domingo, 4 de novembro de 2018

A experiência cristã consubstancia-se no amor


É Jesus quem o estabelece ao dizer aos discípulos em testamento na noite da Última Ceia:
Dou-vos um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros; que vos ameis uns aos outros assim como Eu vos amei. Por isto é que todos conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros.” (Jo 13, 34-35).
E mais adiante:
Como o Pai me tem amor, assim Eu vos amo a vós. Permanecei no meu amor. Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor, assim como Eu, que tenho guardado os mandamentos do meu Pai, também permaneço no seu amor. […]. É este o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros como Eu vos amei. Ninguém tem mais amor do que quem dá a vida pelos seus amigos. Vós sois meus amigos, se fizerdes o que Eu vos mando. Já não vos chamo servos, visto que um servo não está ao corrente do que faz o seu senhor; mas a vós chamei-vos amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi ao meu Pai.” (Jo 15,9-10.12-15).
Por isso, a liturgia do XXXI domingo do Tempo Comum no Ano B garante-nos a centralidade do amor na experiência cristã, sendo que a via que somos instados a percorrer se resume no amor a Deus e no amor aos irmãos – vertentes que não se excluem, antes se complementam.
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Começando pela 1.ª leitura (Dt 6,2-6), é de registar a apresentação do início do “Shema’ Israel” (“Escuta, Israel”), ou seja, a solene proclamação de fé que o israelita deve fazer diariamente, consubstanciada na afirmação da unicidade de Deus (Deus é um só) e no convite a amar a Deus com todo o coração, com toda a alma e com todas as forças. O “Shema’ Israel” insere-se no Deuteronómio, livro da Lei ou livro da Aliança, descoberto no Templo de Jerusalém no XVIII ano do reinado de Josias (622 a.C.cf 2 Rs 22). Nele, os deuteronomistas – oriundos do Norte, mas refugiados no sul (Judá) após as derrotas dos reis do norte frente aos assírios – expõem os dados basilares da sua teologia: um só Deus, que deve ser adorado num só local de culto (Jerusalém) por todo o Povo, que amou e escolheu Israel com quem estabeleceu uma Aliança eterna (que Deus cumpre na íntegra); e o Povo, que deve tornar-se um único Povo, propriedade de Jahwéh (não têm sentido as questões que induziram a divisão política e religiosa, após a morte de Salomão). O livro apresenta três discursos de Moisés, proferidos nas planícies de Moab, que, ao pressentir a morte, deixa ao Povo o “testamento espiritual”, lembrando-lhe os compromissos assumidos para com Deus e instando-o a renovar a aliança com Ele, prometendo vida longa em terra próspera.
O texto desta dominga integra o 2.º discurso (cf Dt 4,44-28,68), considerado o centro do Livro em razão do lugar que nele tem e pela sua importância, organizando-se em três peças principais: introdução (cf Dt 4,44-11,32), código legal (cf Dt 12,1-25,19) e conclusão (cf Dt 26,1-28,68).
A introdução (cf Dt 4,44-9,5) mostra o Decálogo (cf Dt 5,1-33) como Lei basilar da Aliança feita entre Deus e Israel no Horeb e uma série de exortações ao Povo para que viva na fidelidade aos mandamentos (cf Dt 6,1-9,5). A passagem em referência é um trecho dessa exortação.
Inicia-se com uma exortação a temer o Senhor e a cumprir todas as suas leis e mandamentos (vv 2-3). Esta expressão (estranha nos dias de hoje) é recorrente no AT (Antigo Testamento), traduzindo a reverência e a pronta e incondicional obediência à vontade divina, a inamovível confiança no Deus infalível, a renúncia aos próprios critérios, a adesão incondicional à vontade de Deus. Do conceito hebraico aproxima-se o grego timê (honra, dignificação…, em relação com o verbo timáô, honrar, apreciar positivamente, adorar) implicando a adoração amorosa em espírito e verdade (cf Jo 4,23-24).
