sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Duas faces da mesma moeda: piedade e voluntariado solidário


Aos cerca de 600 participantes no encontro internacional de Reitores e Colaboradores de Santuários, que recebeu na Sala Régia do Palácio Apostólico, no Vaticano, a 29 de novembro, o Papa Francisco disse que “a piedade popular é o sistema imunitário da Igreja”.
E aos cerca de 700 membros do Centro de Serviço para o Voluntariado “Sardenha Solidária”, que recebeu hoje, dia 30, na Sala Paulo VI, no Vaticano, por ocasião do 20.º aniversário da fundação, declarou que “hoje são precisas testemunhas de bondade e de amor gratuito”.
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Reportando-se a alguns pontos da Carta Apostólica em forma de Motu ProprioSanctuarium in Ecclesia”, pela qual se transferem as competências sobre os santuários para o Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização, Francisco disse aos participantes no aludido encontro sobre santuários:
O santuário é o lugar privilegiado para experimentar a misericórdia que não conhece confim. Esse é um dos motivos que me levou a desejar a ‘Porta da misericórdia’ também nos santuários durante o Jubileu da Misericórdia.”.
Referindo que esperava este momento para encontrar os representantes de vários santuários espalhados pelo mundo, o Pontífice encareceu a relevância eclesial e pastoral dos santuários:
Quanto precisamos dos santuários no caminho quotidiano da Igreja! São lugares a que o nosso povo vai com boa vontade a fim de manifestar a sua fé na simplicidade e segundo as tradições que as pessoas aprenderam desde a infância. De várias formas, os nossos santuários são insubstituíveis, pois mantêm viva a piedade popular, enriquecendo-a com uma formação catequética que sustenta e reforça a fé e alimentando, ao mesmo tempo, o testemunho da caridade.”.
Depois, recordou, em abono da necessidade de manter viva a piedade popular, o n.º 48 da Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi (número que designou por “aquele tesouro”), em que São Paulo VI mudou a expressão “religiosidade popular” para “piedade popular”. E disse que “essa é a inspiração dessa piedade popular que, tal como disse um bispo italiano, “é o sistema imunitário da Igreja”, que “nos salva de muitas coisas”. De facto, o Papa Montini explicava:
Ela traduz em si uma certa sede de Deus, que somente os pobres e os simples podem experimentar; ela torna as pessoas capazes para terem rasgos de generosidade e predispõe-nas para o sacrifício até ao heroísmo, quando se trata de manifestar a fé; ela comporta um apurado sentido dos atributos profundos de Deus: a paternidade, a providência, a presença amorosa e constante, etc. Ela, depois, suscita atitudes interiores que raramente se observam alhures no mesmo grau: paciência, sentido da cruz na vida quotidiana, desapego, aceitação dos outros, dedicação, devoção, etc. Em virtude destes aspetos, nós chamamos-lhe de bom grado “piedade popular”, no sentido de religião do povo, em vez de religiosidade.”.
E destacando a importância do acolhimento dos peregrinos, o Pontífice argentino disse:
Sabemos que cada vez mais os nossos santuários são meta não de grupos organizados, mas de peregrinos individuais ou pequenos grupos autónomos que vão a esses lugares santos. É triste que, à sua chegada, não encontrem ninguém para lhes dar as boas-vindas e que os acolha como peregrinos que fizeram uma viagem, muitas vezes longa, para chegar ao santuário. Pior ainda quando encontram a porta fechada!”.
Para Francisco, não é possível dar mais atenção às exigências materiais, “esquecendo que a realidade mais importante são os peregrinos”, pois eles são os que contam. Por isso, “devemos dar atenção a cada um deles, fazendo com que se sintam ‘em casa’, como parente esperado por muito tempo que finalmente chegou”.
E, atendendo a que motivos artísticos e ambientais atraem as pessoas aos santuários, sustentou:
É preciso considerar também que muitas pessoas visitam os santuários porque pertencem à tradição local, porque as suas obras de arte atraem ou porque estão situados num ambiente natural de grande beleza e inspiração […] Essas pessoas, quando são acolhidas, são mais disponíveis a abrir o seu coração e a deixá-lo plasmar pela Graça. Um clima de amizade é uma semente fecunda que os nossos santuários podem semear no terreno dos peregrinos, permitindo-lhes reencontrar aquela confiança na Igreja que pode ter sido desiludida pela indiferença recebida.”.
Porém, o mais importante, para o Papa, é que “o Santuário é sobretudo lugar de oração
E, tendo em conta que a maioria dos nossos santuários é dedicada à piedade mariana, Francisco enaltece o exercício da função materna de Maria ali exercida:
Ali, a Virgem Maria abre os braços de seu amor materno para ouvir as orações de cada um e as atender. Os sentimentos que todo o peregrino sente no fundo do coração são encontrados também na Mãe de Deus. Ali, ela sorri dando consolo. Ali, Ela chora com quem chora. Ali, apresenta a cada um o Filho de Deus em seus braços como o tesouro mais precioso que uma mãe possui. Ali, Maria faz-se companheira de caminhada de cada pessoa que olha para ela pedindo uma graça, certa de ser atendida. A Virgem responde a todos com a intensidade do seu olhar que os artistas souberam pintar, guiados do alto na contemplação.”.
E, a propósito da oração nos santuários, sublinhou duas exigências: favorecer a oração da Igreja que, pela celebração dos Sacramentos, torna presente e eficaz a salvação, o que “permite a qualquer pessoa que esteja presente no santuário sentir-se parte de uma comunidade maior que de todo o canto da terra professa a única fé, testemunha o seu amor e vive a mesma esperança”; e alimentar a oração do peregrino, pois os santuários são chamados a alimentar a oração de cada peregrino no silêncio de seu coração. Em relação à primeira exigência, lembrou que muitos santuários surgiram através do pedido de oração feito pela Virgem aos videntes, a fim de que a Igreja não esquecesse nunca as palavras do Senhor Jesus de rezar sem cessar e permanecer sempre vigilante na espera do seu retorno. E, em relação à segunda, considerou:
Com as palavras do coração, com o silêncio, com as suas fórmulas aprendidas na infância, com os seus gestos de piedade, cada um deve ser ajudado a expressar sua oração pessoal. Muitas pessoas vão ao santuário porque precisam de receber uma graça e depois voltam para agradecer por terem recebido a força e a paz na provação. Essa oração torna os santuários lugares fecundos, para que a piedade popular seja sempre alimentada e cresça no conhecimento do amor de Deus.”.
