No XXXI domingo do Tempo Comum no Ano B, a Carta aos Hebreus
apresentava Cristo como o Sumo Sacerdote por excelência, na linha do sacerdócio
de Melquisedec em contraposição à do sacerdócio levítico (vd Heb 7,23-28). Depois, noutra secção (vd Heb 8,1-9,28), apresenta Cristo, o sacerdote
perfeito, explicando em que consiste essa perfeição e quais as consequências
para a vida dos fiéis. E é nesta secção que se inscreve a 2.ª leitura da Missa
deste XXXII domingo (Heb
9,24-28), em que, depois
de discorrer sobre a imperfeição do antigo culto (cf Heb 8,1-6), a imperfeição da antiga Aliança (cf Heb 8,7-13) e a ineficácia dos sacrifícios
oferecidos no Templo (cf
Heb 9,1-10), o autor da Carta
explica aos destinatários o motivo por que o sacrifício de Cristo é perfeito (cf Heb 9,11-14) e como, pelo seu sacrifício, Cristo
se torna o mediador da Nova Aliança (cf Heb 9,15-22). E, no último parágrafo da secção (cf Heb 9,23-28), o autor tira, para a vida dos
fiéis, as consequências de tudo o que acabara de dizer, a propósito do
sacerdócio perfeito de Cristo. Com efeito, o versículo 23 refere:
“Era, pois,
necessário que as figuras das realidades celestes fossem purificadas por tais
meios, mas as realidades do céu deviam sê-lo por sacrifícios maiores do que
esses”.
Assim, dirigindo-se a cristãos em dificuldade, que terão
perdido o entusiasmo inicial e que, ante as dificuldades, corriam o risco de
renunciar ao compromisso batismal, o autor da Carta procura animá-los e
revitalizar a sua experiência de fé. Disto dá testemunho a perícopa hoje em
causa.
No Dia da Expiação (o Yôm Kippur), o sumo sacerdote entrava no Santuário (ou Santo dos Santos) para oferecer um sacrifício de
animais, após o que saía para aspergir com o sangue o povo. Então, mandava-se
para o deserto um “bode expiatório” simbolicamente carregado com os pecados de
todos. Ao invés, Cristo não entrou no santuário construído por mão humana uma
vez em cada ano para oferecer um sacrifício de animais, mas, no termo da sua
caminhada terrena com os homens, o Sacerdote perfeito penetrou de uma só vez e
para sempre no santuário celeste (o verdadeiro santuário) com o sacrifício de Si mesmo para libertar a humanidade de
todos os seus pecados. Ali, onde se gera permanentemente a comunhão de Deus e a
comunhão com Deus, vivendo em comunhão com o Pai, Ele continua a interceder
pelos homens e a dispor o coração do Pai em favor dos homens (v 24).
Enquanto o sumo sacerdote da antiga Aliança tinha de entrar
no Santuário todos os anos – no Dia da Expiação, o único dia do ano em que o
sumo-sacerdote entrava no “Santo dos Santos” do Templo de Jerusalém, a fim de
aspergir o “propiciatório” com o sangue de um animal imolado e obter, assim, o
perdão de Deus para os pecados do Povo e os seus – Cristo, que não precisava de
oferecer sacrifícios por seus pecados, pois não os tinha (pagou pelos nossos), entrou uma só vez e para sempre no Santuário perfeito (não fabricado por mãos humanas), levando o seu próprio sangue, e obteve a redenção de toda
a humanidade, desde a criação do mundo até ao final dos tempos. Na verdade, a
entrega de Cristo, o seu sacrifício consumado no dom da vida, tem uma eficácia
total e universal, conseguindo com ela Cristo a destruição da condição pecadora
do homem, ou seja, ficando humanidade, a partir desse instante, definitivamente
salva pelos méritos do Ungido. E, depois de ter morrido compartilhando a
condição dos homens e fazendo-os enveredar rumo ao destino que Deus traçou para
eles, surgirá de novo, já sem a aparência de pecado, no final dos tempos (parusia), não
para oferecer um novo sacrifício, nem para condenar o homem, mas para dar em
definitivo e em pleno a salvação àqueles que Ele, com o seu sacrifício,
libertou do pecado e que O esperam. E, assim, uma vida de peregrinos e marcada
por êxitos e fracasso, alegria e tristeza, vitória e derrota, será coroada com
o prémio da glória, não pelos nossos merecimentos, mas pelos méritos de Cristo,
imagem perfeita do Pai sempre misericordioso.