Na ótica deuteronomista, o crente, temente a Deus, está disposto a renunciar à autossuficiência e à não procura da felicidade pondo de lado o Senhor; com total confiança, entrega-se nas mãos de Deus, aceita as suas indicações como via segura e verdadeira para chegar à vida. A quem aceita viver no temor do Senhor o hagiógrafo garante a vida em abundância. A seguir (vv 4-6), vem o “Shema’ Israel” (“Escuta, Israel”), texto central do judaísmo, que desde finais do século I é rezado pelos judeus piedosos diariamente, de manhã e de tarde. Neste contexto, o verbo escutar, sendo prioritário e condição para amar, define a tríplice ação: ouvir com os ouvidos; acolher no coração; e transformar em ação concreta o que se ouviu e acolheu (cf Tg 1,22-25; 2,14-26). Começando com a afirmação solene da unicidade de Deus (“o Senhor é único”), postula que o crente ouça e interiorize esta realidade e aja em conformidade, ficando, portanto, afastada do seu horizonte a possibilidade de adesão a outros deuses ou a outras propostas de salvação – ao que é tentado tantas vezes e de tantas formas. Vem, depois, a exigência de amar este Deus único com um amor indiviso, que implica a totalidade do homem (“amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças”), um amor, que interiorizado no coração e na alma do homem, se deve traduzir na observância fiel dos mandamentos e preceitos da Aliança.
Decorrente deste amor a Deus acima de tudo e em paralelo com ele, vem a exigência do amor ao próximo, ilustrada no Evangelho, como se verá adiante, e como enuncia a 1.ª Carta de João:
Nós sabemos que passámos da morte para a vida, porque amamos os irmãos. Quem não ama, permanece na morte. Todo aquele que tem ódio a seu irmão é um homicida. (1Jo 3,14-15). Se alguém disser: ‘Eu amo a Deus’, mas tiver ódio ao seu irmão, esse é um mentiroso; pois aquele que não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê. E nós recebemos dele este mandamento: quem ama a Deus, ame também o seu irmão. (1Jo 14,20-21).”.
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O Evangelho (Mc 12,28-34) diz-nos claramente que toda a experiência de fé do discípulo de Jesus se resume no amor: amor a Deus e amor aos irmãos. Os dois preceitos são inseparáveis: amar a Deus é escutá-Lo, fazer a sua vontade e firmar com os irmãos relações de amor, solidariedade, partilha, serviço, até ao dom total da vida. O resto é explicação, desenvolvimento, aplicação à vida prática destas duas coordenadas fundamentais.
Esta perícopa evangélica situa-nos no centro de Jerusalém, cidade dos últimos passos da via que Jesus percorreu com os discípulos desde a Galileia. Antes, Jesus expulsara os vendilhões do Templo (cf Mc 11,15-18), acusando os líderes de fazerem da “casa de Deus um covil de ladrões”; depois, contara a parábola dos vinhateiros homicidas (cf Mc 12,1-12), acusando os dirigentes de se oporem continuadamente à realização do plano de Deus. E os líderes judaicos, convictos, por conveniência, de que Jesus era irrecuperável, tinham decidido prendê-Lo, julgá-Lo, condená-Lo e eliminá-Lo. Fariseus, herodianos (cf Mc 12,13) e saduceus (cf Mc 12,18) estendem-Lhe armadilhas para O surpreenderem em afirmações não ortodoxas que pudessem usar em tribunal com vista à condenação. Nesta ordem de ideias se devem entender as controvérsias sobre o tributo a César (cf Mc 12,13-17) e sobre a ressurreição (cf Mc 12,18-27).
Neste tenso ambiente, surge um escriba a perguntar a Jesus qual era o maior mandamento da Lei. Porém, ao invés de Mateus (cf Mt 22,34-40), Marcos não considera a questão como posta a Jesus para o embaraçar ou pôr à prova. O escriba parece um homem sincero, bem intencionado e genuinamente preocupado em estabelecer a hierarquia dos mandamentos. Com efeito, a eleição do maior mandamento, nada pacífica, tornou-se, no tempo de Jesus, objeto de muitos debates entre fariseus e doutores da Lei. Com efeito, a preocupação de aplicar a Lei a todas as questões da vida do dia a dia levara os doutores a deduzir um conjunto de 613 preceitos (365 proibições e 248 ações a pôr em prática), multiplicação que lançava a questão das prioridades: Todos os preceitos têm importância igual ou há algum mais importante do que os outros? Citando o primeiro versículo do “Shema’ Israel”, Jesus declara solenemente que o primeiro mandamento é o amor a Deus, um amor que deve ser total e indiviso, feito de adesão plena aos projetos, à vontade, aos mandamentos. Como a resposta parecia insuficiente, Jesus completa-a com a apresentação dum segundo mandamento (“amarás o teu próximo como a ti mesmo” – citação de Lv 19,18). Em suma, o maior mandamento é o amor, que se concretiza em duas vertentes que se completam mutuamente: a do amor a Deus e a do amor ao próximo.
