segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Fazer a vontade de Deus, vocação messiânica e missionária

 

A Liturgia da Palavra do 2.º domingo do Tempo Comum no Ano A insta a que situemos a temática da vocação no âmbito do desígnio de Deus para os homens e para o mundo. Deus quer oferecer a vida plena aos homens e, para tanto, escolhe pessoas para testemunhas do seu projeto na história.

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Na primeira leitura (Is 49,3.5-6), surge uma personagem misteriosa, o Servo de Javé, a quem Deus elegeu, desde o seio materno, para sinal no mundo, com a missão de levar aos povos de toda a terra a Boa Nova do projeto libertador.

O Deuteroisaías é um profeta do exílio que profetizou na Babilónia, entre os exilados. A sua mensagem – de consolação e de esperança – vem plasmada nos capítulos 40-55 do Livro de Isaías. Porém, nesses capítulos, sobressaem quatro textos (Is 42,1-9; 49,1-13; 50,4-11; 52,13-53,12), em termos literários e temáticos. São os cânticos do Servo de Javé, em torno de um misterioso servo de Deus, a quem Javé confiou uma missão concreta, a cumprir no sofrimento e nas perseguições, daí resultando a redenção para o Povo e, como recompensa, a exaltação do Servo por Javé.

Esta dominga propiciou-nos um trecho do segundo cântico do Servo de Javé, em que o Servo é identificado com Israel, o Povo de Deus, chamado a ser testemunha de Javé no meio dos outros povos. Nestes termos, a profecia antecipa a vocação ao sofrimento redentor e ao testemunho apostólico-missionário. Não basta apregoar de modo que se veja e ouça ao longe, é preciso ir ao encontro levar a luz do testemunho e da mensagem, a todas as nações, a todas as pessoas.   

O trecho em referência abre como uma declaração solene do Servo “às ilhas” e “às cidades longínquas”. Nesta declaração, o Servo manifesta a consciência da sua eleição: foi escolhido por Deus desde o seio materno, o que releva a origem de toda a vocação profética. Na verdade, é Deus que escolhe, que chama, que envia. Ninguém se voluntaria ou autocandidata à profecia.

Assim, a declaração do Servo alude às origens do Povo, à eleição e à aliança: Israel existe porque Deus o escolheu entre todos os povos, revelou-lhe o seu rosto, constituiu-o como Povo, libertou-o da escravidão, conduziu-o pelo deserto e estabeleceu com ele uma relação de comunhão.

A missão do Servo é, antes de mais, reconduzir Jacob e tornar a unir Israel a Javé, o que se concretizará, a curto prazo, no regresso do Povo à órbita da aliança (rompida pelo pecado do Povo), à reunião dos exilados e ao regresso à Terra Prometida. Depois, como a eleição e a aliança postulam a missão e o testemunho, a missão do Servo é ampliada “às nações”, ou seja, Israel deve dar testemunho da salvação, de modo que ela chegue, por meio do Servo/Povo aos homens e mulheres de toda a terra. A grandiosidade da missão contrasta com a situação de opressão e de fragilidade os exilados, evidenciando-se que é Deus quem age no mundo e salva, quase sempre através dos mais pequenos e humildes.

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O Evangelho (Jo 1,29-34) apresenta Jesus, “o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”, que veio ao nosso encontro, investido de uma missão pelo Pai, a missão em libertar os homens do “pecado” que oprime e não deixa ter acesso à vida.

A perícopa em causa integra a secção introdutória do Quarto Evangelho (Jo 1,19-3,36), em que o evangelista responde à pergunta: “Quem é Jesus?”

As diversas personagens que vão entrando em cena tentam apresentar Jesus. Um a um, os atores fazem afirmações cheias de significado teológico sobre Jesus. O quadro final que resulta destas intervenções apresenta Jesus como o Messias, o Filho de Deus, que possui o Espírito e que veio ao encontro dos homens para fazer surgir o Homem Novo, nascido da água e do Espírito.

