Como deram conta os
diversos órgãos de comunicação social, em especial o DN, o JN e o Centro Notícias, esta é uma das principais
conclusões do estudo sobre a “Qualidade
da governação local em Portugal”, da responsabilidade de académicos da UM (Universidade do Minho) – Ana Macedo, Daniel Fernandes, Filipe Teles, Luís F. Mota, Nuno F. da
Cruz e Sara Moreno Pires sob a coordenação de António Tavares e Luís de Sousa –
e que a FFMS (Fundação Francisco Manuel dos Santos) editou e apresentou a partir
das 11 horas do dia 27 de novembro no auditório da Câmara Municipal de
Portalegre, no âmbito da Jornada do Poder
Local.
Nos debates ali organizados pela FFMS em torno do tema, participaram Nunes
Liberato (antigo Secretário de Estado da Administração
local e Ordenamento do território), Rui Pereira (antigo Ministro da Administração
Interna), Carla
Tavares (Presidente da Câmara Municipal da Amadora), Paulo Fernandes (Presidente da Câmara Municipal do Fundão), Maria das Dores Meira (Presidente da Câmara Municipal de Setúbal), Adelaide Teixeira (Presidente da Câmara de Portalegre), Rita Nabeiro (CEO da Adega Mayor).
O estudo equaciona a necessidade de
se repensar a organização do poder local em Portugal, que não passa só nem
principalmente pela “transferência de competências e o respetivo envelope
financeiro”, como sublinha Luís de Sousa, um dos dois coordenadores.
O predito estudo – de que se conclui a necessidade de alterar a forma como são governados os
municípios para poderem responder às atuais exigências da sociedade civil – analisa o trabalho das
autarquias municipais em 5 dimensões significativas: “voz dos cidadãos e
prestação de contas”; “estabilidade política”; “eficácia governamental”; “acesso
e regulamentação do mercado”; e “Estado de direito e prevenção da corrupção”. E
estriba-se nos dados fornecidos a partir de 22 indicadores como, por exemplo, a
transparência, gestão da dívida, procedimentos de contratação pública ou a
qualidade dos contratos submetidos à fiscalização prévia do Tribunal de Contas.
Conjugados e ponderados os resultados obtidos
naqueles 5 pontos, destacam-se os melhores municípios por dimensão avaliada: Ponta Delgada, em “voz dos cidadãos e
prestação de contas”; Pampilhosa da Serra,
em “estabilidade política”; Marinha
Grande, em “eficácia governamental”; Fronteira,
em “acesso e
regulamentação do mercado”; e Carrazeda
de Ansiães, em “Estado de direito e prevenção da corrupção”. E foram elencados os 25 municípios com melhor
classificação no âmbito da qualidade de governação local e pela seguinte ordem
decrescente: Mealhada, Abrantes, Oliveira do Hospital, Boticas, Proença-a-Nova,
Penacova, Santa Marta de Penaguião, Marinha Grande, Castro Verde, Alvaiázere,
Redondo, Marvão, Sátão, Mértola, Pombal, Bragança, Vimioso, Barreiro, Sertã,
Loures, Alvito, Vila Nova de Foz Coa, Arronches, Vinhais e Arcos de Valdevez (vd JN,
de 27 de novembro).
Verificando que não releva a região em que a autarquia
se insere ou a cor política que domina a administração do município, é de
assinalar que não constam deste ranking
Lisboa e Porto nem nenhum dos municípios do Algarve. Por outro lado, o estudo mostra que, na região de Lisboa (com exceção de Grândola, no distrito de Setúbal) e no Algarve, os cidadãos
pagam, em média, mais de 500 euros por ano em impostos enquanto no resto do
país esse valor é de 207,86.
Porém, em relação às classificações descritas no documento, Luís de Sousa (fundador e antigo presidente da representação portuguesa da Transparência Internacional), adverte que, ao fazer-se uma
avaliação da “Qualidade da governação local em Portugal”, se aconselha os “decisores locais a não olharem
para os rankings” pois
“o índice tem 22 indicadores com peso ponderado”.
