quinta-feira, 29 de novembro de 2018

(In)segurança nas estradas municipais


A questão da segurança ou da insegurança das estradas municipais é ou deveria ser um tema recorrente no debate municipal, visto que “as autarquias locais são pessoas coletivas territoriais dotadas de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respetivas” (vd art.º 235.º/2 da CRP) e, necessariamente, os interesses populacionais passam pela circulação em condições de segurança. Não obstante, as grandes questões estão em estado “limbar” até que surjam catástrofes ou, como sói dizer-se, tragédias de que, feitas as contas no quadro da discussão “tu sabias, eu não sabia de nada…”, ninguém é responsável.
A propósito do caso da derrocada duma estrada estrangulada por pedreiras no concelho de Borba, está a suceder exatamente o acima referido: dum lado, apresentam-se estudos que, há 4 anos, assinalavam perigo iminente, sendo tal problema do conhecimento dos empresários que protagonizavam a extração de mármores nas pedreiras, da então Direção Regional da Economia do Alentejo, da Câmara Municipal e, obviamente, da Administração Central; do outro, surgem técnicos a reafirmar a iminência de perigo e a justificar de forma técnica os riscos e apontando o dedo às entidades licenciadoras das pedreiras, à fiscalização e ao abuso dos extratores; e, ainda, de outro, membros do Governo a negar conhecimento e responsabilidade na matéria por se tratar duma estrada que hoje – aliás desde 2005 – é municipal. Perante isto, o autarca-mor do sítio, depois de dizer que não tinha conhecimento do dito perigo iminente, veio referir que tinha, mas que não o valorizou e, mais tarde ainda, veio declarar que não diz mais nada nem se demite até os inquéritos em curso chegarem ao fim. Está de consciência tranquila e os transportes escolares (da responsabilidade direta da Câmara Municipal desde 1984), os autocarros das redes Expresso e tanta gente sem nome conhecido na praça ou até o ora Presidente da República, quando era presidente da Fundação da Casa de Bragança, ali passavam para esbater distâncias.
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Merece atenção o “duelo” entre José Ribau Esteves, vice-presidente da ANMP, e Carlos Mineiro Alves, Bastonário da Ordem dos Engenheiros (OE), publicado a página dois do primeiro caderno do Expresso de 24 de novembro passado sob o problemático título “Podemos confiar na segurança das estradas municipais?”.
Do que escreve o Bastonário deduz-se que tal segurança é problemática e difícil de conseguir. O líder da OE aduz vários fatores: a construção dum “inusitado número de infraestruturas”, nos últimos decénios, “com o apoio dos fundos comunitários”, visando, pela colmatação das “necessidades básicas” e pela consecução dos “objetivos de coesão europeia”, a saída do país do “seu histórico atraso estrutural”, sendo a rodovia, sem dúvida, o letreiro mais evidente dessa gesta desenvolvimentista. E o dirigente quantifica de forma clarividente o peso das estradas municipais originárias, as que as autarquias construíram nos últimos tempos, as que se tornaram municipais por via da desclassificação de nacionais em virtude do reordenamento da rede viária nacional e os caminhos municipais. Isto no contexto duma rede de estradas, que “no total tem cerca de 14.300 quilómetros”, sendo 2017 de autoestradas, o que dá um “rácio de 0,16 quilómetros de estrada por quilómetro quadrado” – uma notória “elevada densidade” em contraponto ao crasso “despovoamento do interior e da zona a sul do Tejo”.   
Assim, era suposto processar-se a circulação rodoviária com “maior segurança, rapidez e opções de trajetos”, melhorando “a mobilidade e a competitividade do país”. Porém, nesta extensa malha viária, há muitos pontos negros e diversas “singularidades, como pontes, viadutos, túneis ou taludes” que podem azar acidentes e alguns bem graves, sobretudo se forem descuradas a monitorização e a manutenção. Por outro lado, ao incremento da construção de vias rodoviárias (estradas, caminhos municipais, caminhos rurais, caminhos agrícolas e acessos a miradouros…) por iniciativa das autarquias acresce a entrega de estradas nacionais às autarquias por via da construção de autoestradas e vias rápidas e ainda pela simples via da desclassificação (O Bastonário entende que o termo implica que o tratamento deixou de se o mesmo). Assim, conjugam-se “as parcas finanças autárquicas”, a não assumida, mas natural “falta de vocação para estas acrescidas tarefas” e “a falta de meios técnicos adequados na maioria das autarquias” – não têm escala – para a “adequada conservação, manutenção e vigilância”. Ainda, segundo Carlos Mineiro, que não duvida das “afirmações das instituições responsáveis”, não existe informação pública e acessível “sobre ações inspetivas e rotineiras que estejam a realizar-se”, as quais constituem “uma obrigação do Estado” (e as autarquias também integram o Estado), o que “permite desconfiar da sua existência e até da sua efetiva realização”. E, na linha do que diz Mineiro Alves, a sucessão de acidentes e a reação aos mesmos confirmam estas suposições.