João Batista, o percursor do Messias, desempenha papel especial na apresentação daquele que chega e apresenta-O aos homens (testemunha-O no início e no fim da secção). Como não se assinala o auditório, o testemunho de João é perene, dirigido aos homens de todos os tempos e com ressonância permanente na comunidade cristã. João é, pois, o apresentador oficial de Jesus.

A catequese sobre Jesus, aqui, expressa-se em dois enunciados com profundo impacto teológico: Jesus é o Cordeiro de Deus (ho amnós toû Theoû), o que tira o pecado do mundo (tên hamartían toû kósmoû); e é o Filho de Deus que possui a plenitude do Espírito.

A primeira asserção evoca duas imagens veterotestamentárias sugestivas: a imagem do “servo sofredor”, o cordeiro levado para o matadouro, que assume os pecados do seu Povo e realiza a expiação; e a imagem do cordeiro pascal, símbolo da ação libertadora de Deus em favor de Israel. Ambas sugerem que a pessoa de Jesus vem com a missão messiânica da libertação dos homens. O núcleo essencial da sua missão é eliminar “o pecado do mundo”.

O termo “pecado” aparece no singular (hamartía). Não designa os “pecados” (hamartíai) que os homens cometem em concreto, mas o “pecado” único que oprime a humanidade inteira, a recusa da vida com que Deus, desde sempre, quis presentear a humanidade. E o “mundo” designa, no Evangelho de João, a humanidade que resiste à salvação, reduzida à escravidão e que recusa a luz/vida que Jesus lhe oferece. Ora, Deus propôs-se tirar a humanidade da escravidão em que esta se encontra; enviou ao mundo Jesus, com a missão de realizar um novo êxodo, que leve os homens da terra da escravidão para a terra da liberdade.

A segunda asserção completa a anterior com elementos bem sugestivos. O “cordeiro” é o Filho de Deus, recebeu a plenitude do Espírito e tem por missão batizar os homens no Espírito.

Dizer que Jesus é o Filho de Deus quer dizer que Ele é o Deus que Se faz pessoa como nós, que vem ao encontro dos homens, que arma a sua tenda no meio dos homens, a fim de lhes oferecer a plenitude da vida. A sua missão consiste em eliminar “o pecado” que torna o homem escravo e que o impede de abrir o coração a Deus e aos irmãos.

O facto de o Espírito descer sobre Jesus e de permanecer sobre Ele sugere que Jesus possui em absoluto a plenitude da vida de Deus, toda a sua riqueza, todo o seu amor. Por outro lado, a descida do Espírito sobre Jesus é a sua investidura messiânica, a sua unção (“messias” ou “cristo” = “ungido”). O quadro leva-nos aos textos do Deuteroisaías, onde o “Servo” aparece como o eleito de Javé, sobre quem Deus derramou o seu Espírito, a quem ungiu e enviou para “anunciar a Boa Nova aos pobres, para curar os corações destroçados, para proclamar a libertação aos cativos, para anunciar aos prisioneiros a liberdade” (Is 61,1-2). Jesus é Aquele que batiza no Espírito Santo. O verbo “batizar” (baptízein) tem, em Grego, duas traduções: submergir e empapar (como a chuva empapa a terra); refere-se, em todo o caso, ao contacto total entre a água e o sujeito. “Batizar no Espírito” significa, pois, o contacto total entre o Espírito e o homem, a chuva do Espírito a cair sobre o homem e a empapar-lhe o coração. Portanto, a missão de Jesus consiste em derramar o Espírito sobre o homem; e o homem que adere a Jesus, empapado do Espírito e transformado por essa fonte de vida, abandona a experiência da escuridão (pecado) e alcança a plenitude da vida.

Nestes termos, a declaração do Batista é o convite aos homens de todos tempos e de todos os lugares a voltarem-se para Jesus e a acolherem a libertação que Ele oferece em nome do Pai: só a partir do encontro com Jesus é possível chegar à vida plena, à meta final do Homem Novo.

