terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Recomeçaram as aulas, mas sob generalizado protesto dos docentes

 

Os sindicatos multiplicam protestos em janeiro e fevereiro e continuam as reuniões com Ministério da Educação (ME) sobre a revisão do sistema de recrutamento dos professores, mas o descontentamento tem razões que vão além do que está em cima da mesa das negociações.

O Sindicato de Todos os Profissionais de Educação (STOP) tem apresentado pré-avisos de greve desde 9 de dezembro e mantém a paralisação por “tempo indeterminado”. Assim, a cada dia, qualquer professor pode fazer greve. Não há dados oficiais da adesão a este protesto em dezembro, mas houve perturbação em várias escolas e em vários dias, motivada pela greve de número indeterminado de profissionais. E, a partir de 3 de janeiro de 2023 e, pelo menos, até dia 13, o Sindicato Independente de Professores e Educadores (SIPE) tem agendada uma greve que permite a cada professor faltar ao primeiro tempo do seu horário de trabalho.

Depois de 16 de janeiro, as paralisações podem fazer-se sentir de forma mais intensa. A Federação Nacional dos Professores (Fenprof) e outros sete sindicatos têm agendada uma greve nacional, distrito a distrito, por 18 dias. Assim, nesses dias cada professor pode fazer greve, mas, para evitar perdas insuportáveis no salário, definiram um calendário em que a greve incide num distrito diferente em cada dia, a começar por Lisboa.

Só a Federação Nacional da Educação (FNE) se mantém, por agora, fora dos protestos.

O STOP marcou uma marcha em Lisboa para 14 de janeiro, ao passo que a Fenprof e outros sete sindicatos convocaram uma manifestação nacional para 11 de fevereiro, a culminar a greve de 18 dias. Apesar de as reivindicações serem coincidentes, os protestos têm sido organizados de forma independente entre STOP, por um lado, e Fenprof e os restantes sindicatos, por outro, a convergirem nas ações a partir de 16 de janeiro. A 3 de janeiro, a Fenprof entregou um abaixo-assinado de 43 mil assinaturas contra o recrutamento por diretores ou entidades locais.

O pretexto imediato para o protesto tem a ver com as negociações para a revisão do regime de recrutamento e de colocação de professores. Antes de mais, rejeita-se a interferência direta de diretores ou de entidades locais na escolha de professores. Em PowerPoint partilhado com os sindicatos (além do PowerPoint, não há outros documentos que concretizem o modelo e as alterações propostas), o ME aponta a possibilidade de a afetação dos docentes (distribuição de serviço) ser feita pelo Conselho Local de Diretores. Os professores que integrem mapas docentes interconcelhios serão os geríveis de forma local e não centralizada. Outro ponto liminarmente rejeitado prende-se com a introdução de outros critérios mais subjetivos e/ou curriculares a usar no recrutamento de professores, além da posição de cada professor na lista de graduação nacional, que os ordena em função da nota (resultante da habilitação profissional e do tempo de serviço).

O estrangulamento na escolha docente resulta da desorçamentação do ME. Em 2005, a escola pública passou a ministrar cursos profissionais, os fundos europeus pagam considerável fatia do vencimento docente e uma série de monitores da componente de formação técnica emparceirou com os docentes, sem os deveres e os direitos destes. Em 2018, com a flexibilização curricular, 25% do currículo pode ser definido a nível regional e local. E são as CIM e as AM (áreas metropolitanas) que apresentam as candidaturas a fundos comunitários, que pagam.

Os professores vinculam por imposição europeia, mas os quadros estreitam-se por redução do currículo nacional. E o docente de horário “zero” candidata-se no âmbito da CIM ou da AM, ficando na situação por cinco anos (em vez dos atuais quatro). E a vaga que ocupava extingue-se passados três anos. Mais: com áreas de docência não convencionais, multiplicam-se os monitores, adequados ao perfil do projeto, sem o lastro da formação profissional para a docência.

