É o anúncio do que sucederá no fim dos tempos segundo a
passagem do Evangelho de Marcos tomada para a Liturgia da Palavra da missa do 33.º
domingo do Tempo Comum no Ano B (Mc 13,24-32). Com efeito, na precariedade e fragilidade das coisas do mundo –
manifestáveis no sol a escurecer-se, na lua a perder a claridade ou nas
estrelas a cair – os crentes, mergulhados na aflição resultante da perseguição
movida pelos inimigos da fé e da justiça ou provinda do sofrimento trazido pela
vida, veem os sinais da presença do Senhor aqui e agora e, sobretudo, os sinais
precursores da sua vinda gloriosa, não para condenar, mas para oferecer a
salvação, a vida definitiva e plena aos que sabem ultrapassar as agruras da
tribulação com a força e a alegria do Senhor Ressuscitado, de quem deram
testemunho pela vida de retidão e de disponibilidade ao serviço do Reino e da
integração os irmãos nele.
Olhar para o mundo de dramas e desastres constitui a
experiência que intranquiliza e deprime. A guerra, a opressão, a injustiça, a
miséria, a escravidão, o egoísmo, a exploração, o desprezo pela dignidade do
homem atingem-nos, mesmo quando sucedem a milhares de quilómetros do espaço em
que nos movemos diariamente. As sombras que marcam a história da humanidade
tornam-se realidades tangíveis, que nos inquietam e desesperam. Feridos e
humilhados, duvidamos de Deus, da sua bondade e amor, da vontade de salvar o
homem e das promessas de vida em plenitude. Mas é neste contexto que a Palavra
de Deus abre a porta à esperança, reafirmando que Deus não abandona a
humanidade e está determinado a transformar o mundo velho de egoísmo e pecado
num mundo novo de vida e de felicidade para todos os homens.
O predito texto de Marcos reporta-nos a Jerusalém, antes da Paixão
do Senhor. No final do 3.º dia da estadia de Jesus na Cidade, o dia dos
“ensinamentos” e das polémicas mais radicais com os líderes judaicos (cf Mc 11,20-13,1-2), já no Jardim das Oliveiras, Jesus
oferece a um grupo de quatro discípulos (Pedro, Tiago, João e André – cf Mc 13,3) largo e enigmático ensinamento
designado por “discurso escatológico”
(cf Mt 13,3-37). Considera-se que descreve, em
linguagem profético-apocalíptica, a missão da comunidade cristã no horizonte
temporal da morte de Jesus ao final da história humana. Trata-se dum texto
difícil em imagens e linguagens com alusões enigmáticas à semelhança da
literatura apocalíptica veterotestamentária e do Apocalipse de João. Não é peça
jornalística de eventos concretos, mas leitura profética da história humana,
com vista a dar aos discípulos indicações sobre a atitude a tomar face às
vicissitudes que marcantes da caminhada da comunidade até ao momento em que
Jesus voltar para instaurar o novo céu e a nova terra.
Os discípulos mencionados no início do discurso representam a
comunidade cristã de todos os tempos. São precisamente os 4 primeiros
discípulos que Jesus chamou (cf Mc 1,16-20) e que
se tornam representantes de todos os discípulos. O discurso escatológico não é
uma mensagem privada para um grupo especial, mas para toda a comunidade dos crentes,
chamada a caminhar na história com os olhos postos no encontro final com Jesus
e com o Pai. E a missão que Jesus (consciente de ter chegado a sua hora de partir ao encontro do
Pai) confia à comunidade
não é fácil. Jesus tem consciência de que os discípulos terão de enfrentar as
dificuldades, as perseguições, as tentações do mundo. A comunidade em marcha
pela história necessitará, pois, de estímulo e alento. Por isso, surge este apelo
à fidelidade, à coragem e à vigilância e bem como a afirmação da certeza de que
vale a pena acalentar a esperança, uma vez que podem passar os céu e a terra,
mas as palavras do Senhor não passarão. Tal como a figueira, na sua aparente fragilidade
com a rebentação como que a prometer vergá-la, anuncia, pela grande folhagem e
frutos a querer nascer, que o verão está próximo, assim os sinais da natureza
mostram a presença do Senhor e anunciam a sua futura vinda gloriosa. Assim, no
horizonte último da caminhada da comunidade, Jesus coloca o final da história
humana e o reencontro definitivo dos discípulos com Jesus.
