quarta-feira, 28 de novembro de 2018

É preciso repensar a governação municipal em função da sociedade


Como deram conta os diversos órgãos de comunicação social, em especial o DN, o JN e o Centro Notícias, esta é uma das principais conclusões do estudo sobre a “Qualidade da governação local em Portugal”, da responsabilidade de académicos da UM (Universidade do Minho) – Ana Macedo, Daniel Fernandes, Filipe Teles, Luís F. Mota, Nuno F. da Cruz e Sara Moreno Pires sob a coordenação de António Tavares e Luís de Sousa – e que a FFMS (Fundação Francisco Manuel dos Santos) editou e apresentou a partir das 11 horas do dia 27 de novembro no auditório da Câmara Municipal de Portalegre, no âmbito da Jornada do Poder Local
Nos debates ali organizados pela FFMS em torno do tema, participaram Nunes Liberato (antigo Secretário de Estado da Administração local e Ordenamento do território), Rui Pereira (antigo Ministro da Administração Interna), Carla Tavares (Presidente da Câmara Municipal da Amadora), Paulo Fernandes (Presidente da Câmara Municipal do Fundão), Maria das Dores Meira (Presidente da Câmara Municipal de Setúbal), Adelaide Teixeira (Presidente da Câmara de Portalegre), Rita Nabeiro (CEO da Adega Mayor).
O estudo equaciona a necessidade de se repensar a organização do poder local em Portugal, que não passa só nem principalmente pela “transferência de competências e o respetivo envelope financeiro”, como sublinha Luís de Sousa, um dos dois coordenadores.
O predito estudo – de que se conclui a necessidade de alterar a forma como são governados os municípios para poderem responder às atuais exigências da sociedade civil – analisa o trabalho das autarquias municipais em 5 dimensões significativas: “voz dos cidadãos e prestação de contas”; “estabilidade política”; “eficácia governamental”; “acesso e regulamentação do mercado”; e “Estado de direito e prevenção da corrupção”. E estriba-se nos dados fornecidos a partir de 22 indicadores como, por exemplo, a transparência, gestão da dívida, procedimentos de contratação pública ou a qualidade dos contratos submetidos à fiscalização prévia do Tribunal de Contas.
Conjugados e ponderados os resultados obtidos naqueles 5 pontos, destacam-se os melhores municípios por dimensão avaliada: Ponta Delgada, em “voz dos cidadãos e prestação de contas”; Pampilhosa da Serra, em “estabilidade política”; Marinha Grande, em “eficácia governamental”; Fronteira, em “acesso e regulamentação do mercado”; e Carrazeda de Ansiães, em “Estado de direito e prevenção da corrupção”. E foram elencados os 25 municípios com melhor classificação no âmbito da qualidade de governação local e pela seguinte ordem decrescente: Mealhada, Abrantes, Oliveira do Hospital, Boticas, Proença-a-Nova, Penacova, Santa Marta de Penaguião, Marinha Grande, Castro Verde, Alvaiázere, Redondo, Marvão, Sátão, Mértola, Pombal, Bragança, Vimioso, Barreiro, Sertã, Loures, Alvito, Vila Nova de Foz Coa, Arronches, Vinhais e Arcos de Valdevez (vd JN, de 27 de novembro).
Verificando que não releva a região em que a autarquia se insere ou a cor política que domina a administração do município, é de assinalar que não constam deste ranking Lisboa e Porto nem nenhum dos municípios do Algarve. Por outro lado, o estudo mostra que, na região de Lisboa (com exceção de Grândola, no distrito de Setúbal) e no Algarve, os cidadãos pagam, em média, mais de 500 euros por ano em impostos enquanto no resto do país esse valor é de 207,86.
Porém, em relação às classificações descritas no documento, Luís de Sousa (fundador e antigo presidente da representação portuguesa da Transparência Internacional), adverte que, ao fazer-se uma avaliação da “Qualidade da governação local em Portugal”, se aconselha os “decisores locais a não olharem para os rankings pois “o índice tem 22 indicadores com peso ponderado”.
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Depois, o estudo, que salienta, segundo o JN, o facto de 60% de as compras dos municípios ser feita por ajuste direto, alerta para o risco de corrupção na contratação. Com efeito, a maioria das câmaras opta pelo ajuste direto na aquisição de obras, bens e serviços, de tal modo que, entre 2013 e 2016, apenas 39% do dinheiro alocado à contratação pública pelos municípios foi gasto com recurso a concurso público. Como é sabido, foi estabelecido e posteriormente aumentado o plafond (neste momento é de 150 mil euros) até cujo limite é admissível o ajuste direto. Coisa análoga se verifica em relação ao concurso limitado (O município consulta três entidades e decide pela que oferece melhores condições, de que resulta, muitas vezes, o mesmo vencedor porque tais entidades apresentam orçamentos combinados). Porém, não raro sucede que os gestores municipais fragmentam a obra, complexo de bens ou serviços em unidades autónomas com vista ao concurso limitado ou ao ajuste direto, com também as assembleias municipais podem autorizar o ajuste direto em caso de “manifesta” (nem sempre real) urgência ou necessidade e de colmatação inadiável.
