segunda-feira, 19 de novembro de 2018

II Dia Mundial dos Pobres: “a injustiça é a raiz perversa da pobreza”


O Papa Francisco presidiu, no domingo, dia 18 de novembro, na Basílica de São Pedro, à celebração eucarística da Solenidade da Dedicação das Basílicas de São Pedro e São Paulo fora dos Muros, em que participaram seis mil pobres, acompanhados por representantes de associações e grupos paroquiais, no âmbito do II Dia Mundial dos Pobres.
Recorde-se que o Dia Mundial dos Pobres foi instituído por Francisco com a Carta Apostólica “Misericordia et misera”, publicada a 21 de novembro de 2016, na conclusão do Jubileu Extraordinário da Misericórdia.
Comentando a passagem do Evangelho de Mateus tomado para a Liturgia da Palavra da Solenidade (Mt 14,22-33), o Pontífice sublinhou, na homilia, que “Jesus ouviu o grito de Pedro” (“Salva-me, Senhor”) e apelou a que peçamos “a graça de ouvir o grito de quem vive em águas agitadas”. Depois, focou-se em três ações de Jesus destacadas nesta passagem evangélica: deixar o que passa; ensinar como navegar na vida; e estender a mão.
Deixar. Francisco vincou a atitude de Jesus em contraposição com a dos discípulos:
Em pleno dia, Jesus deixa a multidão na hora do sucesso, quando era aclamado por ter multiplicado os pães. Os discípulos queriam gozar do triunfo, mas Jesus obrigou-os imediatamente a partir, enquanto Ele despede a multidão.”.
Na verdade, “procurado pelo povo, retira-se sozinho”; “quando tudo estava em descida, Ele sobe ao monte para rezar”; e, “no coração da noite, desce do monte” e, caminhando sobre as águas agitadas pelo vento, encontra os Seus. Jesus vai a contracorrente: deixa o sucesso e a tranquilidade. Ensina a coragem de deixar: deixar o sucesso, que torna soberbo o coração, e a tranquilidade, que nos adormece. Por outro lado, o Papa recorda que “o cristão sabe que a sua pátria não é aqui”, mas que é um ágil viandante da existência, e que já é ‘concidadão dos santos e membro da casa de Deus’. Por isso, “não vivemos para acumular”, pois “a nossa glória está em deixar o que passa, para guardarmos aquilo que permanece”, como se deduz da 2.ª leitura da Solenidade (Ef 2,19-22). E assim surge a exortação a que peçamos “a Deus a graça de nos assemelharmos à Igreja descrita na 1.ª leitura (At 28,11-16.30-31): sempre em movimento, especialista no deixar e fiel no servir”.
Como navegar na vida. Jesus vai ao encontro dos discípulos, submersos na escuridão, caminhando sobre o mar. “Encoraja”, em plena noite, contra o que era tido então como as forças do mal. Disse o Papa:
Na realidade, tratava-se de um lago; mas, naquele tempo o mar, com a profundidade dos seus abismos tenebrosos, evocava as forças do mal. Por outras palavras, Jesus vai ao encontro dos discípulos, calcando os inimigos malignos do homem. Grande é o significado deste sinal: não uma manifestação celebrativa de força, mas a revelação, que nos é feita, da certeza tranquilizadora de que Jesus, só Jesus, vence os nossos grandes inimigos: o diabo, o pecado, a morte, o medo. Hoje, Ele diz também a nós: ‘Tranquilizai-vos! Sou Eu! Não temais!’.”.
E, aplicando à vida atual, explicitou:
“A barca da nossa vida vê-se, frequentemente, balanceada pelas ondas e sacudida pelos ventos; e, se as águas por vezes estão calmas, não tardam a agitar-se. Então irritamo-nos com as tempestades do momento, como se fossem os nossos únicos problemas. Mas o problema não é a tempestade presente, mas o modo como navegar na vida. O segredo de navegar bem é convidar Jesus a subir a bordo. O leme da vida deve ser dado a Ele, para que seja Jesus a traçar a rota.”.
Estender a mão. Na tempestade, Jesus estende a mão. Agarra Pedro que, assustado, duvidou e, afundando, gritou: “Salva-me, Senhor!”. E o Santo Padre aplica-nos o caso frisando:
“Podemos colocar-nos no lugar de Pedro: somos pessoas de pouca fé e estamos aqui a mendigar a salvação. Somos pobres de vida verdadeira, e serve-nos a mão estendida do Senhor que nos tire fora do mal. Isto é o início da fé: esvaziar-se da orgulhosa convicção de nos julgarmos em ordem, capazes, autónomos, para nos reconhecermos necessitados de salvação. A fé cresce neste clima, um clima ao qual nos adaptamos convivendo com quantos não se colocam no pedestal, mas precisam e pedem ajuda. Por isso é importante, para todos nós, viver a fé em contacto com os necessitados.