O discurso escatológico distribui-se por três partes,
antecedidas duma introdução (Mc 13,1-4). Na
primeira (Mc 13,5-23), anuncia uma série de vicissitudes
que marcarão a história e que requerem dos discípulos a atitude da vigilância e
lucidez; na segunda, anuncia a vinda definitiva do Filho do Homem e o
nascimento dum mundo novo a partir das ruínas do velho (cf Mc 13,24-27); e, na terceira, acentua a
incerteza quanto ao tempo histórico dos eventos anunciados com a insistência de
que os discípulos devem estar sempre vigilantes e preparados para acolher o
Senhor que vem (cf Mc
13,28-37). O texto de
Marcos para reflexão desta dominga contém a 2.ª parte do discurso escatológico e
alguns versículos da 3.ª.
Os dois primeiros versículos referem-se (com imagens da tradição profético-apocalíptica) à queda do mundo que se opõe a Deus
e persegue os crentes (vv
24-25). Em Is 13,10, o escurecimento
do sol, da lua e das estrelas anuncia o dia da justiça de Jahwéh para destruir
o império babilónico e libertar o Povo de Deus exilado em terra estrangeira (cf Is 34,4); em Jl 2,10, com tais imagens
descrevem-se os acontecimentos do Dia do
Senhor, em que Jahwéh intervirá na história para castigar os opressores e
salvar os eleitos. E é esta a linguagem que Marcos utiliza para descrever a
falência dos impérios que lutam contra Deus e os seus santos. É uma linguagem
tradicional perfeitamente percetível para os leitores de Marcos. Entre os gregos,
por exemplo, o sol e a lua (“Hêlios”, e “Selénê”) eram adorados como deuses; e os imperadores romanos identificavam-se
como o Sol (o imperador
Nero, o primeiro perseguidor dos cristãos de Roma, erigiu no palácio imperial uma
estátua de bronze com 30 metros de altura que o representava como o deus “sol”). A mensagem é clara: está iminente
uma viragem decisiva na história; irão ser derrubados os poderes a velha ordem (religiosa e política), que se opõem a Deus e que
perseguem os santos, surgirá um mundo novo construído de acordo com os
critérios e os valores de Deus.
Marcos não se refere propriamente ao fim do mundo, mas,
genericamente, à vitória de Deus sobre o mal que oprime e escraviza aqueles que
optam por Deus. A queda do mundo velho vem associada à vinda do Filho do Homem
(v 26). A imagem leva-nos a Dn 7,13-14,
onde se anuncia a vinda de um “Filho do Homem” “sobre as nuvens do céu” para
afirmar a soberania sobre “todos os povos, todas as nações e todas as línguas”.
O Filho do Homem que virá, cheio de poder e de glória, reunir os seus eleitos (v 27), é Jesus. Com esta imagem, Marcos assegura o triunfo
definitivo de Cristo sobre os poderes opressores e a libertação de quem, apesar
das perseguições, continua a percorrer na fidelidade a rota de Deus.
A mensagem é clara: espera-os um caminho de sofrimento e
perseguição, mas os discípulos não podem deixar-se afundar no desespero porque
o Senhor virá e, com a sua vinda gloriosa (de ontem, hoje, amanhã), cessará a escravidão que os impede de conhecer a vida em
plenitude e nascerá um mundo novo, de plena alegria e felicidade – um quadro
destinado, não a atemorizar, mas a abrir os corações à esperança do dia novo da
libertação infinda.