***
Perpassa no texto a ideia de que Jesus nos libertou do pecado
com o seu sacrifício, o que tem como consequência a libertação, por Cristo, do
homem das cadeias de egoísmo e de pecado que o manietavam. Nesse sentido, Cristo
pediu a transformação radical do homem (“metanoia”)
no coração, na mente, nos valores, nas atitudes, nos comportamentos, e propôs,
com a sua palavra, exemplo e vida, que o homem enveredasse pela via do amor, da
partilha, do serviço, do perdão, do dom da vida. A sua entrega na cruz
constitui a lição suprema que Ele nos quis deixar – a lição do amor que
renuncia ao egoísmo ensimesmante e que se faz dom total aos irmãos até às
últimas consequências. A luta contra o pecado levou-O a confrontar-Se com as estruturas
políticas, sociais e religiosas geradoras e fautoras de injustiça e opressão; a
sua morte de cruz, arquitetada pelos hipócritas detentores do poder (autoridades políticas e religiosas do
país), foi a
consequência da sua luta contra as predadoras estruturas que oprimiam o homem e
que geravam egoísmo e morte. Ele que, por nós, homens e para nossa salvação
desceu dos Céus (vd
símbolo niceno-constantinoplitano) ofereceu efetivamente a vida em sacrifício para nossa
libertação. E a sua ressurreição revelou que Deus Lhe aceitou o sacrifício e
que não deixará mais que o pecado roube ao homem a vida. Aderir a Jesus pela
obediência da fé, ser cristão, é procurar viver, dia a dia, no seguimento de
Jesus e fazer da vida um dom de amor aos irmãos; é, ao mesmo tempo lutar contra
as estruturas que geram injustiça e pecado e contra os ignóbeis predadores de
pessoas e bens; e é, gastando a vida dessa forma, participar da missão de
Jesus, e cooperar com Ele para eliminar o pecado.
***
Pela Carta
aos Hebreus, ficamos certos de que Jesus é o Sumo Sacerdote eterno e
permanente. Por isso, tão mal pensam aqueles que tendem a pensar que os
sacerdotes da Igreja são como que substitutos de Jesus depois da sua ascensão
ao céu como os que tendem a dispensar o sacerdote, pretendendo colocar o homem
em relação direta com Deus. Os homens que nós designamos por sacerdotes na
Igreja não são sucessores de Cristo, como se Jesus houvesse cessado o seu
sacerdócio e eles viessem preencher um lugar vazio por acaso ou
propositadamente. Mesmo os bispos não são sucessores de Cristo, mas sucessores
dos apóstolos – coisa bem diferente!
O que
acontece é que os sacerdotes agem como ministros (braços e pés) de Cristo-cabeça (Ele mesmo prometeu estar connosco
todos os dias até à consumação dos séculos – Mt 29,20), o que implica a comunhão com os
bispos, que têm a plenitude do ministério em união com o sucessor de Pedro, e
com o Povo de Deus, de que são, na simplicidade e humildade parte proeminente,
enquanto primeiros responsáveis pela tarefa evangelizadora, pontífices na ação
sacrificial e eucarística e líderes na governação da comunidade. Porém, Jesus
continua a ser o Mediador único e o Sacerdote permanente. É isso que ouvimos e
rezamos em todas as orações oficiais da Igreja, dentro e fora da Missa, quando
o padre diz: “Por Nosso Senhor Jesus
Cristo…”.