Todavia, os sindicatos querem abrir outros processos negociais. Estão em causa a recuperação de tempo de serviço congelado (as carreiras da Administração Pública estiveram congeladas de 29 de agosto de 2005 a 31 de dezembro de 2007 e de 2011 a 2017 e, para os professores, o Governo só aceitou a recuperação de dois anos, 9 meses e 18 dias); o fim das quotas para notas de Excelente e Muito Bom, que aceleram a progressão na carreira, e de vagas limitadas para acesso ao 5.º e 7.º escalões (a carreira divide-se em dez); a definição de novas regras de aposentação, que a permitam sem penalização ao fim de um certo número de anos de serviço (independentemente da idade); e processos de vinculação extraordinários que levem à vinculação de milhares de professores.

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Face à galopante depauperação das condições de trabalho e ao decréscimo do poder reivindicativo do movimento sindical convencional, agiganta-se uma nova onda de contestação, em que entram personalidades que, até há pouco tempo, não se imaginava estarem envolvidas na reivindicação. E a onda está a atingir a classe docente, tendo saltado para praça pública uma figura de proa provinda do STOP, André Pestana. 

A este respeito, é de meridiana relevância o discurso de Santana Castilho, a 17 de dezembro de 2022, que exclama: “… nós, professores livres, começámos a demonstrar que há muros que podem ser derrubados, para melhorar o nosso presente e o futuro dos nossos alunos!”

O renomado professor do ensino superior diz que segue, há 17 anos (13 da responsabilidade do PS, quatro da responsabilidade do PSD), as decisões da política educacional mais rasteira que lhe foi dado conhecer. Porém, tudo começou com Durão Barroso, quando este disse duas coisas aberrantes: as escolas têm de ter um diretor, que pode não ser professor, pois há bons professores que não sabem gerir (recordo que, em tempos, quando nos queixávamos da dificuldade em governar a escola, ilustres figuras do ME perguntavam se queríamos que fosse um gerente de banco a gerir a escola); e as escolas devem ter os alunos durante as interrupções das atividades letivas, ficando as autarquias e as associações a ocupar os alunos, enquanto os professores reúnem e fazem o trabalho de planeamento e de avaliação. Mas autarquias e associações não ouviram!

Veio o Governo de Sócrates, que alargou a escolaridade para 12 anos com os professores existentes no sistema, sobrecarregando-os, achincalhando-os e estabelecendo duas categorias estanques. A sua ministra, promotora da degradação da escola orgulhava-se de ter perdido os professores, mas ter ganhado os pais. Entretanto, a sucessora reunificou a carreira docente.       

Porém, Castilho, no pressuposto de que “é mau que percamos a memória coletiva”, sintetizou o que se passou nestes anos: instalação do “desrespeito galopante pela atividade docente, eminentemente intelectual e livre”, como podendo ser exercida por “operários vergados a obediências de pacotilha e aos desmandos de quem manda”; perda da generosidade com que o professor se entregava a atividades fora dos horários profissionais, porque nelas reconhecia transferências reais para a educação dos alunos e para a resolução de problemas sociais; destruição do tempo livre, tempo de estudo, para acolher “a burocracia escravizante, personificada por plataformas e protocolos administrativos, paridos por pequenos déspotas, verdadeiros tiranos acéfalos, com pedras onde os outros têm coração”; encerramento de escolas aos milhares, no Portugal interior; substituição da gestão das escolas, eleita e democrática, pela gestão autocrática, onde o medo das represálias por discordâncias se tornou o clima organizacional dominante; e substituição paulatina da “natureza axiológica da Educação” por “regras de mercado, circunscritas a objetivos utilitários e instrumentais”.

Diz o professor que o discurso do ME assenta na retórica do “aluno do século XXI”, do “trabalho de projeto”, do “trabalho em rede” e dos “nados digitais”, juntando aprendizagens essenciais ao estribilho da “flexibilidade pedagógica”. E isto deu “um desconcerto nacional”, sobretudo para quem chega à escola marcado pela sorte de ter nascido em meio desfavorecido. De facto, a inovação pedagógica do aprender menos não remove o insucesso e o experimentalismo assente no abaixamento de fasquias não puxam pelos que ficam para trás.