O Pontífice frisou que ninguém nos santuários se deve sentir um estranho, sobretudo quando chega ali “com o peso de seu próprio pecado”. Nesse sentido, observou que “o santuário é o lugar privilegiado para experimentar a misericórdia que não conhece confim”, um dos motivos que o levou a desejar a ‘Porta da misericórdia’ também nos santuários durante o Jubileu da Misericórdia. Na verdade – referiu – “a misericórdia, quando é vivida, torna-se uma forma de evangelização real, porque transforma as pessoas que recebem a misericórdia em testemunhas de misericórdia”. Assim, recomendou o incremento do Sacramento da Reconciliação no santuário, o que postula a presença de “sacerdotes bem formados, santos, misericordiosos e capazes de saborear o encontro verdadeiro com o Senhor que perdoa”. E exortou:
Desejo que nunca falte nos Santuários a figura do ‘Missionário da Misericórdia’ como testemunha fiel do amor do Pai que abre os braços a todos e vai ao encontro feliz por ter reencontrado quem se distanciou. As obras de misericórdia pedem para ser vividas de modo particular nos nossos santuários, pois nelas a generosidade e a caridade são realizadas de forma natural e espontânea como atos de obediência e amor ao Senhor Jesus e à Virgem Maria.”.
Na vertente peregrinacional típica do santuário, apontou:
O Santuário é um lugar de encontro não somente com o peregrino, com Deus, mas também do encontro de nós pastores com o nosso povo. A Liturgia de 2 de fevereiro diz-nos que o Senhor vai ao Santuário para encontrar o seu povo, para sair ao encontro do seu povo, entender o povo de Deus, sem preconceitos, com o faro da fé, com a infallibilitas in credendo, de que fala o n.º 12 da Lumen gentium.”.
Segundo o Papa, “este encontro é fundamental”, pois, se o Pastor que está no santuário não consegue encontrar o povo de Deus, é melhor que o bispo lhe dê outra missão, pois não é apto para isso: sofrerá muito e fará o povo sofrer”.
Porém, não concluiu a sua alocução sem, antes, contar um facto vivido por ele:
Lembro-me de um brilhante professor de literatura. Foi a vida inteira jesuíta. A vida inteira ensinou literatura, mas de alto nível. Depois, aposentou-se e disse ao provincial: ‘Aposento-me e gostaria de fazer algo de pastoral num bairro pobre, ter contacto com o povo, com as pessoas’. O provincial confiou-lhe um bairro de pessoas piedosas, que iam aos santuários, que tinham essa mística, mas muito pobres, uma favela, mais ou menos. Ele ia à comunidade da Faculdade de Teologia onde eu era reitor uma vez por semana. Passava o dia todo connosco em fraternidade, depois voltava. Assim, mantinha a vida comunitária. Como era uma pessoa brilhante, um dia disse-me: ‘Você deve dizer ao professor de eclesiologia que lhe faltam dois temas’. ‘Como assim’? ‘Sim, dois temas que ele deve ensinar’. ‘Quais são’? ‘Primeiro, o povo santo fiel de Deus é ontologicamente olímpico, ou seja, faz o que quer, e metafisicamente cansativo’. Entendeu, no encontro, como o povo de Deus cansa, porque cansa. Se você está em contacto com o povo de Deus, você cansar-se-á. Um agente pastoral que não se cansa, eu pensaria duas vezes! O olímpico faz o que quer: Lembro-me de que, quando era professor dos noviços, ia todos os anos e, depois como provincial com os noviços, ao Santuário de Salta, no norte da Argentina, nas festas do Senhor dos Milagres. Ao sair da missa, uma senhora do povo aproximou-se dum sacerdote com alguns santinhos e disse-lhe: ‘Padre, abençoe-os”. E o sacerdote, um teólogo muito bom, disse-lhe: ‘A senhora foi à missa’? ‘Sim’. ‘A senhora sabe que na missa há o sacrifício do calvário, Jesus Cristo está presente’? ‘Sim, padre, sim’. ‘E a senhora sabe que tudo o que está ali foi abençoado’? ‘Sim, padre’. ‘A senhora sabe que a bênção final abençoa tudo’? ‘Sim, padre’. Naquele momento estava a sair outro sacerdote que conhecia tudo isso, tocou o padre, virou-se para o saudar e a senhora disse-lhe: ‘Padre, abençoa esse santinho’? Olímpico! Queria tocar. Este é o sentido mais religioso do contacto. As pessoas tocam as imagens. Tocam em Deus. Obrigado pelo que fazem’.” (vd Vatican News, de 29/11).
Por fim, pediu a Nossa Senhora que ajude e acompanhe os Reitores e Colaboradores de Santuários nessa grande responsabilidade pastoral que lhes foi confiada. E disse: “Por favor, não se esqueçam de rezar mim e de fazer com que rezem por mim em seus santuários”.
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Aos membros do Centro de Serviço para o Voluntariado “Sardenha Solidária” Francisco frisou que “a cultura da solidariedade e da gratuitidade qualifica o voluntariado e contribui concretamente para a construção de uma sociedade fraterna, em cujo centro está a pessoa humana”. E explicitou:
“O serviço de voluntariado solidário é uma escolha que vos torna livres e abertos às necessidades do outro; às exigências da justiça, à defesa da vida, à salvaguarda da criação, com uma atenção tenra e especial pelos doentes e, sobretudo, pelos anciãos, que são um tesouro de sabedoria!”.