E, colocando a exigência do contacto com os necessitados na linha do Evangelho, declarou:
Não é uma opção sociológica, mas exigência teológica. É reconhecer-se mendigos de salvação, irmãos e irmãs de todos, mas especialmente dos pobres, prediletos do Senhor. Assim bebemos do espírito do Evangelho: ‘o espírito de pobreza e de caridade – diz o Concílio – são a glória e o testemunho da Igreja de Cristo’.”.
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Tendo em conta que o grito de Pedro que Jesus ouviu se espelha hoje no grito dos pobres, o Pontífice teceu sobre o grito dos pobres e a responsabilidade dos cristãos e apelou à nossa prece pela graça de ouvirmos “o grito de quem vive em águas agitadas”.
Quanto ao grito dos pobres, especificou anaforicamente de forma lancinante:
É o grito estrangulado de bebés que não podem vir à luz, de crianças que passam fome, de adolescentes acostumados ao estrondo das bombas ao invés da algazarra alegre das brincadeiras. É o grito de idosos descartados e deixados sozinhos. É o grito de quem se encontra a enfrentar as tempestades da vida sem uma presença amiga. É o grito daqueles que têm de fugir, deixando a casa e a terra sem a certeza dum refúgio. É o grito de populações inteiras, privadas inclusive dos enormes recursos naturais de que dispõem. É o grito dos inúmeros Lázaros que choram, enquanto poucos epulões se banqueteiam com aquilo que, por justiça, é para todos.”.
E, sentindo que o “grito” dos pobres é abafado, na sociedade, pelos “cada vez mais ricos” e defendeu que a atenção da Igreja aos mais necessitados “não é moda de um pontificado”, sentencia sabiamente:
A injustiça é a raiz perversa da pobreza. O grito dos pobres torna-se mais forte a cada dia, e a cada dia é menos ouvido, porque abafado pelo barulho de poucos ricos, que são sempre menos e sempre mais ricos.”.
No atinente à responsabilidade dos cristãos perante os pobres e a pobreza, o Papa sublinhou que o cristão não pode ficar de braços cruzados, mas deve fazer como Jesus: ouvir e estender a mão. A este respeito, Francisco observou:
Diante da dignidade humana espezinhada, muitas vezes fica-se de braços cruzados ou então de braços abertos, impotentes diante da força obscura do mal. Mas o cristão não pode ficar de braços cruzados, indiferente, nem de braços abertos, fatalista! Não... O fiel estende a mão, como Jesus faz com ele. Junto de Deus, o grito dos pobres encontra refúgio. E em nós? Temos olhos para ver, ouvidos para escutar, mãos estendidas para ajudar? Nos pobres, o próprio Cristo como que apela em alta voz para a caridade dos seus discípulos. Pede-nos que O reconheçamos em quem tem fome e sede, é forasteiro e está privado de dignidade, doente e encarcerado.”.
E considerando que “o Senhor estende a mão num gesto gratuito, não devido”, concluiu que não somos chamados a fazer o bem só a quem nos ama, pois “retribuir é normal”, mas Jesus pede que vamos mais longe: dar a quem não tem para restituir, o que significa “amar gratuitamente”.
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Na alocução que precedeu a oração do Angelus na Praça de São Pedro, com os fiéis e peregrinos ali concentrados, o Papa frisou que, no Evangelho deste domingo do XXXIII do Tempo Comum no Ano B (Mc 13,24-32), Jesus “quer instruir os seus discípulos sobre os eventos futuros” e sublinhou que ao encontro definitivo com o Senhor levaremos o que doamos.
Não estando em primeiro plano um discurso sobre o fim do mundo, sobressai o convite a viver bem o presente, a vigiar e estar sempre prontos para quando formos chamados a prestar contas da nossa vida. Jesus diz que “nesses dias, depois da tribulação, o sol escurecerá, a lua não brilhará mais, as estrelas começarão a cair do céu” para assegurar, a seguir, que a história dos povos e a de cada um têm um fim e uma meta a alcançar: o encontro definitivo com o Senhor.