Sobre a educação inclusiva, Castilho observa que “ter todos dentro da mesma escola é um excelente princípio”, mas não se concretiza “fingindo que determinados alunos podem dar respostas que sabemos que nunca poderão dar, pedindo do mesmo passo aos restantes que fiquem parados”. Assim, quase metade dos alunos sinalizados como carentes de “medidas seletivas ou adicionais” não tem apoio direto de professor especializado. Para satisfazer o falso conceito de inclusão, basta passarem mais de 60% do tempo letivo na sala de aula, com os colegas de turma. Não importa que não entendam o que lá é dito ou feito. A ordem de transição de ano atira a taxa de sucesso para cima do 90%. Falta medir os índices de sofrimento e de impreparação para a vida.

No atinente ao processo de formação contínua de professores, diz o académico que a sua marca distintiva é torná-los cegos para tudo o que se oponha à narrativa da pedagogia do ministro e dos seus lobitos. “As crenças substituíram o conhecimento e o poder decisório está nas mãos de uma seita”, que estigmatiza e elimina os que recusam juntar-se.

O atual ministro da Educação está, há sete anos, a desregular o mecanismo de avaliação do sistema de ensino, anulando a comparabilidade dos dados recolhidos, a desconstruir a estrutura curricular e a produzir normativos sobre o que fazer no âmbito da autonomia da escola, promovendo, assim, “o mais hipócrita homicídio, à nascença, dessa mesma autonomia”.

No entender de Castilho, isto foi sucedendo, porque “os professores mergulharam num limbo, onde cresceu o cansaço e a resignação” e “o desânimo que os assolou radicou na impotência dos sindicatos para os defender das decisões tirânicas do Governo”. Na verdade, “as lutas sindicais têm sido cada vez mais aprisionadas pelos interesses das conjunturas partidárias e cada vez menos centradas na eficácia da defesa dos interesses profissionais dos seus representados” e os sindicatos têm fugido das lutas que provocariam mudanças nas relações de poder, “por acomodação, medo reverencial e iniciativa nula”, enquanto “o quotidiano dos professores se foi tornando cada vez mais penoso”, pois, em vez de promoverem “avanços nas condições de trabalho dos professores”, os sindicatos “foram-se contentando, apenas, com atrasar os retrocessos”. Nisto, ganham o ME e os sindicatos: “o primeiro por ter pregado mais um prego no nosso caixão; os segundos por terem evitado o pior”. Só os professores têm perdido. E João Costa aproveita a maré para disfarçar a mediocridade da sua ação e manipular a opinião pública. Acusou André Pestana de não dizer a verdade e os professores de se deixarem manipular – argumentos de que não tem argumentos.

Por tudo isso, como referiu Castilho, os professores dizem não: à proposta para alterar o regime de recrutamento e mobilidade dos professores; à seleção de professores por conselhos locais de diretores; à substituição de quadros por mapas; às 23 comunidades intermunicipais (CIM); ao desaparecimento da natureza nacional dos concursos e da mobilidade interna dos professores; à remoção da habilitação profissional para a docência; à perda do direito de escolher o local onde se trabalha; à engenharia de gestão que subordina os mais elementares direitos humanos dos professores e a educação dos alunos aos mesquinhos interesses da austeridade da página virada; à transformação do regime da Mobilidade por Doença em concurso desumano, que atira para a sargeta da vida os professores mais frágeis e famílias, negando-lhes direitos constitucionalmente protegidos; ao roubo do tempo de serviço prestado (caso único na administração pública); à desregulação dos horários de trabalho; às vagas e quotas de progressão; à iniquidade da avaliação do desempenho; à precariedade; à recusa de instituir um regime específico de aposentação, que induza o rejuvenescimento da profissão; e à substituição de pessoas por algoritmos.

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Valerá tudo. É a vida!

2023.01.03 – Louro de Carvalho

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