No atinente à transparência, é de sublinhar que só 118 (38,31%) câmaras divulgam as remunerações, 97 (31,49%) publicam detalhadamente os curricula dos eleitos, 40 (12,99%) mostram as declarações de incompatibilidade e rendimento e 19 (6,17%) expõem as declarações patrimoniais. Mas um terço nada revela nos seus sites.
E, na contratação pública, é referida a crassa falta de transparência, sendo a “disponibilização proativa de informação” sistematicamente baixa, o que pode mascarar má despesa pública por excesso, favorecimento, compadrio e até corrupção.  
Ora, corre-se o risco de ver aumentar exponencialmente isto com a transferência de competências da administração central para a administração local – educação; saúde: ação social; proteção civil; cultura; património; habitação; áreas portuário-marítimas e áreas urbanas de desenvolvimento turístico e económico não afetas à atividade portuária; praias marítimas, fluviais e lacustres; informação cadastral, gestão florestal e áreas protegidas; transportes e vias de comunicação; estruturas de atendimento ao cidadão; policiamento de proximidade; proteção e saúde animal; segurança dos alimentos; segurança contra incêndios; estacionamento público; e modalidades afins de jogos de fortuna e azar (vd Lei-quadro da transferência de competências para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais, aprovada pela Lei n.º 50/2018, de 16 de agosto).
A enumeração, que fiz de propósito, marca a abundância de competências a transferir, o que implicaria um enorme envelope financeiro, em que a administração central é excessivamente avara, bem como a transferência de pessoal e de recursos técnicos. Ora, se os municípios de Lisboa e do Porto são praticamente Estados dentro do Estado e já disputam há anos a maior parte destas competências, o grosso dos municípios não tem escala, dinheiro, pessoal e outros recursos para arcar com estas responsabilidades, o que não se diria de regiões administrativas dotadas de órgãos próprios e democráticos. Assim, além da ineficácia, transferir-se-á o nível de familiarismo, amicismo, compadrio e corrupção da administração central para a local, sendo que esta terá mais apetência para tal, apenas não lhe é possível exibir o volume, por enquanto. E, dada a falta de vocação para assumir competências em muitas das áreas elencadas (o politicamente correto não o deixa afirmar), corre-se o risco da privatização de bens, serviços e obras através da contratação e concessão através de concurso público (nalguns casos internacional), concurso limitado e ajuste direto, em conformidade com a necessidade, a conveniência ou a amizade. Também não se pode olvidar que o estudo em referência analisou a qualidade e a sustentabilidade dos serviços essenciais prestados pelas câmaras: água, saneamento e tratamento de resíduos sólidos urbanos. Estes serviços, em 211 municípios (68,5%), carecem de sustentabilidade financeira, sendo melhor o desempenho global na recolha e tratamento dos lixos.
Apesar de tudo, nomeadamente a proliferação do ajuste direto, a maior parte das autarquias diversifica os fornecedores: só 4 câmaras deram 3 ou mais contratos ao mesmo fornecedor.
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A par dos dados estatísticos recolhidos e tratados, a grande conclusão é a de que os autarcas têm demasiado poder, pelo que o modelo de governo local tem de ser repensado. Deve mesmo partir-se para um modo diferente de governar – há autarquias que o vêm timidamente experimentando, mas que deve ser ampliado e instituído – que implicar a perda de poder dos presidentes de câmara, passando essa autoridade a ser compartilhada com outras entidades (universidades, grémios, empresas, associações, Igrejas…) que influenciam o modo como alguns serviços são prestados às populações. Luís de Sousa declarou, a este respeito, ao DN:
Este trabalho permite concluir que neste momento existem dois sistemas de governação local: um tradicional em que a câmara municipal está no centro da dinâmica local, quer do ponto de vista de emprego, quer do ponto de vista do volume de negócios; e um outro que está a emergir em que o município tem uma função mais de mediação, de negociação contínua entre os diferentes atores do desenvolvimento local e que têm cada um recursos diferentes”.
E o académico chama a atenção para outro problema nevrálgico no poder autárquico: o défice crescente de participação dos cidadãos nas questões relacionadas com a governação local, não só pela verificação de menor participação nas eleições autárquicas como no envolvimento nos órgãos municipais como a AM (assembleia municipal). Diz ele a propósito:
O desenho institucional das assembleias municipais tem de ser reequacionado. Fez sentido na transição democrática, mas deixou de o fazer nos anos 80 do século passado. A assembleia municipal junta os eleitos por lista e os presidentes de junta que participam por inerência e com direito de voto e isso é um problema pois em matérias de investimento público na sua junta votam em causa própria. Foram colocados nas AM para que se pudessem fazer ouvir no caso de o executivo ser de outro partido que não o seu, mas isso agora já não faz sentido.”.
Também me parece. Isto até parece o conselho de presbíteros numa diocese: membros eleitos, membros designados e membros por inerência. A experiência mostra que os presidentes de junta muito raramente votam contra o orçamento e poucas vezes se abstêm, dado o receio que têm da autarquia municipal retaliar a sua postura sobre as respetivas freguesias.   