Por outro
lado, os sacerdotes não se colocam entre Deus e as consciências como obstáculos
ao contacto pessoal direto, mas, no dinamismo da mediação, ajudam as pessoas a
compreender a Palavra de Deus, a conhecerem-se a si mesmas, a fazer o diálogo
pessoal com Deus, e tornam presente o mistério de Jesus ressuscitado, sendo
facilitadores do Arrependimento,
despenseiros do Perdão, testemunhas
da Misericórdia, fatores da Comunhão e promotores da Caridade.
Regista-se alguma
desorientação acerca do ministério sacerdotal, em parte, pelo desejo de
distinguir o sacerdócio de Jesus do dos sacerdotes judeus que viviam do culto
no Templo e de quem Jesus se afastou e, em parte, pelo relevo dado pelo
Concílio Vaticano II às tarefas no mundo e à autonomia das realidades terrestres.
Opunham-se duas conceções do ministério sacerdotal: dum lado, a visão social e
funcional, que descrevia o sacerdócio como um serviço à comunidade dentro da organização
social; do outro, a visão ontológica e sacramental que, sem negar o caráter de
serviço, o vê determinado por um dom concedido pelo Senhor. Os primeiros evitam
a palavra sacerdote e, obnubilando a
vertente ontológica, falam de presbítero
ou ancião e do serviço na comunidade;
os segundos falam do sacrifício, do pecado e da intimidade com Cristo, que
seguem de perto e de coração indiviso, e consideram o sacerdote um alter Christus.
A primeira
perspetiva é uma visão humanista, nascida da preocupação de ajudar o povo; a
segunda acentua o sacramento da Ordem e, não deixando de ser exercida em favor
do povo, leva ao povo o dom de Deus. Em 1981, Bento XVI, então Arcebispo de
Munique e Frisinga, foi chamado pelo Papa São João Paulo II para a Congregação
da Doutrina da Fé. Mas, antes de mudar definitivamente para Roma, pediu algum
tempo para fazer reuniões com os leigos da arquidiocese por sentir que havia
neles a tendência para não distinguir os ministérios laicais do ministério
sacerdotal.
Na verdade, todos
os batizados, leigos e sacerdotes, são testemunhas de Jesus Ressuscitado e
prolongam a sua presença no mundo. Os leigos, enquanto membros constituintes do
Povo de Deus possuem o sacerdócio batismal ou comum, de que são dotados também
os ministros sacerdotais em que sobressai o oferecimento a Deus da atividade no
mundo e, geralmente, da vida no matrimónio e, em muitos casos, na vida
consagrada na comunidade religiosa ou no mundo laical e mesmo na vida sem
célibe dedicada à Igreja sem compromisso consecratório. Mas o sacerdócio dos
que receberam o sacramento da Ordem é substancialmente diferente, são ministros
da graça e dos dons de Deus que levam ao mundo e deixam o cuidado das coisas da
terra e da sociedade preferencialmente aos leigos (LG 37). Os dois tipos de sacerdócio exigem-se mutuamente,
sem se confundirem. Na celebração da Missa esses dois sacerdócios cruzam-se
constantemente, e o padre exprime essa diferença dizendo ora “eu” ora “nós”. Aos
ministros ordenados a Igreja pede a generosidade no máximo, que venha a corresponder
à generosidade de Jesus Cristo; e aos leigos pede o empenho na conformação da
atividade humana com os valores do Evangelho e a comunhão com os sacerdotes.
***
As outras leituras deste domingo (1RS 17,10-16; e Mc 12,41-44) falam de desapego, partilha e
capacidade para “dar tudo”, pois Cristo, com a entrega total da sua vida a Deus
e aos homens, realizou plenamente esta dimensão: mostrou-nos, com o seu
sacrifício, qual é o dom perfeito que Deus quer e que espera de cada um dos
seus filhos, ou seja, mais do que dinheiro ou outros bens materiais, Deus
espera de nós o dom da vida, ao serviço deste projeto de salvação que Ele tem
para os homens e para o mundo.
