê-lo passar a usar crescentemente a razão para delinear a sua peculiar cosmovisão universalista, afastando-se dos “tradicionais princípios dogmáticos de fé religiosa”. E emergiu “a convicção da existência de uma razão universal, similar em todos os seres humanos”. Assim, pelo uso da razão, “qualquer ser humano, em qualquer parte do mundo, chegaria a similares valores e princípios”. E neste quadro mental, aliado à ideia de progresso moral (de princípios, valores e normas) e material (científico, técnico e tecnológico), se alicerça a universalidade da democracia liberal no Ocidente.

Ao invés, a Rússia, cuja história oscila entre a admiração e a rejeição para com o Ocidente, tem da democracia liberal impressão e conceito que a marcam negativamente em termos emocionais.

Simultaneamente, o mundo globalizado deste século é palco de outras cosmovisões de convicções universalistas antinómicas e antagónicas. Por exemplo, a do Islão estriba-se na certeza de que a sua visão do mundo é válida e salutar para toda a humanidade, “ancorada numa fé religiosa tradicional e dogmática”, que, ao invés do que sucedeu no Ocidente, não se transmutou em ideário e em práxis secular e racional. Muitos islamitas estão convictos da bondade e da validade universais dos seus “valores, religiosos, morais e políticos” (E por eles matam!), não se colocando a questão da autonomia das realidades terrestres, face ao devir social e político, que a práxis católica descobriu, pelo menos, a partir do Concilio Vaticano II (1962-1965), embora entenda que é seu dever imbuir do espírito evangélico as ditas realidades terrestres: a fé deve ter consequências na política, na economia e na ação social. Assim, não é por acaso que a maioria dos islamitas rejeite o demoliberalismo, visto como universalismo ocidental, émulo das suas sociedades.

Porém, como afiança Teixeira Fernandes, o caso da Rússia é diferente. Nesta, enraizou-se uma funda rivalidade com o Ocidente, cuja origem está nas divisões do Cristianismo, assumindo o Império Russo, como herdeiro do Império Bizantino, um “sentido de missão, de excecionalismo e de identidade única”: o Estado russo é, assim, o grande “guardião do verdadeiro Cristianismo”, o ortodoxo. Tanto assim é que, apesar da índole ateia e antiteísta do regime implantado pelo bolchevismo, que perseguia duramente a religião católica (os seus agentes chegaram a ser considerados espiões do Vaticano), tolerava e até protegia as comunidades ortodoxas. E, agora Vladimir Putin, que recusou o cessar-fogo na Ucrânia pelo Natal do Ocidente, decretou-o para o Natal ortodoxo, a 6 e 7 de janeiro.

É certo que a Rússia teve o seu momento de metamorfose secular, que resultou, não do Iluminismo do século XVIII, euroamericano, mas da revolução bolchevique de 1917. Aí se erigiu a Rússia soviética como guia do universalismo do proletariado e das classes trabalhadoras. Mas o colapso do regime soviético, após a queda do muro de Berlim em 1989, fez reemergir gradualmente o excecionalismo russo, de contornos ortodoxos, dando aos russos a ideia de voltarem a ser um farol da humanidade e não de serem seguidores dos “modelos culturais e políticos” do Ocidente.

O entendimento das dificuldades do demoliberalismo pela Rússia só é possível se percebermos os limites da visão ocidental, como tábua interpretativa do mundo. Não é a evolução da Rússia que não encaixa na lógica do Ocidente. E a ideia de os seres humanos usarem a razão, em qualquer parte do mundo, para fazerem escolhas políticas ou económicas é uma abstração ilusória. Na realidade, o que há de mais próximo desse ideal do ser humano é, paradoxalmente, não a pessoa humana, mas a máquina que use a inteligência artificial. Por isso, a democracia liberal é aceite ou rejeitada, não apenas mediante escolhas racionais de uma sociedade política (que escolheria a melhor forma de governação humana ou a menos má, o que, a olhos ocidentais, se concretiza na democracia liberal representativa), nem mediante a enraizada convicção de evolução e progresso, mas “pelo facto de as ideias políticas gerarem emoções – positivas ou negativas – que afetam profundamente as escolhas dos indivíduos e das sociedades. Ora, na Rússia, cuja história oscila entre admiração e a profunda para com o Ocidente, a democracia liberal ganhou uma carga emocional fortemente negativa.

Assim, a escolha de um determinado regime político não é neutral para o poder. Há casos em que o pode amplificar e casos em que o pode diminuir – em ambos, de forma subtil ou ostensiva. A democracia liberal está associada ao poder ou à fraqueza, o que a torna atrativa ou a torna aberrante. No Ocidente, é enfatizada pelos seus valores e princípios superiores, “de possibilidade de escolha dos governantes, de liberdade e de respeito pela dignidade do ser humano”. Contudo, a adesão aos seus princípios e valores e a sua legitimidade decorrem da perceção que der de bem-estar material, de solução para os problemas existências e do poder e influência no mundo pela exportação do seu modelo – complexo de fatores ou de adjuvantes que “reforça a atracão aos olhos ocidentais”.

Por isso, o Ocidente pretende que a Rússia se transforme numa democracia liberal representativa, não tanto pelo ideal dos direitos humanos ou pela rejeição da opressão do povo. O Ocidente pretende exportar a sua democracia como se fosse uma boa mercadoria. Para tanto, não se importa de usar armas de destruição e de morte (bélicas, comerciais e informáticas) que vai descobrindo e apurando. E a reação típica da Rússia é a posição inversa: rejeitar o demoliberalismo, visto como colonização do Ocidente e estender ao máximo o seu poderio para impor os seus valores histórico-religiosos, minando, destruindo e matando. Não é por acaso que o ortodoxo Patriarca de Moscovo e de todas as Rússias apoia a guerra na Ucrânia e considera Vladimir Putin o homem a quem Deus confiou uma missão universal de defesa dos valores ancestrais da nação russa. 

2023.01.05 – Louro de Carvalho

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