Em apreço pelo que fazem em favor dos necessitados, o Papa vincou:
Vós representais a multidão de voluntários sardos, que trabalha por um tão generoso quanto necessário serviço aos últimos, num território – da vossa bela Ilha – rico de tesouros, belezas naturais, de história e de arte, mas também marcado por pobreza e dificuldade”.
O Sumo Pontífice manifestou o seu apreço pelo que estes voluntários fazem e continuam a fazer em prol “das faixas mais frágeis da população sarda, com uma atenção voltada também para alguns entre os países mais pobres do mundo”.
Considerando que a pessoa humana está no centro de uma sociedade fraterna, o Santo Padre frisou que os frágeis da população sarda não se ‘isolaram’, pois, apesar, das grandes necessidades internas, tiveram aberto o horizonte da solidariedade dos voluntários, o que deve ser ressaltado porque, “nessa perspetiva, souberam acolher e incluir aqueles que chegaram à Sardenha vindos de outras terras em busca de paz e de trabalho”. E Francisco observou:
A cultura da solidariedade e da gratuitidade qualifica o voluntariado e contribui concretamente para a construção de uma sociedade fraterna, em cujo centro está a pessoa humana. Na vossa terra tal cultura haure abundantemente das robustas raízes cristãs, ou seja, do amor a Deus e amor ao próximo.”.
Sendo necessário reconhecer no outro o irmão a ser amado, o Papa Francisco apontou:
É o amor a Deus que nos faz sempre reconhecer no outro o próximo, o irmão ou a irmã a ser amado. E isso requer compromisso pessoal e voluntário, para o qual certamente as instituições públicas podem e devem criar condições gerais favoráveis.”.
É, na verdade, graças a essa “seiva” evangélica que a ajuda mantém a sua dimensão humana e não se rompe. Justamente, por isso, os voluntários não realizam uma obra de suplência na rede social, mas contribuem para dar feição humana e cristã à sociedade, observou o Papa, que disse:
Encorajo-vos a prosseguir com paixão a vossa missão, buscando todas as formas possíveis e construtivas para despertar na opinião pública a exigência de se comprometer pelo bem comum, em auxílio aos fracos e aos pobres”.
Na base de tudo, está o serviço ao próximo. Assim, o Papa constatou e exortou:
Hoje há muita necessidade de testemunhas de bondade, de ternura e de amor gratuito. Há necessidade de pessoas perseverantes, que enfrentam as dificuldades com espírito de unidade e colocando sempre na base de tudo a finalidade última, ou seja, o serviço ao próximo. Assim fazendo vós continuareis a ser para toda a Sardenha um ponto de referência e um exemplo.”.
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Enfim, duas dimensões complementares e intercomunicantes da vida cristã: o santuário como um espaço aonde se peregrina para carregar as baterias espirituais com a força do Alto e se tem como horizonte o serviço aos irmãos; e o serviço aos necessitados nos quais devemos ver o santuário de carne sofrente onde resplandece o rosto do Senhor!
2018.11.30 – Louro de Carvalho  

No Brasil: da criminalização da riqueza à criminalização da política…


O advogado criminalista brasileiro António Carlos de Almeida Castro, mais conhecido pelo hipocorístico Kakay (foi a primeira palavra que disse em menino: perguntavam-lhe como se chamava e respondia “Kakay), nasceu em Patos, Minas Gerais, em setembro de 1957 e tornou-se famoso pela prestação de serviços advocatícios a políticos envolvidos em escândalos de corrupção no país, como como o Mensalão e a Operação Lava-Jato, e por defender celebridades.
Entre 2015 e 2016, então advogado de onze políticos e empresários investigados pela Lava-Jato, afirmou, na tentativa de defender a reputação dos seus clientes que o país vivia “sem a menor dúvida” um momento de “criminalização da riqueza”. De Joaquim Barbosa, ex-ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), Kakay disse:
Não deixa nenhum legado. Não deixa um livro interessante; um acórdão profundo, uma tese. Nada. Eu, por exemplo, não vou nem criticar mais ele. A partir de agora, eu me nego até a falar dele.”.
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Agora, após a eleição de Jair Bolsonaro para a presidência do Brasil e da prevista ascensão de Sérgio Moro (o juiz que prendeu Lula da Silva) a Ministro da Justiça e da Segurança no próximo Governo, aponta a síndrome da “criminalização da política”.
No passado dia 28 de novembro, o Diário de Notícias (DN) publicou uma entrevista de Kakay com a jornalista Valentina Marcelino em torno desta síndrome que evidencia os excessos da “justiça-espetáculo” que tem dominado o país e que foi central nas últimas eleições presidenciais. O advogado sustenta que o combate à corrupção deve ser a prioridade de todos os governos, mas alerta para os perigos da vitória de Bolsonaro e da nomeação de Moro para Ministro da Justiça.
Sobre a eventual responsabilização das suspeitas de corrupção, generalizadas em relação aos políticos, pelos últimos resultados eleitorais, entende que “o Brasil está a passar por um momento muito grave, mas também muito interessante”. E explica:
Vivemos nos últimos anos um momento punitivo preocupante. A Operação Lava-Jato é uma operação séria que trouxe muitas vantagens para o país porque descobriu um sistema capilarizado de corrupção que ninguém poderia imaginar. […] Por outro lado, essa operação fez que vivêssemos um momento de espetacularização do processo penal brasileiro, o que caiu no gosto de grande parte da população. O combate à corrupção, que é algo que todos nós queremos, acabou por criar uma divisão no país.”.
Obviamente que o prestigiado advogado apoia a Operação Lava-Jato, mas, ao aperceber-se dos muitos excessos que aprofundavam o predito momento punitivo, começou “a fazer o debate sobre esses excessos” e a denunciar a construção da ideia maniqueísta da sociedade brasileira: quem ousa criticar os excessos da Lava-Jato é tachado como contrário ao combate à corrupção.