A ausência dos cidadãos nas sessões das AM pode justificar-se com o horário de realização (“a maioria decorre em horário laboral”) e com a atitude das pessoas, que só se dirigem à AM quando se esgotaram todos os outros mecanismos disponíveis para a solução dos seus problemas como o contacto direto com o presidente da câmara ou com um vereador. E Luís de Sousa acrescenta:
Por outro lado quando vemos os baixos níveis de representação isso não significa que o cidadão esteja satisfeito com a qualidade da governação, muitas vezes não se queixam por medo de represálias ou por acharem que a queixa vai ser inconsequente. Tudo isto denota que a sociedade civil tem de ser mais exigente..
Também sucede, não raras vezes, que os próprios deputados municipais têm dificuldade em intervir, dado que, sobretudo quando a mesa reflete na sua composição a maioria política partidária ou equivalente que dirige os destinos da autarquia, facilmente o executivo ou a mesa da AM assume como ataque pessoal aos dirigentes do poder ou ignorância por parte do interveniente quaisquer opiniões divergentes. Algo semelhante acontece na reunião camarária com vereadores da oposição. Acresce que, em muitos municípios, os membros do público têm de se inscrever com alguns dias de antecedência para poderem intervir na AM ou nas reuniões pública da Câmara. Depois, dificilmente se entende como uma Câmara pode tratar munícipes de forma desigual. Não pode o poder ser exercido como se fora uma favor a fazer aos cidadãos, que têm de o pedir, merecer e agradecer.
É, pois, necessário pensar a refundação do modelo de governação nos municípios, tirando partido dos bons exemplos existentes, como no atinente aos orçamentos participativos disponíveis em 86 municípios, em que os cidadãos podem apresentar projetos e pô-los à votação dos cidadãos, e ao cuidado com a gestão financeira por parte dos executivos camarários pois 187 das 308 autarquias tem dívidas inferiores a 60% do seu orçamento, devendo registar-se que a maioria das câmaras demora menos de um mês para o pagamento de serviços, material e equipamento e que metade dos municípios o fazem em menos de três semanas. A este respeito, Luís Sousa, também investigador auxiliar do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, vinca:
O futuro está na governação em rede, com a inclusão do mundo empresarial, das universidades, deixando de existir uma excessiva concentração de poderes nos presidentes das câmaras. No entanto, à medida que a governação se vai alargando e com outros interesses é importante que se salvaguarde o interesse público.”.
E, além da governança compartilhada e em rede, importa aumentar o “escrutínio de potenciais conflitos de interesses” à medida que se vai aumentando a presença de instituições no governo local. Por outro lado, segundo o mesmo académico, não pode ficar por fazer a prevenção do risco e da corrupção, devendo criar-se “medidas internas para mitigar estas situações”, pois não se pode estar à espera de novas leis quando muitos problemas podem ser resolvidos a nível local.
Não está em causa a grande evolução na qualidade da governação regional ao longo dos últimos 40 anos, nem sempre para melhor, do meu ponto de vista; o que importa discutir é a necessidade “de repensar a arquitetura institucional” municipal, visto que “as exigências agora são outras”.
Não basta discutir as transferências de competências e o correspondente envelope financeiro e técnico; é preciso pensar como são tomadas as decisões, ou seja, a democracia do sistema, para a autarquia ficar mais apta a tomar decisões e estar à altura dos desafios, como, por exemplo, perceber o impacto da globalização nos municípios. E a principal mudança para a melhoria da dinâmica das decisões política e económicas a nível local passa por maior interação com instituições públicas, associações empresariais, grupos organizados de cidadãos e instituições de ensino, bem como pela disponibilização de informação online sobre a vida do município, as contas e gestão com vista a maior transparência na governação.
Os autores do estudo defendem uma maior abertura de quem lidera as autarquias ao escrutínio por parte da oposição e uma maior disponibilização de informação no respeitante à contratação pública, ponto sistematicamente referido como um dos maiores problemas dos municípios.
Em síntese, são feitas explicitamente 7 recomendações principais: divulgação exaustiva de remunerações, rendimentos, interesses e curriculum detalhado; generalizada adoção e maior dotação de orçamentos participativos e promoção de maior participação dos cidadãos nas decisões; reforço dos poderes e pluralismo das assembleias municipais e dotação de assessorias, com a diminuição do pontificado dos presidentes de câmara; consulta obrigatória à oposição (na elaboração do orçamento e grandes opções do plano, nas auditorias, fiscalizações e inquéritos à autarquia); auscultação aos atores locais (envolvendo-os na definição de políticas locais de desenvolvimento económico e social); maior atividade das CCDR e entidades intermunicipais (com vista a promover ações concertadas entre os municípios com desafios comuns); e ligação ao ensino superior (para que o conhecimento produzido redunde em benefício do desenvolvimento económico regional).
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Se efetivamente estes desideratos se forem conseguindo, as autarquias deixarão de ser a açoteia dos compadres e o campo de jogos de interesses e serão verdadeiros laboratórios da democracia!
2018.11.28 – Louro de Carvalho

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