***
Depois, o estudo, que salienta, segundo o JN, o facto de 60% de as compras dos
municípios ser feita por ajuste direto, alerta para o risco de corrupção na
contratação. Com efeito, a maioria das câmaras opta pelo ajuste direto na
aquisição de obras, bens e serviços, de tal modo que, entre 2013 e 2016, apenas
39% do dinheiro alocado à contratação pública pelos municípios foi gasto com
recurso a concurso público. Como é sabido, foi estabelecido e posteriormente
aumentado o plafond (neste momento é de 150 mil euros) até
cujo limite é admissível o ajuste direto. Coisa análoga se verifica em relação
ao concurso limitado (O
município consulta três entidades e decide pela que oferece melhores condições,
de que resulta, muitas vezes, o mesmo vencedor porque tais entidades apresentam
orçamentos combinados). Porém, não raro sucede que os gestores
municipais fragmentam a obra, complexo de bens ou serviços em unidades
autónomas com vista ao concurso limitado ou ao ajuste direto, com também as
assembleias municipais podem autorizar o ajuste direto em caso de “manifesta” (nem sempre real) urgência ou
necessidade e de colmatação inadiável.
No atinente à transparência, é de sublinhar que só
118 (38,31%) câmaras divulgam as remunerações, 97 (31,49%) publicam detalhadamente os curricula dos
eleitos, 40 (12,99%)
mostram as declarações de incompatibilidade e rendimento e 19 (6,17%) expõem as declarações patrimoniais. Mas um
terço nada revela nos seus sites.
E, na contratação pública, é referida a crassa
falta de transparência, sendo a “disponibilização proativa de informação”
sistematicamente baixa, o que pode mascarar má despesa pública por excesso,
favorecimento, compadrio e até corrupção.
Ora, corre-se o risco de ver aumentar
exponencialmente isto com a transferência de competências da administração
central para a administração local – educação; saúde: ação social; proteção
civil; cultura; património; habitação;
áreas portuário-marítimas e áreas urbanas de desenvolvimento turístico e
económico não afetas à atividade portuária; praias
marítimas, fluviais e lacustres; informação cadastral, gestão florestal e áreas
protegidas; transportes e vias de comunicação; estruturas de atendimento ao
cidadão;
policiamento de proximidade; proteção e saúde animal; segurança
dos alimentos; segurança contra incêndios; estacionamento público; e modalidades
afins de jogos de fortuna e azar (vd Lei-quadro da
transferência de competências para as autarquias locais e para as entidades
intermunicipais, aprovada pela Lei n.º 50/2018, de 16 de agosto).
A
enumeração, que fiz de propósito, marca a abundância de competências a
transferir, o que implicaria um enorme envelope financeiro, em que a
administração central é excessivamente avara, bem como a transferência de
pessoal e de recursos técnicos. Ora, se os municípios de Lisboa e do Porto são
praticamente Estados dentro do Estado e já disputam há anos a maior parte
destas competências, o grosso dos municípios não tem escala, dinheiro, pessoal
e outros recursos para arcar com estas responsabilidades, o que não se diria de
regiões administrativas dotadas de órgãos próprios e democráticos. Assim, além
da ineficácia, transferir-se-á o nível de familiarismo, amicismo, compadrio e
corrupção da administração central para a local, sendo que esta terá mais apetência
para tal, apenas não lhe é possível exibir o volume, por enquanto. E, dada a
falta de vocação para assumir competências em muitas das áreas elencadas (o
politicamente correto não o deixa afirmar),
corre-se o risco da privatização de bens, serviços e obras através da
contratação e concessão através de concurso público (nalguns
casos internacional),
concurso limitado e ajuste direto, em conformidade com a necessidade, a
conveniência ou a amizade. Também não se pode olvidar que
o estudo em referência analisou a qualidade e a sustentabilidade dos serviços
essenciais prestados pelas câmaras: água, saneamento e tratamento de resíduos
sólidos urbanos. Estes serviços, em 211 municípios (68,5%), carecem de sustentabilidade financeira, sendo
melhor o desempenho global na recolha e tratamento dos lixos.
