A
questão da segurança ou da insegurança das estradas municipais é ou deveria ser
um tema recorrente no debate municipal, visto que “as autarquias locais são pessoas coletivas territoriais dotadas de
órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das
populações respetivas” (vd art.º 235.º/2 da CRP) e, necessariamente, os
interesses populacionais passam pela circulação em condições de segurança. Não
obstante, as grandes questões estão em estado “limbar” até que surjam catástrofes ou, como sói dizer-se, tragédias
de que, feitas as contas no quadro da discussão “tu sabias, eu não sabia de nada…”, ninguém é responsável.
A propósito
do caso da derrocada duma estrada estrangulada por pedreiras no concelho de
Borba, está a suceder exatamente o acima referido: dum lado, apresentam-se
estudos que, há 4 anos, assinalavam perigo iminente, sendo tal problema do
conhecimento dos empresários que protagonizavam a extração de mármores nas
pedreiras, da então Direção Regional da Economia do Alentejo, da Câmara Municipal
e, obviamente, da Administração Central; do outro, surgem técnicos a reafirmar
a iminência de perigo e a justificar de forma técnica os riscos e apontando o
dedo às entidades licenciadoras das pedreiras, à fiscalização e ao abuso dos
extratores; e, ainda, de outro, membros do Governo a negar conhecimento e
responsabilidade na matéria por se tratar duma estrada que hoje – aliás desde
2005 – é municipal. Perante isto, o autarca-mor do sítio, depois de dizer que
não tinha conhecimento do dito perigo iminente, veio referir que tinha, mas que
não o valorizou e, mais tarde ainda, veio declarar que não diz mais nada nem se
demite até os inquéritos em curso chegarem ao fim. Está de consciência tranquila
e os transportes escolares (da
responsabilidade direta da Câmara Municipal desde 1984), os autocarros das redes Expresso e tanta gente sem nome
conhecido na praça ou até o ora Presidente da República, quando era presidente
da Fundação da Casa de Bragança, ali passavam para esbater distâncias.
***
Merece
atenção o “duelo” entre José Ribau
Esteves, vice-presidente da ANMP, e Carlos Mineiro Alves, Bastonário da Ordem
dos Engenheiros (OE),
publicado a página dois do primeiro caderno do Expresso de 24 de novembro passado sob o problemático título “Podemos confiar na segurança das estradas
municipais?”.
Do que
escreve o Bastonário deduz-se que tal segurança é problemática e difícil de
conseguir. O líder da OE aduz vários fatores: a construção dum “inusitado
número de infraestruturas”, nos últimos decénios, “com o apoio dos fundos
comunitários”, visando, pela colmatação das “necessidades básicas” e pela
consecução dos “objetivos de coesão europeia”, a saída do país do “seu
histórico atraso estrutural”, sendo a rodovia, sem dúvida, o letreiro mais
evidente dessa gesta desenvolvimentista. E o dirigente quantifica de forma
clarividente o peso das estradas municipais originárias, as que as autarquias
construíram nos últimos tempos, as que se tornaram municipais por via da
desclassificação de nacionais em virtude do reordenamento da rede viária
nacional e os caminhos municipais. Isto no contexto duma rede de estradas, que
“no total tem cerca de 14.300 quilómetros”, sendo 2017 de autoestradas, o que
dá um “rácio de 0,16 quilómetros de estrada por quilómetro quadrado” – uma
notória “elevada densidade” em contraponto ao crasso “despovoamento do interior
e da zona a sul do Tejo”.
Assim,
era suposto processar-se a circulação rodoviária com “maior segurança, rapidez
e opções de trajetos”, melhorando “a mobilidade e a competitividade do país”.
Porém, nesta extensa malha viária, há muitos pontos negros e diversas
“singularidades, como pontes, viadutos, túneis ou taludes” que podem azar
acidentes e alguns bem graves, sobretudo se forem descuradas a monitorização e
a manutenção. Por outro lado, ao incremento da construção de vias rodoviárias (estradas,
caminhos municipais, caminhos rurais, caminhos agrícolas e acessos a
miradouros…) por
iniciativa das autarquias acresce a entrega de estradas nacionais às autarquias
por via da construção de autoestradas e vias rápidas e ainda pela simples via
da desclassificação (O Bastonário entende que o termo implica
que o tratamento deixou de se o mesmo).
Assim, conjugam-se “as parcas finanças autárquicas”, a não assumida, mas
natural “falta de vocação para estas acrescidas tarefas” e “a falta de meios
técnicos adequados na maioria das autarquias” – não têm escala – para a
“adequada conservação, manutenção e vigilância”. Ainda, segundo Carlos Mineiro,
que não duvida das “afirmações das instituições responsáveis”, não existe
informação pública e acessível “sobre ações inspetivas e rotineiras que estejam
a realizar-se”, as quais constituem “uma obrigação do Estado” (e
as autarquias também integram o Estado),
o que “permite desconfiar da sua existência e até da sua efetiva realização”.
E, na linha do que diz Mineiro Alves, a sucessão de acidentes e a reação aos
mesmos confirmam estas suposições.
