O
términus do ano litúrgico no XXXIV domingo do Tempo Comum é assinalado na
Igreja Católica pela Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo.
Como diz
Jesus, na passagem do Evangelho de João, tomada para a Liturgia desta
Solenidade no Ano B (Jo 18,33b-37), o Seu Reino não é deste mundo.
Com efeito, se o Seu Reino fosse deste mundo, os
Seus guardas lutariam para que Ele não fosse entregue aos judeus (cf
v 36).
Os
reinos da Terra são assegurados por líderes que se impõem pela força armada,
pela propaganda e, tantas vezes, pela repressão desmedida. Sejam eles reis ou
imperadores, sejam eles caudilhos ou mesmo Presidentes da República, as
campanhas eleitorais, as campanhas militares, os estados-maiores, a forças de
segurança, as guardas de honra, os palácios e tantos adereços, a que se aliam
contribuições e impostos, taxas e tarifas, emprestam força, pompa e prestígio ao
poder soberano, bem como ao poder local. Ora, no Reino de Cristo, a lógica é
outra:
“Quem entre vós quiser fazer-se grande, seja
o vosso servo; e quem no meio de vós quiser ser o primeiro, seja vosso servo.
Também o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua
vida para resgatar a multidão.” (Mt, 20-26-28; cf Mc 10,43-45; Lc 22,26-27).
Trata-se,
pois, de um Reino de Serviço,
serviço com vista à libertação total de todos e cada um dos seres humanos, que
ficam dotados da capacidade de vencer suas limitações, debilidades e fraquezas e
as tiranias opressoras do mundo, do pecado e da morte.
Mas a
este serviço, despojado do mando e do poder coercivo, está inerente a lógica
poderosa do Reino do Amor, como se pode ver no Evangelho de João:
“Depois de lhes ter lavado os pés e de ter
posto o manto, voltou a sentar-se à mesa e disse-lhes: Compreendeis o que vos
fiz? Vós chamais-me ‘o Mestre’ e ‘o Senhor’, e dizeis bem, porque o sou. Ora,
se Eu, o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés
uns aos outros. Na verdade, dei-vos exemplo para que, assim como Eu fiz, vós
façais também. Em verdade, em verdade vos digo, não é o servo mais do que o seu
Senhor, nem o enviado mais do que aquele que o envia. […] Dou-vos um novo
mandamento: que vos ameis uns aos outros; que vos ameis uns aos outros assim
como Eu vos amei. Por isto é que todos conhecerão que sois meus discípulos: se
vos amardes uns aos outros.” (Jo 13,12-16.34-35).
O Reino de Cristo é o Reino de Deus, que Jesus anunciou como
próximo e que exige que nos arrependamos e acreditemos na Boa Nova (cf Mc 1,15), pelo que devemos considerar que não é o Reino do castigo,
mas o Reino do Perdão resultante da misericórdia
divina de que Jesus é perfeito espelho e que, em nome de Jesus, o Senhor e
Messias, se pregará a conversão para o perdão dos pecados a todos os povos (vd Lc 24,47; Jo 20, 21-23; At 2,36.38; 3,19.20). Por isso, a
oração que Jesus nos ensinou comporta explicitamente a petição do Reino de Deus
e, por conseguinte, o perdão das ofensas que Deus nos concede e exige que
também perdoemos ao próximo sempre que necessário. Sem o advento do Reino de
Deus até nós não conseguiremos promover a santificação do Pai entre nós, nem
fazer com que se realize em nós a Sua vontade e a Sua glória, dificilmente
teremos todos o pão de cada dia (o que
alimenta o corpo e o que alimenta alma e cimenta a unidade dos filhos de Deus) e com
facilidade mergulharemos na tentação.
Neste sentido, no Ano A, festejávamos Cristo como o Rei
Pastor – o Senhor que nos apascenta e, guiando-nos por sendas direitas,
nos leva a descansar em verdes prados – entoando o salmo 23 em resposta à
profecia de Ezequiel pela qual o Senhor promete:
“Eu mesmo cuidarei das minhas ovelhas e me interessarei por
elas. Procurarei aquela que se tinha perdido, reconduzirei a que se tinha
tresmalhado; cuidarei a que está ferida e tratarei da que está doente. Vigiarei
sobre a que está gorda e forte. A todas apascentarei com justiça.” (Ez 34,11.16).
Na verdade, Deus é o nosso Pastor e mostra-Se como tal em
Jesus Cristo, o novo David.