A seguir (vv 28-32), Jesus
responde à questão dos discípulos em Mc 13,4 “Diz-nos quando tudo isto acontecerá e qual o sinal de que tudo está
para acabar”. Porém, mais importante que definir o tempo exato da queda do
mundo velho é ter confiança e estar com atenção aos sinais que anunciam o mundo
novo. Com efeito, como o aparecimento de novos ramos e de novas folhas nas
figueiras, que sucede invariavelmente em cada ano, anuncia ao agricultor a
chegada do verão e do tempo das colheitas (vv 28-29), também os crentes devem esperar, com confiança, atentos aos sinais, a chegada
do mundo novo e ler, nos sinais de desagregação do mundo, o anúncio da
proximidade do tempo da libertação, pelo que podem e devem preparar o coração
para acolherem Jesus e aceitarem os seus desafios, agarrando a oportunidade que
Ele oferece. E, apesar de não haver data marcada para o advento dessa nova
realidade (v 32), os crentes podem estar certos de
que as palavras de Jesus não são uma bela teoria ou um piedoso desejo; mas a
garantia de que o mundo novo, de vida plena e de felicidade sem fim, irá surgir
(v 31). Porém, é preciso ter presente que
este mundo novo – aberto a todos (dos 4 pontos cardeais) permanentemente a fazer-se e a refazer-se depende do nosso
testemunho – nunca será uma realidade plena nesta terra (a caminhada no mundo é sempre marcada
pela finitude, limites, imperfeição). O mundo novo sonhado por Deus é uma realidade escatológica
já em marcha, mas cuja plenitude só acontecerá depois de Cristo, o Senhor, ter
destruído definitivamente o mal que escraviza e implantado a liberdade.
***
A predizer a descrita situação escatológica vem a perícopa do
profeta Daniel assumida como 1.ª leitura (Dn 12,1-3). Verifiquemos o contexto e como o profeta parte da análise do passado
recente e do presente para semear a esperança no seio do Povo de Deus.
Em 333 a.C., Alexandre da Macedónia bateu Dario III, rei dos
Persas, na batalha de Issos (Síria). A
Palestina, até então dominada pelos Persas, é integrada no império de
Alexandre, que impõe a ideia da “oikouméne”, ou seja, um mundo em que todos os
homens eram uma só família sob uma só lei divina, todos os cidadãos do império
eram cidadãos da mesma cidade, comungando dos mesmos valores e cultura. Porém,
à morte de Alexandre, em 323 a.C., o império foi disputado pelos generais e a
Palestina foi objeto de disputa entre os ptolomeus, que ocupavam o Egito, e os
selêucidas, que dominavam a Síria e a Mesopotâmia. Os ptolomeus asseguraram o
domínio da Palestina e da Síria, mas o selêucida Antíoco III, aliado com Filipe
V da Macedónia, venceu os ptolomeus na batalha das fontes do Jordão, no ano 200
a.C. e conquistou a Palestina.
À época de relativa benevolência para com a cultura e
religião judaicas por parte dos ptolomeus sucedeu a época da intolerância no
reinado do selêucida Antíoco IV Epífanes (174-164 a.C.), que impôs a cultura helénica em todo o império. A perseguição foi dura
e as marcas da intolerância provocaram feridas profundas no universo judaico.
Contudo, enquanto muitos judeus renegaram a fé e assumiram os valores helénicos,
muitos outros resistiram e defenderam a sua identidade cultural e religiosa. Uns
optaram pela insurreição armada (vg: Judas Macabeu e heroicos seguidores); outros optaram por fazer frente à
prepotência régia com a sua palavra e os seus escritos.
Neste contexto, surge o Livro de Daniel. É dum autor judeu
fiel à cultura e aos valores religiosos dos antepassados, interessado em
defender a sua cultura e religião, apostado em mostrar aos concidadãos que a
fidelidade aos valores seria recompensada por Jahwéh com a vitória sobre os
inimigos. Contando a história de Daniel, judeu exilado na Babilónia, que soube manter
a fé em ambiente adverso de perseguição, o autor do Livro pede aos concidadãos
que não se deixem vencer pela perseguição e que se mantenham fiéis à religião e
aos valores dos pais, garantindo-lhes, em contrapartida, que Deus está do lado
do seu Povo e que lhe recompensará a fidelidade à Lei e aos mandamentos. É a
segunda metade do séc. II a.C., pouco antes do desaparecimento de cena de
Antíoco (em 164 a.C.).