O texto do 1.º Livro dos Reis fala da viúva aquém Elias pede,
além da água que ela lhe dera, um pedaço de pão para ele comer. Tendo ela
respondido que só tinha um pouco de farinha na panela e um restinho de azeite
na almotolia e que andava a apanhar um pouco de lenha para, em casa, preparar esse resto para si e seu filho, comerem e
esperarem a morte, o profeta, desafiou-a a que não tivesse medo, que fizesse
como disse, mas que disso que tinha que lhe fizesse um pãozinho e lho trouxesse
e, só a seguir, preparasse o resto para si e para o filho porque Deus
garante:
“A panela da farinha não se esgotará, nem
faltará o azeite na almotolia até ao dia em que o Senhor mandar chuva sobre a
face da terra” (14).
A viúva fez
como o profeta mandou; comeu Elias, ela e a sua família, durante alguns dias; e
nem a farinha se acabou na panela, nem o azeite faltou na almotolia (cf 15-16).
Temos na viúva de Sarepta o exemplo dum modo de estar na
vida, o de quem, atingido pela desgraça, desespera e deixa de acreditar na vida.
Assim, apenas lhe resta esperar a morte. É o caso paradigmático de tantos e
tantas que, educados para o insucesso, não acreditam na vida, creem no
insucesso e tê-lo-ão por isso. Precisam do abanão profético para se reconciliarem
consigo e crerem em si mesmos, na convicção de que a vida ajudará os audazes. E,
se a fé se agigantar, moverá montanhas para ajudar segundo o querer de Deus,
que é a verdadeira felicidade do homem.
O texto do Evangelho de Marcos mostra-nos duas cenas.
A primeira é
a dos predadores que fazem e/ou interpretam as leis deixando sempre umas
abertas por onde possam escapulir para a manutenção e aumento dos seus
interesses e regalias. Há-os na política, na economia, nas relações sociais e
nas Igrejas. É um modo de vida segundo o qual eles creem na vida, mas de modo
funesto e o seu êxito é implausível. E Jesus denuncia “os doutores da Lei, que
gostam de exibir longas vestes, de ser cumprimentados nas praças, de ocupar os
primeiros lugares nas sinagogas e nos banquetes e que devoram as casas das
viúvas a pretexto de longas orações, pelo que receberão uma sentença mais
severa” (cf 38-40).
Tantos doutores
da Lei atualmente na nossas praças a zelar interesses pessoais e grupais e a
fazer guerra em nome de Deus!
A segunda é a da viúva pobre, que, em contraste com os ricos
que deitavam no tesouro do Templo grandes quantias (acreditavam na vida pelo lado do
dinheiro, da riqueza),
lançou duas pequeninas moedas. E Jesus aprecia o gesto da viúva chamando a
atenção dos discípulos:
“Esta viúva pobre
deitou no tesouro mais do que todos os outros; porque todos deitaram do que
lhes sobrava, mas ela, da sua penúria, deitou tudo quanto possuía, todo o seu
sustento” (43-44).
Esta viúva, ao invés da viúva de Sarepta, acreditava na vida,
não no dinheiro; alinhava pela bondade, confiando na vida e em Deus, que não
falta aos que O amam e invocam. Estava na linha da recomendação de Jesus:
“Procurai
primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais se vos dará por
acréscimo. Não vos preocupeis, portanto, com o dia de amanhã, pois o dia de
amanhã já terá as suas preocupações. Basta a cada dia o seu problema.” (Mt).
Ora, considerando os modos de estar na vida plausíveis
indicados pelo profeta e por Jesus, voltamos à Carta aos Hebreus e concluímos,
em consonância com tantas almas generosas, que a certeza de que Jesus Cristo, o
sacerdote perfeito, venceu o pecado e está agora junto de Deus a interceder por
nós e a esperar o momento de nos oferecer a vida eterna, dá-nos confiança e
esperança, ao longo da caminhada diária pelas rotas da vida. A Palavra de Deus
que nos é oferecida garante-nos que as nossas fragilidades e debilidades não
podem afastar-nos da comunhão com Deus, da vida eterna e que, no final do nosso
caminho, Jesus, o nosso libertador, lá estará à nossa espera para nos oferecer
a vida na sua imensa superabundância.
2018.11.11 – Louro de Carvalho
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