A originalidade deste sumário não está nas ideias de amor a Deus e ao próximo, conhecidas do AT, mas no facto de Jesus aproximar estes amores um do outro, pondo-os em perfeito paralelo, e de simplificar e concentrar toda a revelação de Deus nestes dois mandamentos. Assim, a resposta de Jesus não intenta uma hierarquia de mandamentos, mas o acento da sua incidência nas opções profundas do homem. Na perspetiva de Jesus, não é interessa definir qual o mandamento mais importante, mas encontrar a raiz de todos os mandamentos, que gravita em torno de duas coordenadas: amor a Deus e amor ao próximo. Por isso, o compromisso proposto aos crentes do AT e do NT (Novo Testamento) resume-se no amor a Deus e no amor ao próximo. Porém, Jesus aduz um novo conceito de próximo, que ultrapassa as barreiras pessoais, regionais e nacionais, religiosas e sociais. O próximo é quem precisa de nós e/ou quem tem compaixão de nós (cf Lc 10,29-37). Mais estipula, ao contrário dos critérios do mundo:
Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, abençoai os que vos amaldiçoam, rezai pelos que vos caluniam” (Lc 6,27-28; cf Mt 5,43-48).
Segundo os relatos evangélicos, Jesus nunca se preocupou excessivamente com o cumprimento dos rituais litúrgicos, nem viveu obcecado com a oferta de dons materiais a Deus. A sua grande preocupação foi, antes, discernir a vontade do Pai e cumpri-la com fidelidade e amor. Na sua perspetiva, amar a Deus é estar atento aos projetos do Pai e concretizar, na vida do dia a dia, os seus planos. E, na vida de Jesus, cumprir a vontade do Pai passa por fazer da vida uma entrega de amor aos irmãos, se necessário até ao dom total de si mesmo. Assim, amor a Deus e amor aos irmãos estão intimamente associados: amar a Deus é cumprir o seu projeto de amor, que se concretiza na solidariedade, partilha, serviço e dom da vida aos irmãos.
Este texto de Marcos só explica que é preciso “amar o próximo como a si mesmo”, que significa amar totalmente, de todo o coração. Contudo, noutros textos do NT, Jesus explica aos discípulos que é preciso, como foi referido, amar os inimigos e orar pelos perseguidores (cf Mt 5,43-48; Lc 6,27-28). É um amor sem limites, sem medida e que não distingue entre bons e maus, amigos e inimigos. Aliás, Lucas, ao referir este episódio, acrescenta-lhe a história do bom samaritano, para significar que o amor aos irmãos, sobrepondo-se ao serviço do Templo, é incondicional e deve atingir todo o irmão que encontrarmos nos caminhos da vida, mesmo que seja estrangeiro ou inimigo (cf Lc 10,25-37). E a 1.ª Carta de São João explicita:
Se alguém possuir bens deste mundo e, vendo o seu irmão com necessidade, lhe fechar o seu coração, como é que o amor de Deus pode permanecer nele? Meus filhinhos, não amemos com palavras nem com a boca, mas com obras e com verdade.” (1Jo, 17-18).
No evangelho de Marcos, o escriba concorda com a resposta de Jesus, citando passos da Bíblia (cf Dt 4,35 e Is 45,21; Dt 6,5; Lv 19,18; Os 6,6), que dizem o mesmo que que Jesus, pelo que, face ao seu comentário inteligente, Jesus declara-lhe que não está “longe do Reino de Deus” (v 34), o que pode ser dito a todos os que agem em conformidade com os mandamentos. Este escriba é um homem justo, que observa a Lei, estuda a Escritura, que procura ler e pôr em prática, só lhe faltando, para integrar o Reino, acolher Jesus, o Messias libertador enviado por Deus, e decidir-se a tornar-se seu discípulo. Porém, não dá indicação de disponibilidade para O seguir.