Apesar de tudo,
nomeadamente a proliferação do ajuste direto, a maior parte das autarquias
diversifica os fornecedores: só 4 câmaras deram 3 ou mais contratos ao mesmo
fornecedor.
***
A par dos dados
estatísticos recolhidos e tratados, a grande conclusão é a de que os autarcas
têm demasiado poder, pelo que o
modelo de governo local tem de ser
repensado. Deve mesmo partir-se para um modo diferente de governar – há
autarquias que o vêm timidamente experimentando, mas que deve ser ampliado e
instituído – que implicar a perda de poder
dos presidentes de câmara, passando essa autoridade a ser compartilhada com
outras entidades (universidades, grémios,
empresas, associações, Igrejas…) que influenciam o modo como alguns serviços são prestados às populações. Luís
de Sousa declarou, a este respeito, ao DN:
“Este trabalho permite concluir que neste
momento existem dois sistemas de governação local: um tradicional em que a
câmara municipal está no centro da dinâmica local, quer do ponto de vista de
emprego, quer do ponto de vista do volume de negócios; e um outro que está a
emergir em que o município tem uma função mais de mediação, de negociação
contínua entre os diferentes atores do desenvolvimento local e que têm cada um
recursos diferentes”.
E o académico chama a atenção para outro problema nevrálgico no poder
autárquico: o défice crescente de
participação dos cidadãos nas questões relacionadas com a governação local, não
só pela verificação de menor participação nas eleições autárquicas como no
envolvimento nos órgãos municipais como a AM (assembleia municipal). Diz
ele a propósito:
“O desenho institucional das assembleias
municipais tem de ser reequacionado. Fez sentido na transição democrática, mas
deixou de o fazer nos anos 80 do século passado. A assembleia municipal junta
os eleitos por lista e os presidentes de junta que participam por inerência e
com direito de voto e isso é um problema pois em matérias de investimento
público na sua junta votam em causa própria. Foram colocados nas AM para que se
pudessem fazer ouvir no caso de o executivo ser de outro partido que não o seu,
mas isso agora já não faz sentido.”.
Também me parece. Isto até parece o conselho de presbíteros numa diocese:
membros eleitos, membros designados e membros por inerência. A experiência
mostra que os presidentes de junta muito raramente votam contra o orçamento e
poucas vezes se abstêm, dado o receio que têm da autarquia municipal retaliar a
sua postura sobre as respetivas freguesias.
A ausência dos cidadãos nas sessões das AM pode justificar-se com o horário
de realização (“a maioria decorre em horário laboral”) e com a atitude das pessoas, que só se dirigem à AM quando se
esgotaram todos os outros mecanismos disponíveis para a solução dos seus
problemas como o contacto direto com o presidente da câmara ou com um vereador.
E Luís de Sousa acrescenta:
“Por outro lado quando vemos os baixos níveis de representação isso
não significa que o cidadão esteja satisfeito com a qualidade da governação,
muitas vezes não se queixam por medo de represálias ou por acharem que a queixa
vai ser inconsequente. Tudo isto denota que a sociedade civil tem de ser mais
exigente.”.
Também sucede, não raras vezes, que os próprios
deputados municipais têm dificuldade em intervir, dado que, sobretudo quando a
mesa reflete na sua composição a maioria política partidária ou equivalente que
dirige os destinos da autarquia, facilmente o executivo ou a mesa da AM assume
como ataque pessoal aos dirigentes do poder ou ignorância por parte do
interveniente quaisquer opiniões divergentes. Algo semelhante acontece na
reunião camarária com vereadores da oposição. Acresce que, em muitos
municípios, os membros do público têm de se inscrever com alguns dias de
antecedência para poderem intervir na AM ou nas reuniões pública da Câmara.