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Por fim, na segunda leitura (1Cor 1,1-3), Paulo afirma-se vocacionado (klêtós) a recordar aos cristãos da cidade grega de Corinto, como o fez a outros, que todos eles são, por Deus, “chamados (klêtoí) à santidade”, ou seja, a viverem comprometidos com os valores do Reino.

No decurso da sua segunda viagem missionária, Paulo chegou a Corinto, depois de atravessar boa parte da Grécia, e ficou por lá cerca 18 meses (anos 50-52). Segundo At 18,2-4, Paulo começou a trabalhar em casa de Priscila e Áquila, um casal de judeo-cristãos. Ao sábado, usava da palavra na sinagoga. Com a chegada de Silvano e Timóteo a Corinto, Paulo passou a dedicar-se totalmente ao anúncio do Evangelho. Mas, tendo entrado em conflito com os judeus, foi expulso da sinagoga.

Corinto, cidade nova e próspera, era servida por dois portos de mar e possuía as caraterísticas das cidades marítimas, com população de todas as etnias e religiões. Era a cidade do desregramento para os marinheiros que cruzavam o Mediterrâneo, ávidos de prazer, após meses de navegação. No tempo de Paulo, comportava cerca de 500.000 pessoas, das quais dois terços eram escravos. A riqueza escandalosa de alguns contrastava com a miséria da maioria.

Em resultado da pregação de Paulo, nasceu a comunidade cristã. A maior parte dos seus membros era de origem grega, em geral, de condição humilde, mas também havia gente de origem hebraica.

A comunidade era viva e fervorosa, porém estava exposta aos perigos de um ambiente corrupto: moral dissoluta, querelas, disputas, lutas, sedução da sabedoria de origem pagã revestida de superficial verniz cristão. Era uma comunidade vigorosa, mas a mergulhar as raízes em terreno adverso, em que ressaltam as dificuldades da inserção da fé cristã num ambiente hostil, marcado por uma cultura pagã e por valores que estão em contradição com o Evangelho.

Paulo começa a carta com a saudação e a ação de graças, típicas das cartas paulinas. Na saudação, prenhe de conteúdo teológico, o apóstolo vinca a sua condição de escolhido por Deus (apóstolo, em Grego, apóstolos), revestido de autoridade para proclamar com plena garantia o Evangelho. Tal reivindicação sugere que havia ali quem punha em causa a sua autoridade apostólica e testemunho. Os destinatários da carta são os membros da comunidade cristã de Corinto. Não obstante, a mensagem serve para os cristãos de todas as épocas e de todas as latitudes. Com efeito, a boa nova não conhece peias e os problemas dali e de então são os daqui e de agora.

O vocábulo “apóstolo” assume lugar especial: Paulo foi chamado (klêtós) por Deus a ser apóstolo (apóstolos), e os coríntios são comunidade de chamados (klêtoí) à santidade. Transparece, como em Isaías, que Deus tem um plano de salvação para os homens e para o mundo e que todos – Paulo e os cristãos – são chamados ao compromisso com esse plano. E é isso que os torna santos.

No contexto paulino, os santos são todos os que acolhem a proposta salvífica de Jesus e aceitam os valores evangélicos. Os santos são os “separados”: os coríntios são santos porque, ao aceitarem Jesus, escolheram viver separados do mundo. “Separados” não significa “alheados”; mas a viver de acordo com valores e esquemas diferentes dos do mundo.

A palavra “klêtos” (chamado) supõe Deus como sujeito: foi Deus quem chamou Paulo; é Deus quem chama os coríntios. Mais uma vez fica claro que o chamamento provém da iniciativa divina e que só se compreende a partir de Deus e à luz da ação de Deus.

Por força do Batismo, que nos configura com o Cristo morto e ressuscitado, que subiu aos Céus, todos os seguidores de Cristo são, cada um segundo a sua condição, vocacionados (klêtoí) a participar no sofrimento e nas alegrias messiânicas, bem como nas suas consequências apostólicas e missionárias, servindo de luzeiros, de guias e de apoio nesta peregrinação terrestre rumo ao Céu.    

2023.01.16 – Louro de Carvalho

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