Em relação à alegada perceção de que metade do Brasil acha que o PT (Partido dos Trabalhadores) organiza a corrupção, enquanto outra metade acha que a justiça foi objeto de instrumentalização política para prender Lula, o entrevistado julga que isso é verdade em parte, mas afirma que o combate à corrupção, travado do modo como o foi, criou “a criminalização da política como um todo”, a partir de “uma sedimentação na sociedade por parte de alguns formadores de opinião – organizada, nada foi por acaso – para criminalizar a política”, a ponto de passar a ser mal visto na sociedade aquele que fazia política, “mesmo que não tivesse sido processado”.
Revelando ter conseguido que não dessem início a processos criminais no STF 4 denúncias contra senadores, por falta de provas (só havia a palavra dos delatores), sustenta que “só a palavra dos delatores não serve de prova” – uma questão que o STF terá de decidir (contra a simples delação). E explica o modo como as coisas começaram a avolumar-se na linha do maniqueísmo social:
Quando essa criminalização ficou capilarizada na sociedade, parte da população fez um jogo maniqueísta, no qual o Partido dos Trabalhadores (PT), o Partido da Socialdemocracia Brasileira (PSDB), o Partido Progressista (PP) e outros eram retratados como partidos da corrupção, em diferentes graus de exposição nos media. Com muito mais ênfase para a criminalização do Partido dos Trabalhadores. Com isso, começou a surgir um movimento daquilo que pretensamente representava o ‘novo’, ou seja, o que não era político. Por exemplo, em Minas Gerais, que é um Estado muito tradicional do Brasil, de onde saíram vários presidentes da República, foi eleito um governador que nunca teve qualquer atividade política. O discurso dele era: ‘eu não sou político!’.”.
E agora a eleição presidencial resultou na polarização do discurso antipolítico, como explica:
Temos como presidente da República um cidadão que, embora fosse um político antigo (no 7.º mandato como deputado federal), era um político medíocre. Ele capitalizou com essa nova tendência e com um discurso que nunca ninguém podia imaginar nos dias de hoje que fosse aceite numa sociedade democrática. Ele é contra as mulheres, contra os negros, contra os direitos, contra a imprensa, a favor da tortura e uma série de outras barbáries. Ele conseguiu polarizar o discurso antipolíticos, claramente ajudado pelos efeitos da Lava-Jato.”.
Ora, como vinca, este momento de enfraquecimento da política é muito perigoso, “pois todo o sistema democrático passa pelo fortalecimento da política e não o contrário”. E, admitindo que o sistema judicial brasileiro parece depender da delação premiada (ou seja, do testemunho do implicado que negoceia a redução da pena em troca de depoimentos acusatórios para outrem), sustenta:
A delação premiada é um instrumento importante em qualquer sistema judicial, mas no Brasil ela foi completamente deturpada. Faz lembrar a Itália. Quem fala na Operação Mãos Limpas como tendo sido o que inspirou o juiz Sérgio Moro na Lava-Jato é porque não conhece o que aconteceu no final da história na Itália. Houve 33 suicídios de pessoas envolvidas na operação, por se sentirem injustiçadas. E, no final, desnudou-se que grupos faziam delações para acabar com outros grupos criminosos.”.
Assim se chegou ao fortalecimento exagerado do poder judiciário, visto que o poder legislativo enfraqueceu demasiado e o poder executivo está “extremamente fragilizado”: os principais líderes são investigados, pois ninguém está acima da lei, e Michel Temer aparece absolutamente desacreditado na sua interação com a sociedade. Mas o advogado adverte:
Estas investigações no Brasil dão-se sem um prazo razoável, por um tempo indeterminado. Por isso, o poder legislativo sangrou, não tendo atualmente a força que seria necessária para um equilíbrio entre os poderes. […] Como não existe vácuo de poder, passámos a ter um superpoder judiciário, um poder judiciário ativista. […] Não é só o juiz Sérgio Moro ou o juiz Marcelo Bretas. É o Supremo Tribunal Federal, inclusive ministros do próprio tribunal. Vivemos hoje uma era do judiciário, o que é extremamente negativo para o país. E isso levou a esta utilização indevida, a uma manipulação que chegou ao ponto de, nas últimas eleições, fazer vencer um cidadão que não tem projeto nenhum para o Brasil.”.
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A seguir, Almeida Castro pronuncia-se sobre o processo contra Lula. Referindo que, em nome da imparcialidade, “todos os cidadãos num Estado democrático têm o direito de ser julgados por um juiz natural, definido de acordo com as competências, antes de o crime ser cometido”, sustenta que, no caso de Lula, “Moro não era o juiz natural”. Mas, julgando-se à época “um juiz de jurisdição nacional, podendo julgar todos os casos que achasse importantes”, avocou para si o processo do crime que foi imutado em Guarujá, São Paulo – facto nulo, evidentemente. E, em recente entrevista, Moro disse que “jamais entraria para a política” pois, “estaria a comprovar que tinha sido parcial no julgamento”. Porém, assumiu o lado político e aceitou ser Ministro da Justiça do futuro Governo, que ajudou, como juiz, a eleger.
Relativamente ao mérito técnico-científico de Moro, o advogado sublinha:
Sérgio Moro tem competência intelectual para ser ministro da Justiça. Mas o facto de ele ter aceitado e ter sido consultado ainda antes das eleições, quando era juiz no ativo, foi uma tapa na cara do poder judiciário. Representou um descrédito absoluto para o judiciário. […] Apesar de Moro ter sido um juiz duro que, na minha opinião, cometeu uma série de excessos na Lava-Jato, ele é muito mais qualificado do que o próprio presidente Bolsonaro.”.