Depois, dificilmente se entende como uma Câmara pode tratar munícipes de forma
desigual. Não pode o poder ser exercido como se fora uma favor a fazer aos cidadãos,
que têm de o pedir, merecer e agradecer.
É, pois, necessário pensar a refundação do modelo de governação nos
municípios, tirando partido dos bons exemplos existentes, como no atinente aos
orçamentos participativos disponíveis em 86 municípios, em que os cidadãos podem
apresentar projetos e pô-los à votação dos cidadãos, e ao cuidado com a gestão
financeira por parte dos executivos camarários pois 187 das 308 autarquias tem dívidas
inferiores a 60% do seu orçamento, devendo registar-se que a maioria das
câmaras demora menos de um mês para o pagamento de serviços, material e
equipamento e que metade dos municípios o fazem em menos de três semanas. A este respeito, Luís
Sousa, também investigador auxiliar do Instituto de Ciências Sociais da
Universidade de Lisboa, vinca:
“O futuro está na governação em rede, com a inclusão do mundo
empresarial, das universidades, deixando de existir uma excessiva concentração
de poderes nos presidentes das câmaras. No entanto, à medida que a governação
se vai alargando e com outros interesses é importante que se salvaguarde o
interesse público.”.
E, além da governança compartilhada e em rede, importa aumentar o “escrutínio
de potenciais conflitos de interesses” à medida que se vai aumentando a
presença de instituições no governo local. Por outro lado, segundo o mesmo
académico, não pode ficar por fazer a prevenção do risco e da corrupção,
devendo criar-se “medidas internas para mitigar estas situações”, pois não se
pode estar à espera de novas leis quando muitos problemas podem ser resolvidos
a nível local.
Não está em causa a grande evolução na qualidade
da governação regional ao longo dos últimos 40 anos, nem sempre para melhor, do
meu ponto de vista; o que importa discutir é a necessidade “de repensar a
arquitetura institucional” municipal, visto que “as exigências agora são outras”.
Não basta discutir as transferências de competências e o correspondente envelope
financeiro e técnico; é preciso pensar como são tomadas as decisões, ou seja, a
democracia do sistema, para a autarquia ficar mais apta a tomar decisões e estar
à altura dos desafios, como, por exemplo, perceber o impacto da globalização
nos municípios. E a principal mudança para a melhoria da dinâmica das decisões
política e económicas a nível local passa por maior interação com instituições
públicas, associações empresariais, grupos organizados de cidadãos e
instituições de ensino, bem como pela disponibilização de informação online sobre
a vida do município, as contas e gestão com vista a maior transparência na
governação.
Os autores do estudo defendem uma maior abertura de quem lidera as
autarquias ao escrutínio por parte da oposição e uma maior disponibilização de
informação no respeitante à contratação pública, ponto sistematicamente
referido como um dos maiores problemas dos municípios.
Em síntese,
são feitas explicitamente 7 recomendações principais: divulgação exaustiva de remunerações, rendimentos, interesses e
curriculum detalhado; generalizada adoção e maior dotação de orçamentos participativos e promoção de
maior participação dos cidadãos nas decisões; reforço dos poderes e pluralismo das
assembleias municipais e dotação de
assessorias, com a diminuição do pontificado dos presidentes de câmara; consulta obrigatória à oposição (na
elaboração do orçamento e grandes opções do plano, nas auditorias,
fiscalizações e inquéritos à autarquia);
auscultação aos atores locais (envolvendo-os
na definição de políticas locais de desenvolvimento económico e social); maior atividade das CCDR e entidades intermunicipais (com
vista a promover ações concertadas entre os municípios com desafios comuns); e ligação ao ensino superior (para que o conhecimento
produzido redunde em benefício do desenvolvimento económico regional).
***
Se efetivamente
estes desideratos se forem conseguindo, as autarquias deixarão de ser a açoteia
dos compadres e o campo de jogos de interesses e serão verdadeiros laboratórios
da democracia!
2018.11.28 –
Louro de Carvalho
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