Por sua vez, para o susodito vice-presidente da ANMP, parece que podemos confiar na segurança das estradas municipais. Mas ele refere-o de forma moderada. É o politicamente correto. Aliás, como é que um autarca iria dizer que não ou como o poderia garantir?! Mas frisa:
As Câmaras Municipais cuidam e investem na rede viária municipal (Correto seria, em bom português, dizer: “cuidam da rede viária e investem nela”!), cumprindo as suas obrigações no quadro dos investimentos de manutenção e qualificação de que são gestoras”.
Ora isto nem é linguagem técnica nem política, quando muito, linguagem burocrática.
Depois, refugia-se no estribilho de que obviamente, “a perfeição não existe e o patamar de qualidade a 100% não está atingido”, assim parecido com aquele que diz “tenho a consciência tranquila” ou que sabe que, em todas as atividades em que haja homens e/ou mulheres, haverá sempre deficiências e pontos a melhorar. E o dirigente de autarcas acha que a perfeição e o patamar de qualidade têm de ser atingidos em cada uma das 308 câmaras. E as que não conseguirem? Onde está a solidariedade autárquica e interautárquica em busca da coesão territorial e social? Mas, pelo que escreve, também é legítimo concluir que as estradas municipais não são um exemplo de segurança. E a culpa, pelos vistos, é do tempo dos PEC do segundo Governo de Sócrates e da troika do tempo de Passos Coelho, em nome da “redução da despesa pública e do equilíbrio das contas do Estado”, mas – Costa deve ter gostado de ler isto – a capacitação das câmaras municipais, que anteriormente fora delapidada – começou a repor-se nos últimos 3 anos. Ora, é natural que em 7 anos, se nada ou pouco se fez nesta área, a degradação se tenha agravado. E, dando voltas pelo país, damos conta do estado de degradação das vias municipais, sobretudo ao nível do piso, da queda de pedras, do derrube de árvores da degradação das bermas, etc. E então das estradas nacionais desclassificadas nem é bom falar sobretudo daquelas que são percorridas por camiões após a cessação do sistema de SCUT!
Mas o autarca foca-se em especial nas estradas nacionais desclassificadas que passaram para a alçada das autarquias a par das estradas nacionais que permanecem na alçada do Governo. Diz ele que “necessitam de investimentos de qualificação”, um facto que tem de ser tratado com diligência, brevidade e permanência”. Para tanto, alvitra que “é necessário afetar recursos muito mais altos” que os despendidos no último decénio, quer ao nível dos orçamentos municipais, quer ao do Orçamento do Estado, devendo recorrer-se a uma fatia da receita do imposto sobre os produtos petrolíferos, produtos que se colocam nas viaturas que circulam nas estradas e que as desgastam. Além disso, para suplementar a capacitação financeira para o investimento de qualificação da rede viária, devem ser utilizados, instrumentos extraordinários, como fundos comunitários e uma linha de crédito bancário para o efeito.
Considerando tudo isto, é-lhe difícil responder simplesmente sim ou não à pergunta simples que epigrafava o “duelo”, pelo que defende o estabelecimento de parcerias entre as Câmaras Municipais e o Governo para a atualização de vistorias à rede viária e investimento em obras de qualificação. E, vincando que “o investimento de manutenção regular dos ativos do Estado é um velho problema”, propõe esta abordagem com uma nova atitude, que assuma a sua “valorização política e socioeconómica, com investimento regular e relevante”.
Alguns concelhos têm uma rede viária mal desenhada e em estado lastimoso. Nem sabem cuidar das rotundas, avenidas, ruas, praças e largos, travessas, vielas e becos. Só piso rebentado, relevo, covas, buracos, falta de passeios, muros de vedação destruídos, muros de suporte inexistentes ou deficientes…     
Em suma, a confiança na segurança das estradas só com fé! 
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Às vezes, fala-se muito bem da engenharia portuguesa, que é extraordinária em obras de vulto, mas não sei se nas obras de pequeno vulto e mesmo em obras à escala nacional, em que está em causa a segurança de pessoas e bens, ela é assim tão rigorosa. E, sobretudo, não sei se é capaz de travar, pelas vias do acompanhamento e fiscalização de obra as apetências abusadoras de exploradores de areias e pedreiras ou do facilitismo de empreiteiros.
Com o caso de Borba e arredores, algumas questões se levantam, a saber:
Como é que foi possível deixar que as pedreiras, de forma caprichosa, se aproximassem tanto da estrada a ponto de a minarem (não foi a estrada que se aproximou delas)? Como foi possível o desenrocamento do pilar que cedeu na ponte de Entre-os-Rios em 2001? Porque é que muitas obras de escavação e terraplanagem para grandes edifícios, estradas, pontes, viadutos e túneis se desenvolvem depois das 17 horas prolongando-se durante a noite? Como se garante a eficiência e eficácia na compactação dos terrenos aquando do enchimento, como antigamente se recomendava (delgadas camadas de saibro bem calcadas e aspergidas com água e sucessivamente aplicadas), e que terrenos esponjosos tenham sido bem drenados?