Todavia, admite que acaba por ser o lado mais competente e moderado do governo, mas que entrou em incoerências e não aguentará ser ministro durante muito tempo. E explica:
Ele deveria já ter sido exonerado como juiz desde o primeiro momento em que aceitou ser ministro, porque é proibida a acumulação destas funções e ele à época pediu apenas o afastamento. Só veio recentemente a formalizar a sua exoneração pela forte resistência que encontrou em muitos setores da sociedade. Outro facto relevante é que, nas suas últimas declarações, ele já veio contrariar uma série de posições do Presidente. Por exemplo, enquanto o Presidente quer que toda a gente possa ter porte de arma de forma indiscriminada, Moro limita esse direito a ter a arma apenas à casa de cada um. Bolsonaro quer criminalizar movimentos sociais, Moro é contra.”.
Ao ser questionado sobre o que aconteceria em caso de embate entre ele e o Presidente, “Moro disse que era subordinado ao Presidente e que teria de se demitir”.
À questão se Moro pode fazer alguma coisa de positivo no Governo, Almeida Castro responde:
Moro sempre foi muito rigoroso com os políticos, mas veja-se, por exemplo, esta situação recente: foi nomeado para seu colega de governo, para a Casa Civil, o deputado federal Onyx Lorenzoni, que foi acusado e admitiu ter recebido ‘caixa dois’ (dinheiro ilegal para campanhas eleitorais, facto pelo qual o Moro, enquanto juiz, determinou a prisão de vários políticos). Perante isto, o que disse Moro? Que Lorenzoni tinha admitido e pedido desculpa. Ele ‘criou’ um novo tipo de extinção de punibilidade no processo penal brasileiro, que é o pedido de desculpas.”.
E à pergunta se acha que ele vai ser melhor político do que juiz, responde que Moro, apesar de bem preparado, “não era um bom juiz”, pois “era muito parcial”. E acrescenta:
Ele não está habituado a ser pressionado. Está habituado a determinar, a mandar. Espero, para o bem do país, que ele seja um bom político, mas pela experiência que já tive com ele como advogado algo me diz que não será. Acho que não terá paciência para enfrentar o delicado jogo da política.”.
Depois, aponta-lhe uma grande contradição:
Até já disse uma coisa incrível: que não tinha aceitado um cargo político, mas sim um cargo ‘predominantemente técnico’. Ora, o Ministério da Justiça é o ministério número um do país. Talvez seja o cargo mais político da República. Por exemplo, Renan Calheiros (do MDB) pode vir a ser o próximo Presidente do Senado e ele tem 16 processos da Lava-Jato. Mas Moro vai ter de ter relacionamento institucional com ele.”.
Mas o mais grave “são as ideias de profundo retrocesso do processo penal”, que Moro pretende levar à discussão no Congresso. E o advogado exemplifica com a tentativa de alteração da Lei de Execução Penal, uma lei muito boa, que prevê, entre outras coisas, a progressão da pena. E diz:
Querem acabar com isso. São admiradores do sistema americano, que é um dos piores do mundo. O Brasil tem a terceira maior população de reclusos do mundo: 750 mil presos em condições sub-humanas. Recentemente, advogados de Portugal – com os quais tenho a honra de trabalhar – conseguiram uma liminar em habeas corpus, perante o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, para impedir a extradição para o Brasil de um cidadão português devido à miserabilidade dos presídios brasileiros. Uma vergonha para o Estado brasileiro.”.
A seguir, acusa: “no judiciário do Moro, a prisão é feita para investigação, antes da sentença, antes da culpa formada, como última ratio. E aponta que o STF afastou o princípio da presunção de inocência, um direito insculpido na Constituição Federal, em que está expresso que “a prisão só pode dar-se após o trânsito em julgado”. Ora é preocupante a tendência de retrocesso do processo penal, que será a possível gestão de Moro alinhada com ideias do Presidente eleito. É certo que o juiz diz não concordar com alguns dos retrocessos propostos, “mas esquece que não pode estabelecer isso por decreto”, tendo de “dialogar com a sociedade brasileira, com o Congresso Nacional”, e que algumas medidas terão de passar por mudanças constitucionais.
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Em todo o caso, o advogado confia que há instituições que podem impedir ou condicionar a ação de Bolsonaro, pois quem está habituado a mandar cumprir “não tem ideia do que é ter de conversar com o Congresso para fazer passar certas medidas”: tem de negociar, até porque estas eleições dividiram o Brasil de forma muito violenta. E até agora “não se conhece nenhum nome para o governo que dê um sinal de credibilidade”, sendo Moro o único “grande nome”, uma pessoa preparada, “mas que não vai poder fazer as ‘maldades’ que diz que vai fazer, apenas com a caneta de juiz”. Mas foi essa sociedade brasileira que votou maioritariamente em Bolsonaro, em alguém que disse coisas como: negros “não fazem nada” e não servem “nem para procriar”; só mulheres bonitas “merecem” ser violadas; o principal erro da ditadura no Brasil “foi torturar e não matar”; “filhos? Antes mortos que gays”...
Ora, Castro interroga-se se é isto que as pessoas querem mesmo. E insiste:
O pior é que ele não mentiu quando disse isso. Não escondeu quando disse que era fascista, racista, que não gostava de homossexuais, que apoiava a tortura. A sociedade votou nele sabendo o que ele defendia. Mas eu não acredito que a sociedade brasileira, na sua maioria, defenda, de facto, estas ideias.”.
E interpreta o que a sociedade brasileira sentiu e fez:
A sociedade brasileira fez um voto de protesto. Um protesto contra os políticos, contra a corrupção, contra o Partido dos Trabalhadores (PT), relacionado com a Lava-Jato. Foi uma onda. Mas, quando as coisas começarem a ser colocadas para discussão, acredito que não apoiem todas as ideias de Bolsonaro. Por exemplo, como ele disse na campanha, colocar armas nas mãos de crianças – afirmou que o filho dele pegava em armas desde os 5 anos – pregando terror, não vai ser bem recebido pela sociedade. Qual é a mãe que vai deixar o filho ter uma arma aos 5 anos? A executar o que este Governo prometeu na campanha vão ser fechadas todas as livrarias do país. Será um momento de obscurantismo. Como cidadãos resta-nos resistir.”.