E, assim, assumimos o que Jesus ensina no Evangelho de Mateus
(Mt 25,31-46) para se realizar quando, no fim dos tempos, se sentar no
seu trono de glória e separar as pessoas umas
das outras, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos, colocando as ovelhas
à direita e os cabritos à esquerda:
“O
Rei dirá aos da sua direita: ‘Vinde, benditos de meu Pai! Recebei em herança o
Reino que vos está preparado desde a criação do mundo. Porque tive fome e
destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, era peregrino e
recolhestes-me, estava nu e destes-me que vestir, adoeci e visitastes-me,
estive na prisão e fostes ter comigo.’ […]. ‘Sempre que fizestes isto a um
destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes.’ Em seguida
dirá aos da esquerda: ‘Afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, que
está preparado para o diabo e para os seus anjos! Porque tive fome e não me
destes de comer, tive sede e não me destes de beber, era peregrino e não me recolhestes,
estava nu e não me vestistes, doente e na prisão e não fostes visitar-me’. […].
Sempre que deixastes de fazer isto a um destes pequeninos, foi a mim que o
deixastes de fazer’. […]. Estes irão para o suplício eterno, e os justos,
para a vida eterna.” (Mt 25,34-36.40b.41-43.45b-46).
Ou seja, como
Ele faz por nós agora, também quer que o façamos nós e disso nos pedirá contas.
Resulta que
do conceito de Rei Pastor decorre a noção deste reino novo: um reino de cuidado recíproco: cuidarmos
uns dos outros, sobretudo dos mais carentes em quem teremos de ver o rosto de
Cristo. E é um reino em que todos reinamos com Cristo, porque reinar é servir e
cuidar. Por isso, somos constituídos em povo de reis, nação santa, povo
sacerdotal (cf 1Pe 2,9;
Ex 19,6).
No Ano C,
olharemos para Jesus Rei do Universo colocado à frente de todo o povo de Deus,
que se estende a todo o mundo, tal como David fora colocado por Deus à frente
do povo de Israel, ou seja, trata-se de um serviço
partilhado e marcado pela unção no Espírito Santo por força da aliança
estabelecida entre o Céu e a Terra. E, se com a entoação comunitária do Salmo
122, já nos exprimimos como verdadeiros membros do Reino da Alegria peregrinando
neste mundo para a Jerusalém celeste, a nossa pátria definitiva, ouviremos da
boca de Cristo pendente na cruz prometer a cada um do que anseios por este Reino
de Justiça misericordiosa: “Hoje
mesmo estarás Comigo no Paraíso” (Lc 23,43). Na verdade, nós somos cidadãos do Céu, habitantes da Casa do
Senhor, e caminhamos no Espírito, com Jesus, para o Pai.
***
E, neste Ano
B, topamos o cerne da realeza de Jesus no diálogo estabelecido entre Pilatos e
Ele. Com efeito, quando Pôncio Pilatos Lhe
perguntou se era rei dos judeus, Jesus respondeu com uma pergunta: ‘Tu perguntas isso por ti mesmo, ou porque
outros to disseram de mim?’. Mas o Governador replicou dizendo que a gente de
Jesus e os sumos sacerdotes é que lho entregaram e perguntou o que terá feito Jesus.
E Jesus esclareceu:
‘A minha realeza não é deste mundo; se a minha realeza fosse deste
mundo, os meus guardas teriam lutado para que Eu não fosse entregue às
autoridades judaicas; portanto, o meu reino não é de cá.’.
E à nova fala de Pilatos de que então Jesus era rei, Jesus confirmou:
‘É como dizes: Eu sou rei! Para isto nasci, para isto vim ao mundo: para
dar testemunho da Verdade. Todo aquele que vive da Verdade escuta a minha voz.’.
(cf Jo 18,37).
Então, ficamos a saber que Jesus é Rei, que tenta que nós
consigamos reconhecê-lo como rei por nós mesmos e não só pelo que os outros
digam, que o Seu Reino não é deste mundo e que é o Reino da Verdade. E
sabemos que Jesus nasceu e veio ao mundo para isto: dar testemunho da Verdade, de modo que os homens, querendo ser da
Verdade, ouçam a voz do próprio Jesus.
E o que é a Verdade? Esta foi a pergunta que Pilatos fez, mas
a que Jesus não deu resposta, talvez porque não valeria a pena o esclarecimento
naquele contexto (Pilatos não aceitaria a
resposta).