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A 2.ª leitura (Heb 7,23-28) apresenta-nos Jesus Cristo como o sumo-sacerdote que veio cumprir o projeto salvador do Pai oferecendo a vida em doação de amor aos homens e convidando-os a integrar a comunidade do Povo sacerdotal. Com a obediência ao Pai e a entrega em favor dos homens, Cristo indica-nos a melhor forma de exprimirmos o amor a Deus e ao próximo. Em Heb 6,20, o autor declara Jesus Cristo sumo-sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedec. E, na sequência, dedica todo o cap. 7 (cf Heb 7,1-28) a explicitar a sua asserção.
Melquisedec é uma personagem misteriosa que surge em Gn 14,18-20 apresentada como rei e sacerdote de Salem (que o Sl 76,3 identifica com Jerusalém) e que adora o Deus altíssimo, abençoa Abraão (quando este regressa da guerra) e oferece a Deus pão e vinho. E Abraão, o antepassado dos sacerdotes levíticos, inclina-se diante dele e paga-lhe o dízimo. Por sua vez, o Salmo 110 fala dum rei da casa de David como o continuador de Melquisedec (“O Senhor jurou e não voltará atrás: tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedec” – Sl 110,4). Assim, a figura de Melquisedec adquire conotação messiânica. Por isso, depois do Exílio na Babilónia, os judeus esperam um salvador da descendência de David que reúna, como Melquisedec, o sacerdócio e a realeza; e os cristãos leem o mistério de Jesus a esta luz, em que se move o autor da Carta aos Hebreus.
Na visão do autor, Jesus exerce um sacerdócio perfeito e eterno, não vinculado ao sacerdócio de Levi (um sacerdócio exercido por homens pecadores, mortais e que se sucedem de geração em geração), mas que realiza o sacerdócio real do Messias davídico, sucessor de Melquisedec.
Na 1.ª parte do cap. 7, resume-se a história de Melquisedec e afirma-se a superioridade do seu sacerdócio sobre o sacerdócio levítico (cf Heb 7,11-10); na 2.ª, mostra-se que o sacerdócio novo de Cristo (na linha do sacerdócio de Melquisedec) é um sacerdócio perfeito e eterno, que suprime o sacerdócio levítico e abole a antiga Lei (cf Heb 7,11-28).
O sacerdócio de Cristo é superior ao sacerdócio levítico pela sua duração eterna, contrastante com a mudança contínua das gerações. Para o autor da Carta, a multiplicidade e a alternância são sinónimos de imperfeição. Por outro lado, porque o sacerdócio de Cristo é eterno e a sua intercessão junto de Deus é contínua, ele assegura, em definitivo, a salvação do crente (vv 23-25).
O autor termina a reflexão com um hino (vv 26-28), a sintetizar a exposição anterior e a exaltar as caraterísticas do sacerdócio de Cristo. Ele é o sumo-sacerdote “santo, inocente, imaculado, separado dos pecadores e elevado acima dos céus” (vv 26), porque pertence à esfera do Deus santo. Não necessita de oferecer todos os dias sacrifícios pelos pecados próprios e alheios, porque Se ofereceu a Si próprio, de uma vez por todas, em sacrifício perfeito (vv 27), gerador de dinamismos redentores e moções propulsoras de vida e salvação.
Em conclusão, enfatiza-se o contraste entre a ordem imperfeita (a da Lei e do sacerdócio levítico) e a ordem perfeita, prometida por Deus e realizada pelo sumo-sacerdote Jesus. Na primeira, havia homens frágeis e débeis; na definitiva, está o sumo-sacerdote eterno, o Filho de Deus.
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Na verdade, tendo cumprido integralmente a missão que o Pai lhe confiou desde o primeiro instante da sua incarnação até à morte de cruz, Jesus penetrou os céus e está junto do Pai a interceder permanentemente pelos homens (cf Heb, 7,24-25; Rm 8,34), sem descurar a sua presença junto dos discípulos a apoiá-los no desempenho da sua missão (cf Mt 28,19-20). E a consciência disto deve encher-nos o coração de paz, esperança e confiança: se Cristo intercede por nós, as nossas debilidades e fragilidades nunca nos afastarão, em definitivo, da comunhão com Deus.
2018.11.04 – Louro de Carvalho

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