Confessando que Bolsonaro não é comparável com nenhum outro líder, frisa:
Não existe ninguém atrasado como ele. Para se ter uma ideia, recentemente a Marine Le Pen veio criticá-lo, como sendo muito à direita. Está tudo dito!”.
Questionado sobre o modo como vê a realidade portuguesa, a pretexto da recente tomada de posse da nossa nova Procuradora-Geral da República, que anunciou como principal prioridade o combate à corrupção, o prestigiado causídico declarou:
Quando se olha para o Brasil, com a repercussão que tem em Portugal pela afinidade entre os dois países, e se vê um fenómeno de proposta de combate à corrupção crescer ao ponto de eleger presidente da República um obscuro deputado federal sem proposta nenhuma, é óbvio que isso começa a dar os seus frutos. O combate à corrupção tem de ser a prioridade de qualquer governo, mas jamais esse combate pode ser a única prioridade. E sempre o combate tem de ser feito respeitando os princípios das garantias constitucionais.
E acrescenta que, enquanto advogado, não permite que esse combate se faça passando por cima dos direitos e garantias individuais; defende o combate à corrupção tal como os que fazem parte da equipa da Operação Lava-Jato, mas pretende que ocorra dentro da preservação dos direitos e com o respeito pela Constituição. Com efeito, procedendo-se dessa forma, até pode demorar um pouco mais, mas, diz, “sairemos como um país mais justo e mais solidário”, ao invés, “seremos um país obscurantista”. Na verdade, o combate à corrupção não é a única prioridade. Há outros valores a preservar e a incrementar, como: a educação, a saúde, a proteção social, a liberdade, a segurança, em nome da dignidade da pessoa humana…
Porém, verificando ser essa a tendência do combate cego à corrupção, avisa:
Podemos ter um retrocesso de cem anos nas garantias que conquistámos. E não fomos só nós, brasileiros. Foi também na Europa, foi toda uma geração. Mas eu acredito que a sociedade brasileira vai acordar, e mais cedo do que se pode pensar. Quando começar a notar que esses arroubos contra os direitos constituídos das minorias não era só uma questão de campanha, mas que realmente vão tentar introduzir esses retrocessos, duvido de que a sociedade brasileira se veja representada.”.
E, se isso acontecer, se houver esse retrocesso, diz lisonjeiramente que “sempre nos resta Portugal”, mas que o Brasil vai continuar a trabalhar para não ter um retrocesso nas garantias dos cidadãos, estribado no facto de o país ter um poder judiciário estável, vindo o próprio sistema a verificar que os abusos estão a instalar-se. Na verdade, o atual presidente do STF já declarou que “está na hora de o poder judiciário deixar de ter protagonismo”. E o próprio Almeida Castro diz ter conversado com muitas pessoas que acreditam que “o poder judiciário brasileiro não vai permitir que os abusos se consolidem”.
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Oxalá o Brasil saiba travar os arroubos dum ditador estupidificado e estupidificante – rodeado de delfins e de eminências pardas. E a democracia subsista. Prender para investigar? Não, por certo.
2018.11.30 – Louro de Carvalho

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Simpósio sobre o destino de igrejas que deixam de ter culto


Está a decorrer, na Cidade do Vaticano, na Aula Magna da Pontifícia Universidade Gregoriana (Piazza della Pilotta, 4 – Roma) de 29 a 30 de novembro, o simpósio  “Deus já não habita aqui? Abandono de locais de culto e gestão integrada dos bens culturais eclesiásticos”, que debate o destino a dar a igrejas que deixam de estar afetas ao culto das comunidades católicas, ou seja, a “dispensa de lugares de culto e gestão integrada de bens eclesiásticos culturais”, nos termos do cânone 1222, que estipula:
“§ 1. Se alguma igreja de modo nenhum puder servir para o culto divino e não haja possibilidade de a reparar, o Bispo diocesano pode reduzi-la a usos profanos, mas não sórdidos.
§ 2. Quando outras causas graves aconselharem a que alguma igreja deixe de empregar-se para o culto divino, o Bispo diocesano, ouvido o conselho presbiteral, pode reduzi-la a usos profanos não sórdidos, com o consentimento daqueles que legitimamente sobre ela reivindiquem direitos e contanto que daí não sofra detrimento o bem das almas.”.
Uma igreja pode deixar de estar ao culto por se encontrar de tal modo degradada que não pode servir para esse efeito e não ser possível repará-la, bem como por outras causas graves.
As causas de fechamento de igrejas estão, muitas vezes, ligadas à diminuição das comunidades cristãs, escassez de sacerdotes, abandono da prática religiosa. E, ante este fenómeno, as pessoas quase sempre se opõem, pois o prédio da igreja tem um forte valor simbólico e de identidade.
Ora, o presente simpósioiniciativa conjunta da Conferência Episcopal Italiana (Departamento Nacional para os bens culturais eclesiásticos e os edifícios de culto), da Universidade Pontifícia Gregoriana (Faculdade de História e Bens Culturais da Igreja – Departamento dos Bens Culturais da Igreja) e do Pontifício Conselho para a Cultura (Departamento para o Património Cultural), que suscita a comunicação de experiências nacionais – pretende abordar o tema dum ponto de vista geral que não negligencie a abordagem pastoral, além de aprofundar os aspetos jurídicos e técnicos dos desinvestimentos.
O programa inclui uma intervenção da diretora do Secretariado Nacional dos Bens Culturais da Igreja, Sandra Costa Saldanha, sobre a experiência portuguesa na “formação e compromisso com a comunidade”.
Falando aos jornalistas, o Cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, disse que os critérios para as novas utilizações de antigas igrejas devem permitir que “no templo permaneça sempre algum valor de símbolo espiritual, cultural, social, no seio da comunidade”. Outra preocupação passa por tutelar o património e transferi-lo, por exemplo, para os museus diocesanos.