Por sua
vez, para o susodito vice-presidente da ANMP, parece que podemos confiar na
segurança das estradas municipais. Mas ele refere-o de forma moderada. É o
politicamente correto. Aliás, como é que um autarca iria dizer que não ou como
o poderia garantir?! Mas frisa:
“As Câmaras Municipais cuidam e investem na rede viária municipal
(Correto seria, em bom português, dizer: “cuidam
da rede viária e investem nela”!), cumprindo as suas obrigações no quadro
dos investimentos de manutenção e qualificação de que são gestoras”.
Ora isto
nem é linguagem técnica nem política, quando muito, linguagem burocrática.
Depois,
refugia-se no estribilho de que obviamente, “a perfeição não existe e o patamar
de qualidade a 100% não está atingido”, assim parecido com aquele que diz
“tenho a consciência tranquila” ou que sabe que, em todas as atividades em que
haja homens e/ou mulheres, haverá sempre deficiências e pontos a melhorar. E o
dirigente de autarcas acha que a perfeição e o patamar de qualidade têm de ser
atingidos em cada uma das 308 câmaras. E as que não conseguirem? Onde está a
solidariedade autárquica e interautárquica em busca da coesão territorial e
social? Mas, pelo que escreve, também é legítimo concluir que as estradas
municipais não são um exemplo de segurança. E a culpa, pelos vistos, é do tempo
dos PEC do segundo Governo de Sócrates e da troika do tempo de Passos Coelho,
em nome da “redução da despesa pública e do equilíbrio das contas do Estado”,
mas – Costa deve ter gostado de ler isto
– a capacitação das câmaras municipais, que anteriormente fora delapidada –
começou a repor-se nos últimos 3 anos. Ora, é natural que em 7 anos, se nada ou
pouco se fez nesta área, a degradação se tenha agravado. E, dando voltas pelo
país, damos conta do estado de degradação das vias municipais, sobretudo ao
nível do piso, da queda de pedras, do derrube de árvores da degradação das
bermas, etc. E então das estradas nacionais desclassificadas nem é bom falar
sobretudo daquelas que são percorridas por camiões após a cessação do sistema
de SCUT!
Mas o
autarca foca-se em especial nas estradas nacionais desclassificadas que
passaram para a alçada das autarquias a par das estradas nacionais que
permanecem na alçada do Governo. Diz ele que “necessitam de investimentos de
qualificação”, um facto que tem de ser tratado com diligência, brevidade e
permanência”. Para tanto, alvitra que “é necessário afetar recursos muito mais
altos” que os despendidos no último decénio, quer ao nível dos orçamentos
municipais, quer ao do Orçamento do Estado, devendo recorrer-se a uma fatia da
receita do imposto sobre os produtos petrolíferos, produtos que se colocam nas
viaturas que circulam nas estradas e que as desgastam. Além disso, para
suplementar a capacitação financeira para o investimento de qualificação da
rede viária, devem ser utilizados, instrumentos extraordinários, como fundos
comunitários e uma linha de crédito bancário para o efeito.
Considerando
tudo isto, é-lhe difícil responder simplesmente sim ou não à pergunta
simples que epigrafava o “duelo”,
pelo que defende o estabelecimento de parcerias entre as Câmaras Municipais e o
Governo para a atualização de vistorias à rede viária e investimento em obras
de qualificação. E, vincando que “o investimento de manutenção regular dos
ativos do Estado é um velho problema”, propõe esta abordagem com uma nova
atitude, que assuma a sua “valorização política e socioeconómica, com
investimento regular e relevante”.
Alguns concelhos
têm uma rede viária mal desenhada e em estado lastimoso. Nem sabem cuidar das rotundas,
avenidas, ruas, praças e largos, travessas, vielas e becos. Só piso rebentado,
relevo, covas, buracos, falta de passeios, muros de vedação destruídos, muros
de suporte inexistentes ou deficientes…
Em suma,
a confiança na segurança das estradas só com fé!
***
Às
vezes, fala-se muito bem da engenharia portuguesa, que é extraordinária em
obras de vulto, mas não sei se nas obras de pequeno vulto e mesmo em obras à
escala nacional, em que está em causa a segurança de pessoas e bens, ela é
assim tão rigorosa. E, sobretudo, não sei se é capaz de travar, pelas vias do
acompanhamento e fiscalização de obra as apetências abusadoras de exploradores
de areias e pedreiras ou do facilitismo de empreiteiros.
Com o
caso de Borba e arredores, algumas questões se levantam, a saber:
Como é
que foi possível deixar que as pedreiras, de forma caprichosa, se aproximassem
tanto da estrada a ponto de a minarem (não foi a estrada que
se aproximou delas)?
Como foi possível o desenrocamento do pilar que cedeu na ponte de Entre-os-Rios
em 2001? Porque é que muitas obras de escavação e terraplanagem para grandes
edifícios, estradas, pontes, viadutos e túneis se desenvolvem depois das 17
horas prolongando-se durante a noite? Como se garante a eficiência e eficácia
na compactação dos terrenos aquando do enchimento, como antigamente se
recomendava (delgadas camadas de saibro bem calcadas e aspergidas
com água e sucessivamente aplicadas),
e que terrenos esponjosos tenham sido bem drenados?