Aquelas palavras fazem-nos pensar no relato da criação no início do Livro do Génesis. Ali o sol, a lua e as estrelas que desde o início dos tempos brilham em sua ordem e iluminam, surgem como sinal de vida, ao passo que no Evangelho de Marcos são apresentados em sua decadência, enquanto mergulham na escuridão e no caos, sinal do fim. Porém, o Pontífice contrapôs uma outra LUZ que nos catapultará para a verdade sem sombras, para a justiça sem peias:
 Ao invés, a luz que naquele último dia resplandecerá será única e nova: será a luz do Senhor Jesus que virá na glória com todos os santos. Naquele encontro veremos, finalmente, o seu Rosto na luz plena da Trindade; um rosto radiante de amor, diante do qual todo ser humano aparecerá em total verdade.”.
E sublinhou que “a história da humanidade, bem como a história pessoal de cada um de nós, não pode ser entendida como uma simples sucessão de palavras e factos que não fazem sentido”. Não se pode interpretar a história pessoal e do mundo à luz de uma visão fatalista, como se tudo estivesse pré-estabelecido segundo um destino que subtrai todo o espaço de liberdade, impedindo fazer escolhas que sejam o fruto de uma decisão verdadeira. Ao invés, o Evangelho diz que a história dos povos e a de cada um têm um fim e uma meta: o encontro definitivo com o Senhor. Se não sabemos a hora nem como sucederá esse momento, de que ninguém escapará, pois o Senhor reiterou que ninguém o sabe (nem os anjos no céu, nem o Filho), sendo tudo mantido no segredo do mistério do Pai, conhecemos, não obstante, o princípio fundamental com que devemos nos confrontar: “Passarão o céu e a terra, mas as minhas palavras não passarão”. Segundo o Pontífice, o verdadeiro ponto crucial é este:
Naquele dia, cada um de nós entenderá se a Palavra do Filho de Deus iluminou a própria existência pessoal, ou se virou as costas para ela, preferindo confiar nas próprias palavras. Será mais do que nunca o momento de nos abandonarmos definitivamente ao amor do Pai e confiar-nos à sua misericórdia.”.
E, vincando que a esperteza, que muitas vezes colocamos nos nossos comportamentos para dar crédito à imagem que pretendemos oferecer, já não será necessária, explicitou:
O poder do dinheiro e dos meios económicos com que pretendemos com presunção comprar tudo e todos, não poderá ser mais ser usado. Não teremos connosco nada além do que realizamos nessa vida, acreditando na sua Palavra [de Deus]: tudo e nada do que vivemos ou deixamos de realizar. Levaremos connosco somente o que doamos, o que oferecemos.”.
Por fim, o Santo Padre exortou a invocar a intercessão da Virgem Maria para que a verificação do nosso tempo provisório na terra e da nossa limitação não nos afunde na angústia, mas nos chame à responsabilidade para connosco próprios, com o próximo e com o mundo inteiro.
Após a oração do Angelus Francisco afirmou:
Este dia, que envolve cada vez mais paróquias, associações e movimentos eclesiais, quer ser um sinal de esperança e um estímulo para que nos tornemos instrumentos de misericórdia no tecido social”.
E realçou que, à imagem do almoço com “muitas pessoas indigentes”, que ia decorrer na Sala Paulo VI, estavam a desenvolver-se em dioceses de todo o mundo iniciativas de oração e partilha, com o objetivo de “manifestar a proximidade da comunidade cristã aos que vivem em condições de pobreza”.
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A seguir à Liturgia da Solenidade da Dedicação das Basílicas de São Pedro e São Paulo fora dos Muros e à recitação do Angelus com os fiéis e peregrinos, o Papa Francisco almoçou com os pobres na Sala Paulo VI, no Vaticano. Na refeição, oferecida pela Rome Cavalieri-Hilton Itália junto com a Ente Morale Tabor, organização sem fins lucrativos, participaram cerca de mil e quinhentos pobres, que responderam ao convite adrede formulado para 3000 pobres.
Setenta voluntários das paróquias de Roma serviram cerca de 1.500 pessoas carentes, acompanhadas por associações de voluntariado e representantes de instituições de caridade.
O cardápio foi composto de lasanha, nuggets de frango com puré de batatas e pavé.