Com este Livro, inaugura-se a literatura apocalíptica. Em
tempo de perseguição, servindo-se de um género literário que recorre a símbolos
e a linguagem cifrada, o autor quer restabelecer a firmeza da esperança e
assegurar ao Povo a vitória de Deus e dos fiéis sobre os opressores. Aos
crentes perseguidos é anunciada a chegada iminente do tempo da intervenção
salvadora de Deus para salvar o Povo. Nesse sentido se refere a intervenção de
“Miguel” (significa
interpelativamente “Quem como Deus?”), o chefe do exército celeste, que Deus enviará a punir os
perseguidores e proteger os santos. No imaginário religioso judaico, Miguel é
um espírito celeste (um
anjo protetor) que vela
pelo Povo de Deus e que, por mandato divino, opera a libertação dos justos
perseguidos, cujo nome está inscrito “no livro da vida” (v 1). A intervenção iminente de Deus não atingirá, na ótica do autor,
apenas os que ainda caminham na história; Deus irá também ressuscitar os que já
morreram para lhes dar o prémio pela vida de fidelidade ou o castigo pelas
maldades que praticaram (v
2). Em concreto, o autor
não fala do que chamamos o fim do mundo, mas duma intervenção de Deus que porá
fim ao mundo da injustiça, opressão, prepotência, morte, e que iniciará um
mundo novo, de justiça, felicidade, paz, vida genuína.
Os que, na perseguição e do sofrimento, se mantiveram fiéis
estão destinados à vida eterna. É uma vida que o autor não define diretamente,
mas pelos símbolos utilizados – “resplandecerão como a luminosidade do
firmamento”; “brilharão como as estrelas com um esplendor eterno” (v 3) – que evocam a transfiguração dos ressuscitados. Essa vida
nova que os espera não será uma vida semelhante à do mundo presente, mas será
uma vida transfigurada.
É esta a esperança que deve sustentar os justos, chamados a
permanecerem fiéis a Deus, apesar da provação. A sua vida não é sem sentido e
não está condenada ao fracasso; mas a sua constância e fidelidade serão
recompensadas com a vida eterna. Embora sem dados muito concretos e sem
definições claras, começa aqui a esboçar-se a teologia da ressurreição.
***
Ora, a notícia da ressurreição anunciada veladamente por Daniel
terá a realização completa e definitiva segundo o anúncio de Marcos nos termos
do qual “verão o Filho do Homem vir sobre
nuvens com grande poder e glória” a mandar os anjos a reunir todos os
eleitos dos quatro pontos cardeais, do extremo da terra ao extremo do céu (cf Mc 1,26-27). E é-nos garantida pela ressurreição
de Cristo, Aquele que se sentou para sempre à direita de Deus, porque, tal como
assegura a 2.ª leitura, tomada para esta dominga (Heb 10,11-14.18), ao invés dos sacerdotes veterotestamentários
(que tinham de exercer muitas
vezes o seu ministério sacerdotal com sacrifícios que nunca poderiam perdoar os
pecados) realizou, de uma
vez para sempre, o único sacrifício, do qual só falta distribuir os frutos, ou
seja, a esclarecida provocação do arrependimento para a efetiva remissão dos
pecados. Com efeito, onde há remissão dos pecados não há necessidade de oblação.
De facto, Jesus, com o sacrifício de morte na cruz, consumou
a sua obra (Tudo está
consumado – Jo 19,30),
atravessou os céus (Heb
4,14) e apareceu gloriosamente
redivivo como sustento da nossa fé garantia da nossa ressurreição (cf Mt 28,5-10.16-20; Mc 16,1-14; Lc 24,4-43;
Jo 20,11-29; 1Cor 15,1-34).
Enfim, Jesus veio concretizar o projeto de Deus, ou seja,
libertar o homem do pecado e inseri-lo no rumo da vida eterna. Com a sua vida e
testemunho, ensinou-nos a vencer o egoísmo e o pecado e a fazer da vida dom de
amor a Deus e aos irmãos – rota do mundo novo e da vida.
Assim, podemos
aproximar-nos
confiadamente do trono da graça, alcançar misericórdia e encontrar graça para a
ajuda oportuna (cf Heb 4,16).
2018.11.18
– Louro de Carvalho
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