Em
estradas, porque se abandonou a técnica do “relevé” na parte externa das curvas
ou o adequado “baletamento”? Tem-se procedido a todas as técnicas de escoamento
de águas do leito das estradas? É cuidado corretamente o sistema de
“trainelamento”? São edificados, e de forma adequada, todos os muros de suporte
aos taludes sobranceiros à estrada e os muros de suporte o talude da própria
estrada? Todas as estradas e autoestradas estão dotadas de margens laterais de
segurança? Porque há tantas estradas em varandas paisagísticas sem qualquer
resguardo lateral que proteja o condutor dum eventual despenhamento ravina
abaixo? Em muitos lugares já nem subsistem as sebes ou as árvores que
psicologicamente protegiam os condutores!…
***
Talvez
seja oportuno reler o texto do geógrafo e Professor Doutor Álvaro Domingues
dado à estampa do P2 do Público, do passado dia 25 sob o título “Desamparados – para uma geografia emocional do interior”, que retrata em detalhe
as diversas partes do país que fazem o conjunto dos ironicamente designados por
“territórios de baixa densidade” e que o ensaísta denomina de “um ‘espaço de
geografia incerta’, administrado por governos com as finanças apertadas,
ultracentralizados burocráticos e distantes”, propondo “uma reflexão sobre uma
parte do país que parece ter calhado do lado errado do mapa”. Trata-se de um
ensaio ilustrado com fotografias do autor que testemunham o tímido esforço de
modernização emoldurado por antigas unidades patrimoniais em estado de franca
degradação resultante do abandono a que o êxodo rural e a emigração as votaram
inexoravelmente talvez para sempre.
Com efeito,
a década de 60 ofereceu, através do poder ditatorial, arcaico e conservador,
apoiado pela elite concentrada em Lisboa, a modernização aos solavancos, que
gerou o êxodo rural para os grandes centros do litoral, que saturados segundo
as condições epocais, permitiram a alternativa emigratória, que agudizou o
abandono do campo, a que ajudou a guerra colonial.
Os emigrantes,
com a esperança de voltarem a viver nas suas terras, promoveram, pela via
construtiva, alteração significativa e impressionante da paisagem urbana e a acumulação
de receitas em prol da economia nacional, vindo a merecer, no período pós-revolucionário,
a instituição do Dia de Portugal e das Comunidades Portuguesas, que sucedeu ao Dia da Raça.
A adesão
à CEE, os fundos comunitários os investimentos da Administração Central e Local
polvilharam o país de infraestruturas atinentes à rodovia, à água ao domicílio,
ao saneamento básico, à recolha e tratamento de resíduos urbanos sólidos e às telecomunicações;
democratizaram a educação, a cultura, a saúde e a segurança social, hoje peregrinantes
nas ruas da amargura, dada a inépcia do Estado soberano; e criaram muitos
espaços de utilização coletiva: piscinas, ginásios, pavilhões desportivos e polidesportivos,
polivalentes, multiusos, auditórios, sedes de associações e de juntas de freguesia…
– de cuja conservação e manutenção tem de se cuidar.
A onda
neoliberal, aproveitando a globalização e a incapacidade reguladora do poder político,
impôs as deslocalizações de empresas, o capitalismo sem rosto, a especulação
financeira, a precariedade do emprego, a baixa brutal dos salários e a quase anulação
dos direitos dos trabalhadores. Por seu turno, o Estado centralizador, tomado
de assalto disfarçado por inconfessados interesses económicos, quer hipocritamente
a descentralização das competências para autarquias sem escala, depois de ter
retirado dos meios rurais equipamentos e serviços e ter privatizado quase tudo,
incluindo os setores estratégicos.
O interior
está desertificado e assim continuará mercê da rarefação dos serviços; da baixa
de natalidade (foi-se o tempo das famílias numerosas e, consequentemente,
dos muitos braços para o trabalho);
da falta de investimento (até aconselhada por alguns consultores
de empresas); do não
regresso de filhos e netos de emigrantes; da falta de apetência de técnicos (para
trabalharem neste espaço);
da praga incendiária (resultante, na sua grande parte, da
floresta desordenada);
e, sobretudo, da falta de capacidade de planeamento e de vontade política dos
decisores, em que se inclui o poder autárquico (tantas vezes
dependente do voto do eleitorado e enredado na malha de descabelados interesses
de capelinha).
Resta-nos
o futebol para nos distrair do debate estratégico, mas também a corrupção o
invadiu.
Enfim,
zelar pelo interior é preciso, até para que o poder seja capaz de saber pisar o
palco como os grandes artistas. Como o artista, se o palco for pequeno, fica
enfezado, também os poderes, se encurtarem o palco ficam atrofiados. Por isso,
usem o país todo como palco e por igual. Caso contrário, a soberania é exígua e
virá a UE, os chineses, os africanos dominar este nosso espaço!
2018.11.28 – Louro
de Carvalho
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