Ora, a Verdade, como sabemos é o próprio Jesus, que é também
o Caminho e a Vida (cf Jo 14,6). Porque Ele é
a Verdade, é também a Luz que ilumina todo o homem que vem a este mundo (cf Jo 1, 5.6.9). Ele mesmo o diz:
“Eu sou a luz do mundo. Quem me segue não
andará nas trevas, mas terá a luz da vida. […].
Sou Eu a dar testemunho a favor de mim, e também
dá testemunho a meu favor o Pai que me enviou.” (Jo 8,12.18).
Este Reino de Verdade é, pois, também o Reino da Luz, luz que se
comunica de modo que todos os que são discípulos e apóstolos também dão
testemunho da Luz como João Batista. E, além de darem testemunho da Luz, também
ficam a ser luz do mundo, luz que tem
de brilhar junto dos homens para glória do Pai, segundo as palavras de Jesus
claramente expressas no Evangelho de Mateus:
“Vós sois a luz do mundo. Não se pode
esconder uma cidade situada sobre um monte; nem se acende a candeia para a
colocar debaixo do alqueire, mas sim em cima do candelabro, e assim alumia a
todos os que estão em casa. Assim brilhe a vossa luz diante dos homens, de modo
que, vendo as vossas boas obras, glorifiquem o vosso Pai, que está no Céu.”
(Mt 5,14-16).
Ora, ser e viver da Verdade implica a exposição à Luz, a
abjuração da hipocrisia, mentira (filha
do demónio), maldade e fraude, a ação e devoção sinceras sem estar à espera de
retribuição; é a contínua e obstinada abjuração do terrorismo da maledicência e
da maleficência, como da adulação e bajulação. Ser e viver da Verdade postula a
entrega de si mesmo ao bem, ao amor, ao próximo a ponto de arriscar a vida
pelos outros, tal como Jesus, que deu, como Bom Pastor, a vida pelas Suas
ovelhas (cf Jo 10,11), pois ninguém tem mais amor do que aquele que dá a vida
pelos amigos (cf Jo 15,13).
Ser e viver da Verdade é receber aqueles que foram enviados e
aceitar também o múnus de ser enviado (recetividade
discipular e ação apostólica), é estar disponível para aprender da Luz de Cristo e
ensinar com e como Ele, porque todos fomos constituídos por Ele como profetas;
e saborear a oferta que fazemos de Cristo, de nós mesmos e dos outros ao Pai,
porque Jesus nos constituiu sacerdotes consigo. E ser e viver da verdade será
seguir “Jesus Cristo, a Testemunha fiel, o
Primeiro vencedor da morte e o Soberano dos reis da terra”; render glória e poder por todos os séculos “Àquele que
nos ama e nos purificou dos nossos pecados com o seu sangue, e fez
de nós um reino, sacerdotes para Deus e seu Pai”, “Àquele que virá no meio das nuvens, para que todos o vejam, até mesmo
os que O trespassaram”, Àquele a
quem foram entregues todos os povos nações e línguas, porque Ele é “o Alfa e o Ómega (o Primeiro e o Último), Aquele que é, que era e que há de vir, o
Todo-Poderoso” (cf Ap 1,4-8; Dn 7,13-14).
Assim, a
grande mensagem da celebração da Realeza de Cristo no Ano B é a do Reino da
Verdade, do Amor e da Luz – condição que faz dele o Reino da Paz e da Justiça
(Quem vê a
luz, quem é sincero, ama é justo e pacífico). Por isso, a Liturgia, em torno do estribilho “O Senhor é rei num torno
de Luz” – a rimar com cruz, o primeiro trono de Cristo – faz-nos entoar o salmo
93:
“O SENHOR é rei, vestido de majestade; revestido
e cingido de poder está o SENHOR.
Firmou o universo, que não vacilará. O teu trono,
SENHOR, está firme desde sempre; e Tu existes desde a eternidade.
São dignos de fé os teus testemunhos, a tua casa está adornada de santidade por todo o
sempre, ó SENHOR!”.
(Sl
93,1-2.5)
A realeza de Cristo, não sendo
daqui, já se vai realizando cá, mas é superior ao tempo histórico e funda-se no
domínio que Deus manifestou sobre o universo e sobre as forças caóticas. O
salmo, tendo por subtexto os temas cosmogónicos e cosmológicos dos cananeus
integrados na sua conceção de Deus, sublinha a supremacia do Deus de Abraão e
do Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo a Quem, pela Sua entrega redentora, O alçou
à Sua direita constituindo-O Rei e Senhor e concedendo-nos a nós o múnus de
reinar com Ele, cuidando de nós e do próximo pela palavra, e santificação e entrega
da vida.
2018.11.25 – Louro de Carvalho
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