Em estradas, porque se abandonou a técnica do “relevé” na parte externa das curvas ou o adequado “baletamento”? Tem-se procedido a todas as técnicas de escoamento de águas do leito das estradas? É cuidado corretamente o sistema de “trainelamento”? São edificados, e de forma adequada, todos os muros de suporte aos taludes sobranceiros à estrada e os muros de suporte o talude da própria estrada? Todas as estradas e autoestradas estão dotadas de margens laterais de segurança? Porque há tantas estradas em varandas paisagísticas sem qualquer resguardo lateral que proteja o condutor dum eventual despenhamento ravina abaixo? Em muitos lugares já nem subsistem as sebes ou as árvores que psicologicamente protegiam os condutores!…
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Talvez seja oportuno reler o texto do geógrafo e Professor Doutor Álvaro Domingues dado à estampa do P2 do Público, do passado dia 25 sob o título “Desamparados – para uma geografia emocional do interior”, que retrata em detalhe as diversas partes do país que fazem o conjunto dos ironicamente designados por “territórios de baixa densidade” e que o ensaísta denomina de “um ‘espaço de geografia incerta’, administrado por governos com as finanças apertadas, ultracentralizados burocráticos e distantes”, propondo “uma reflexão sobre uma parte do país que parece ter calhado do lado errado do mapa”. Trata-se de um ensaio ilustrado com fotografias do autor que testemunham o tímido esforço de modernização emoldurado por antigas unidades patrimoniais em estado de franca degradação resultante do abandono a que o êxodo rural e a emigração as votaram inexoravelmente talvez para sempre.   
Com efeito, a década de 60 ofereceu, através do poder ditatorial, arcaico e conservador, apoiado pela elite concentrada em Lisboa, a modernização aos solavancos, que gerou o êxodo rural para os grandes centros do litoral, que saturados segundo as condições epocais, permitiram a alternativa emigratória, que agudizou o abandono do campo, a que ajudou a guerra colonial.
Os emigrantes, com a esperança de voltarem a viver nas suas terras, promoveram, pela via construtiva, alteração significativa e impressionante da paisagem urbana e a acumulação de receitas em prol da economia nacional, vindo a merecer, no período pós-revolucionário, a instituição do Dia de Portugal e das Comunidades Portuguesas, que sucedeu ao Dia da Raça.
A adesão à CEE, os fundos comunitários os investimentos da Administração Central e Local polvilharam o país de infraestruturas atinentes à rodovia, à água ao domicílio, ao saneamento básico, à recolha e tratamento de resíduos urbanos sólidos e às telecomunicações; democratizaram a educação, a cultura, a saúde e a segurança social, hoje peregrinantes nas ruas da amargura, dada a inépcia do Estado soberano; e criaram muitos espaços de utilização coletiva: piscinas, ginásios, pavilhões desportivos e polidesportivos, polivalentes, multiusos, auditórios, sedes de associações e de juntas de freguesia… – de cuja conservação e manutenção tem de se cuidar.
A onda neoliberal, aproveitando a globalização e a incapacidade reguladora do poder político, impôs as deslocalizações de empresas, o capitalismo sem rosto, a especulação financeira, a precariedade do emprego, a baixa brutal dos salários e a quase anulação dos direitos dos trabalhadores. Por seu turno, o Estado centralizador, tomado de assalto disfarçado por inconfessados interesses económicos, quer hipocritamente a descentralização das competências para autarquias sem escala, depois de ter retirado dos meios rurais equipamentos e serviços e ter privatizado quase tudo, incluindo os setores estratégicos.
O interior está desertificado e assim continuará mercê da rarefação dos serviços; da baixa de natalidade (foi-se o tempo das famílias numerosas e, consequentemente, dos muitos braços para o trabalho); da falta de investimento (até aconselhada por alguns consultores de empresas); do não regresso de filhos e netos de emigrantes; da falta de apetência de técnicos (para trabalharem neste espaço); da praga incendiária (resultante, na sua grande parte, da floresta desordenada); e, sobretudo, da falta de capacidade de planeamento e de vontade política dos decisores, em que se inclui o poder autárquico (tantas vezes dependente do voto do eleitorado e enredado na malha de descabelados interesses de capelinha).
Resta-nos o futebol para nos distrair do debate estratégico, mas também a corrupção o invadiu.
Enfim, zelar pelo interior é preciso, até para que o poder seja capaz de saber pisar o palco como os grandes artistas. Como o artista, se o palco for pequeno, fica enfezado, também os poderes, se encurtarem o palco ficam atrofiados. Por isso, usem o país todo como palco e por igual. Caso contrário, a soberania é exígua e virá a UE, os chineses, os africanos dominar este nosso espaço!
2018.11.28 – Louro de Carvalho

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