Os jovens da Banda do Santuário de Pompeia animaram o almoço festivo com o Papa. A histórica empresa de alimentos “Rummo” deu de presente aos participantes e associações mais de 1.500 sacolas com um quilo de macarrão. Várias paróquias aderiram à iniciativa e, ao mesmo tempo, nos centros de voluntariado, colégios e escolas, cada um segundo a suas possibilidades, foram oferecidas refeições aos pobres, um momento de alegria e partilha. E Francisco, que tinha pedido que o Dia Mundial dos Pobres fosse assinalado por um gesto em todas as comunidades, dirigiu aos presentes umas palavras:
Agora, todos vamos almoçar juntos. Agradecemos às pessoas que trouxeram o almoço e àquelas que o vão servir. Agradecemos a todos e pedimos a Deus que nos abençoe todos. Uma bênção de Deus para todos, todos nós que estamos aqui. Que Deus abençoe cada um de nós, abençoe os nossos corações, abençoe as nossas intenções e nos ajude a seguir em frente. Ámen e bom almoço!”.
Após a refeição, o Pontífice agradeceu a todos pela companhia. E gracejou:
Disseram-me que agora começa a verdadeira festa e que o Papa tem de ir embora, para que a festa seja boa”.
E mais a sério:
Muito obrigado! Obrigado pela companhia. Obrigado aos músicos. Obrigado a todos aqueles que prepararam o almoço, aos que o serviram e aos jovens que ajudam aqui. Obrigado a todos. Rezem por mim. Que o Senhor os abençoe. Obrigado!”.
Antes de deixar a Sala Paulo VI, o Papa Francisco saudou as crianças, os pobres e as pessoas presentes e tirou uma foto com os cozinheiros.
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Não esqueceremos que “subir até Deus e descer até aos irmãos: eis a rota traçada por Jesus”.
Em Portugal, neste dia, o Bispo de Coimbra desafiou as comunidades católicas e a sociedade, no seu todo, a cuidar “dos seus pobres”, promovendo “a paz e a justiça para todos”, dizendo:
Deixo às paróquias e unidades pastorais o desafio de melhorarem o serviço de acolhimento aos pobres já existente. Se porventura ainda não existe de forma organizada, é chegado o momento de reunir pessoas de coração grande para começar, pois uma paróquia que não cuida dos seus pobres e não os acolhe com amor não dá sinais de uma fé viva e caminha a passos largos para a morte espiritual.
A iniciativa de Francisco é vista por Dom Virgílio Antunes como “uma novidade na vida da Igreja e das suas comunidades”, colocando no centro “a pessoa, a pessoa do pobre”. Frisa ele:
A atitude de vigilância chama-nos a ver o que os outros sofrem e a escutar o grito dos pobres e aflitos, com um coração de carne, que tenha a força de amor necessário para ultrapassar as burocracias institucionais necessárias, mas frequentemente descentradas da pessoa do pobre”.
O prelado considerou que o II Dia Mundial dos Pobres constituiu uma oportunidade para reunir pessoas e instituições que têm como vocação “preservar o cuidado pelos pobres como opção central do Evangelho”. E, aproveitando o ensejo para agradecer em nome da Igreja Diocesana a todas as pessoas que nestas instituições oferecem a vida, o tempo e os seus bens no serviço aos mais pobres, declarou na celebração realizada no Convento de Santa Clara-a-Nova local escolhido para trazer para a atualidade o testemunho da Rainha Santa, ícone do amor aos pobres na cidade de Coimbra e em Portugal), antecedida pela conferência ‘Este pobre clama e o Senhor o escuta’, do presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz, Pedro Vaz Patto:
É errado esquecer a importância de combater as causas estruturais da pobreza. Mas também é errada e contra o Evangelho uma outra atitude corrente, que desvaloriza estas ações imediatas de proximidade e que, sob o pretexto da necessidade de combater as causas estruturais da pobreza, pensa em delegar na política e no Estado o combate à pobreza.”.
Por sua vez, o Santuário de Fátima instituiu a Peregrinação dos Pobres proporcionando a 50 utentes da Cáritas Diocesana de Vila Real uma visita à Cova da Iria, neste domingo, no contexto do II Dia Mundial dos Pobres, sendo que, para alguns, esta foi a primeira vez que vieram a este local. Sílvia Machado, diretora técnica duma das respostas sociais daquela Cáritas salientou:
Vieram pessoas de fé que não têm capacidade financeira para fazer esta viagem. São pessoas com grandes carências económicas, muitas delas sem retaguarda familiar, que dependem totalmente da ajuda que a Cáritas lhes dá.”.
O grupo participou na missa dominical, no almoço, na visita às duas basílicas e na oração na Capelinha; e cada pessoa recebeu como recordação o símbolo do Centenário das Aparições.
2018.11.19 – Louro de Carvalho

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