Os promotores do encontro salientam que a diminuição das comunidades cristãs, o abandono da prática religiosa e a escassez do clero têm levado ao encerramento e mesmo abandono de igrejas e outros locais de culto, sendo que os responsáveis pelas diversas dioceses estão a rever casos de venda de igrejas e subsequentes transformações em casas, livrarias, restaurantes, lojas ou SPA, especialmente na Bélgica e na Holanda
Os trabalhos – cujo  programa inclui a discussão e aprovação de diretrizes para desafetação ao culto e reutilização de locais de culto – foram inaugurados pelo Padre Nuno da Silva Gonçalves SJ, o português reitor da Universidade Pontifícia Gregoriana, e pelo Cardeal Gianfranco Ravasi.
O tema está em cima da mesa por ocasião do Ano Europeu do Património Cultural, com a presença de delegados de Conferências Episcopais da Europa, América do Norte e Oceânia.
Para alargar e aprofundar, tanto quanto possível, o alcance da participação, os organizadores lançaram uma Call for posters and papers destinada a pesquisadores e académicos, para se saber das pesquisas sobre o tema. E lançaram pelas redes sociais o concurso fotográfico Igrejas não mais igrejas #nolongerchurches, voltado a documentar, mais que as situações de abandono, as de reutilização virtuosa de antigas igrejas (in “L'Osservatore Romano).
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Igrejas transformadas em lojas, bares, restaurantes, academias, centros de bem-estar, discotecas, mesquitas ou passarelas para desfiles de moda? É uma questão pertinente, se tivermos em conta como a revolução liberal e a implantação da República (apenas mencionando agora o caso português).
O destino de locais de culto que, por diversos motivos, são abandonados preocupa a Igreja, pois, como todos sabemos, “a igreja também é feita de cultura material, de coisas, de construções; de lugares onde eram celebrados batismos, funerais e casamentos, onde a comunidade se reunia para participar da Eucaristia; de lugares que são percebidos pelas pessoas como sagrados, mesmo quando já não o são”, como observou, segundo o Vatican News, Ottavio Bucarelli, diretor do Departamento dos Bens Culturais da Igreja da Pontifícia Universidade Gregoriana, ao apresentar, no passado dia 10 de julho, no Pontifício Conselho para a Cultura, este simpósio – ato em que estiveram presentes o Cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do Dicastério para a Cultura, o Bispo Nunzio Galantino, ex-secretário-geral da Conferência Episcopal Italiana (CEI) e presidente da Administração do Património da Sé Apostólica, o Bispo Dom Carlos Alberto de Pinho Moreira Azevedo, delegado do Pontifício Conselho da Cultura, e Monsenhor Valerio Pennasso, diretor do Departamento Nacional para os Bens Culturais Eclesiásticos e a construção de locais de culto da CEI.
Na circunstância, o Cardeal Ravasi, introduzindo a conferência de imprensa, referia que os locais de culto, que, por diversos motivos, deixam de ter este fim, representam um tema delicado, doloroso e complexo, “que não é reservado a um clube restrito de especialistas, como poderia parecer num primeiro momento, mas que desperta um interesse extraordinário em muitos âmbitos”.
Já em 1987 a Pontifícia Comissão para a Arte Sacra na Itália publicava a “Carta sobre destinação do uso dos antigos prédios eclesiásticos”, que se focava sobretudo na situação italiana e no património imobiliário objeto das requisições do final do século XIX e após a unidade da Itália, em grande parte já não de propriedade eclesiástica. Agora, 30 anos mais tarde, a Santa Sé volta a concentrar a sua atenção sobre o fenómeno, visto que os desafios na época assumiram proporções mais amplas, embora não haja estatísticas sobre o abandono de igrejas, pois não foi realizada pesquisa sistemática que reunisse os dados de cada diocese.
Recentemente a imprensa internacional passou a interessar-se pelo fenómeno, sobretudo pela forte reação da opinião pública, suscitada quando igrejas são postas à venda ou transformadas em lojas, bares, restaurantes, academias, centros de bem-estar, discotecas, mesquitas ou passarelas para desfiles de moda, permanecendo paredes com afrescos e altares decorados por temas religiosos – fenómeno que teve um peso maior em países como França, Bélgica, Holanda, Alemanha, Suíça, Estados Unidos e Canadá, mas tendo emergido muitos casos também na Itália. E o problema não se restringe à Igreja Católica, mas também às outras confissões cristãs.
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De acordo com o programa, atempadamente fixado, o 1.º dia foi dedicado ao assunto sério e urgente do desmantelamento de igrejas e seu novo uso, ao passo que, no 2.º dia, dar-se-á atenção à gestão e promoção do património cultural eclesiástico como atividade pastoral diocesana. Enquanto os trabalhos das manhãs estarão abertos a todos, os das tardes são reservados ao intercâmbio entre delegados das Conferências Episcopais da Europa, América do Norte e Oceânia, em temas de preocupação compartilhada, pois os seus países enfrentam condições sociais semelhantes e compartilham problemas análogos no âmbito da gestão do património cultural.
Assim, no dia 29, depois da receção, procedeu-se às saudações institucionais, com intervenções do Padre Nuno da Silva Gonçalves SJ (Reitor Pontifícia Universidade Gregoriana), de Monsenhor Stefano Russo (Secretário Geral da Conferência Episcopal Italiana) e do Cardeal Gianfranco Ravasi (Presidente do Pontifício Conselho para a Cultura).
Seguiram-se os trabalhos do 1.º dia em torno do tema geral “Dispensando e reutilizando edifícios de culto”, com as seguintes comunicações: “Leitura sociológica e pastoral do fenómeno da desafetação de igrejas do culto”, por Luca Diotallevi (Università di Roma Tre); e “Redução ao uso profano de igrejas e desafios atuais”, por Paweł Malecha (Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica, Santa Sé).
Depois dum intervalo para um Coffee Break e inauguração de uma exposição temática no átrio da universidade, decorreram as seguintes comunicações: “Soluções inovadoras para as igrejas desmanteladas”, por Thomas Coomans (Katholieke Universiteit Leuven); e “Reflexões sobre a herança imóvel eclesiástica já não em uso”, por Maud de Beauchesne-Cassanet (Conférence des évêques de France, Departamento d’Art Sacré, Paris). Seguiu-se o debate e o almoço.
De tarde, entre diretores nacionais, procedeu-se à “Discussão e aprovação de Diretrizes para a desafetação das igrejas do culto e sua reutilização” e à “Apresentação de experiências nacionais (1.ª parte).
No dia 30, os trabalhos do 2.º dia desenvolver-se-ão em torno do tema geral “Gestão para o desenvolvimento integral dos bens culturais”.
Após a Palestra Introdutória “Um projeto pastoral através do património cultural”, por Valerio Pennasso (Conferência Episcopal Italiana, Diretor do Departamento para as ciências eclesiásticas e os edifícios de Culto, Roma), seguir-se-ão as comunicações “A experiência da diocese de Pádua”, por Andrea Nante (Diretora do Museu Diocesano de Pádua); “A experiência da diocese de Trapani”, por Liborio Palmeri (Delegado episcopal para a investigação, as artes e o diálogo cultural, Trapani); e “Turismo religioso: a experiência da Catalonia Sacra”, por Josep Maria Riba Farrés (Diretor do Museu Episcopal de Vic).
Depois dum intervalo para um Coffee Break, decorreram as seguintes comunicações: “Diálogo intercultural e inter-religioso através do património cultural”, por Albert Gerhards (Universität Bonn); e “Formação de pessoal e envolvimento com a comunidade: a experiência portuguesa”, por Sandra Costa Saldanha (Conferência Episcopal Portuguesa, Secretariado Nacional para os Bens Culturais da Igreja, Lisboa). Seguir-se-á o debate e o almoço.
À tarde, entre diretores nacionais, proceder-se-á à “Apresentação de experiências nacionais (2.ª parte).
Por fim, serão apresentadas as Conclusões e proceder-se-á ao encerramento do Simpósio.
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Entretanto, o Papa Francisco enviou uma mensagem, datada de hoje, dia 29 de novembro, aos participantes em que deixa as suas indicações para a redução de locais de culto, para ajudar à reflexão sobre o tema.
No seu texto, o Pontífice – citando São Paulo VI, pastor muito sensível aos valores da cultura, e São João Paulo II, particularmente atento à relevância pastoral da arte e dos bens culturais, que se referiram ao tema – recorda que os bens culturais da Igreja são testemunhas da fé da comunidade que os produziu durante séculos e séculos. E refere:
Seguindo o pensamento do Magistério eclesial, quase podemos elaborar um discurso teológico sobre os bens culturais, considerando que ocupam um lugar na liturgia sagrada, na evangelização e no exercício da caridade. De facto, fazem parte, em primeiro lugar dessas ‘coisas’ (res) que são (ou têm sido) instrumentos do culto, ‘sinais santos segundo a expressão do teólogo Romano Guardini (Lo spirito della liturgia. I santi segni, Brescia 1930, 113-204), ‘res ad sacrum cultum pertinentes, de acordo com a definição da Constituição conciliar Sacrosanctum Concilium (n.º 122). O sentido comum dos fiéis percebe nos ambientes e nos objetos destinados ao culto a permanência duma espécie de pegada que não desaparece, mesmo depois de terem perdido esse destino.”.
Então, porque são instrumentos de evangelização, para o líder da Igreja Católica, os bens culturais da Igreja detêm “esta eloquência originária”, que “pode ser mantida mesmo quando já não são utilizados na vida ordinária do Povo de Deus”.
Francisco pensa que a verificação de que muitas igrejas, necessárias até há poucos anos, mas não hoje, seja por falta de fiéis e de clero, seja por uma distribuição diferente da população nas cidades e nas zonas rurais, não deve ser acolhida com ansiedade pela Igreja. Ao invés, este fenómeno deve ser interpretado como um sinal dos temposque nos convida a uma reflexão e nos impõe uma adaptação”.
Esta reflexão, iniciada há algum tempo no plano técnico em âmbito académico e profissional, já foi enfrentada por alguns episcopados. Por isso, escreve o Papa, a contribuição deste Simpósio é certamente fazer emergir a amplidão das problemáticas e compartilhar experiências virtuosas graças à presença dos delegados das Conferências Episcopais da Europa e de alguns países da América do Norte e da Oceânia.
Do simpósio sairão sugestões e indicações de linhas de ação, mas as escolhas concretas caberão aos bispos. A este respeito, o Santo Padre, no âmbito deste discernimento episcopal, exorta:
Recomendo-lhes vivamente que cada decisão seja fruto de uma reflexão conjunta conduzida dentro da comunidade cristã e em diálogo com a comunidade civil. A redução não deve ser a primeira e a única solução, a qual, nem pensar, jamais deve ser efetuada com o escândalo dos fiéis. Caso seja necessário, deverá ser inserida na programação pastoral ordinária, precedida por uma adequada informação e resultar o mais possível compartilhada.”.
O Pontífice, evocando o 1.º Livro dos Macabeus em que se lê que, libertada Jerusalém e restaurado o templo profanado pelos pagãos, os libertadores, que tinham de decidir sobre o destino das pedras do antigo altar derribado, preferiram depositá-las um lugar conveniente sobre a montanha do Templo “até que surgisse um profeta que desse resposta sobre elas” (cf 2Mac 4,46) – conclui a recordar que a edificação duma igreja ou o seu novo destino não são operações a tratar somente sob o aspeto técnico ou económico, mas devem ser avaliadas segundo o espírito da profecia: “através dele, de facto, passa o testemunho da fé da Igreja, que acolhe e valoriza a presença do seu Senhor na História”.
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Que o Simpósio constitua efetivamente um marco para o bom senso neste tipo de reutilização dos espaços sagrados sem lhes impedir a utilidade, mas preservando a memória cultural de feição religiosa como elemento significativo do património imaterial da comunidade. Prosit!
2018.11.29 – Louro de Carvalho