Depois de conversações sem êxito com o MJ (Ministério da Justiça), os juízes avançaram, no dia 20, para uma greve de 21 dias por estar em
causa a revisão do seu estatuto profissional, o EMJ (Estatuto dos Magistrados Judiciais), que não
contempla questões remuneratórias e de carreira há muito reivindicadas – um protesto que não decorria há mais de 10
anos e que, deste feita, reveste forma intercalar que conta com datas
marcadas até quase ao fim do próximo ano.
Neste ano de 2018, foram marcados 10 dias de greve: em novembro, dias 20 e 21
e de 28 a 30; e, em dezembro, de 3 a 7. A agenda do protesto seguirá até
outubro de 2019, com greves marcadas sempre em datas internacionais
relacionadas com a justiça.
A greve é convocada, em todos os dias, para todos os
juízes em funções em todos os tribunais (judiciais, administrativos e fiscais,
Tribunal Constitucional e Tribunal de Contas), mas, à exceção
do passado dia 20, que foi concretizada apenas em alguns tribunais, comunicados
oportunamente.
A greve avançou depois de Manuel Ramos Soares,
presidente da ASJP (Associação Sindical dos Juízes Portugueses) ter ponderado o recuo, por estarem em “contactos
informais” com o MJ, pois, caso o governo mostrasse abertura na revisão do
estatuto dos juízes até ao arranque da greve, esta não teria prosseguido. Na verdade, a ASJP tinha declarado a sua disponibilidade
para parar a greve quando percebesse que é ouvida e houvesse compromisso assumido e claro do Governo para
resolver os problemas da classe. Disse o presidente da ASJP:
“Estamos determinados, mas somos
responsáveis. Até hoje (dia 19) à noite podemos desconvocar
a greve se houver um compromisso assumido e claro de resolver os problemas que
existem, que são de natureza remuneratória – não escondemos isso, nem
temos vergonha de dizer isso –, mas que também não são só dessa natureza”.
Por sua vez, o Governo sempre deixou a indicação de
não existirem condições para lhes aumentar os ordenados. Antes de a assembleia geral da ASJP ter aprovado a
greve, foi enviada uma proposta negocial aos juízes, que a julgaram
insuficiente, embora não tivessem excluído negociações. E o CSM (Conselho
Superior de Magistratura), órgão de
gestão e disciplina da classe, só se deverá pronunciar em reunião
marcada para 4 de dezembro. Porém, em declarações recentes à Lusa, o Presidente do STJ (Supremo
Tribunal de Justiça) e
presidente por inerência do CSM, considerou que esta greve transmite um clima
de crispação e disse tudo vir a fazer para se encontrar uma solução para
dissipar o diferendo com o Governo. Por seu turno, o Primeiro-Ministro considera que esta greve não é a
reação adequada a titulares de órgão de soberania e lamenta que ocorra quando o
EMJ está em apreciação parlamentar. É a posição
assumida por Costa em entrevista à agência Lusa,
publicada na íntegra no dia 22. Disse o Chefe do Governo:
“Não vou comentar decisões que são
necessariamente legítimas de qualquer classe profissional, mas não creio que
essa seja a reação adequada a quem é titular de órgão de soberania”.
António Costa também referiu que a greve ocorre quando o estatuto dos
magistrados está em debate na Assembleia da República e em que várias das
questões que tinham sido colocadas foram todas ultrapassadas, inclusive uma
muito simbólica que tinha a ver com a limitação do vencimento dos magistrados
ao teto do vencimento do Primeiro-Ministro”. E apontou:
“Está já anunciado que pode ser ultrapassada
a questão da limitação do vencimento dos magistrados – e essa é uma questão
metódica que desbloquearia toda a questão da carreira, que, efetivamente, está
há muitos anos comprimida por via desse teto”.
O dirigente da ASJP considerou que a proposta do Governo de revisão
do EMJ é insuficiente e que os juízes estão determinados a fazer greve,
embora continuem disponíveis para falar com o MJ, que tem tempo para apresentar
contraproposta que vá ao encontro das pretensões da classe.
***
No dia 16, a ASJP (que tem 2.300 associados) lançou uma petição pública sobre o processo de revisão do EMJ, invocando
como uma das razões que os “magistrados foram desconsiderados no processo de revisão dos estatutos”.
O seu texto refere que a ASJP:
“Mesmo nos momentos de maior desencontro com
os outros poderes do Estado, em 1988, 1993 e 2005, nunca abdicou do princípio
norteador de ponderar cuidada e criteriosamente sobre a extensão, limites e
oportunidade das formas admissíveis e adequadas de protesto, tendo em conta a
sua natureza excecional e subsidiária”.
Também alega a ASJP que, sendo o EMJ “uma lei fundamental para a
organização e equilíbrio dos poderes do Estado, para a Justiça e para a
garantia do direito fundamental de acesso a um tribunal independente” devia ter
sido objeto dum “processo participado, com efetiva consulta de quem
legitimamente representa os juízes”. Entende que os juízes não
podem aceitar que se aprove um Estatuto “incompleto”, que não assegure
de “forma adequada o aprofundamento da independência judicial nem resolva
bloqueios na carreira com quase três décadas, prolongando, com custos sociais
desnecessários, um conflito que se arrasta já há demasiado tempo”. Justifica
que a posição tomada teve em conta a “forma lamentável” como o processo de revisão
do EMJ foi conduzido, quer na anterior legislatura (sendo o Governo
PSD/PP), quer na presente legislatura (sendo o Governo
do PS), com o impasse a que se chegou
depois de ano e meio, provocado pela recusa da Ministra da Justiça em concluir
a discussão de matérias estatutárias essenciais. E lembra que o grupo
parlamentar do PS violou o compromisso assumido de reabrir a discussão sobre o
EMJ no Parlamento.
A última vez que os juízes fizeram greve foi há 13
anos – mas só de 2 dias – em finais de
outubro de 2005, durante o primeiro governo de José Sócrates. Foi um protesto
motivado pela redução das férias judiciais, pelo congelamento da progressão nas
carreiras e pelas alterações ao estatuto de aposentação e ao estatuto
socioprofissional.
Na altura, o CSM lamentou o “ambiente
de crispação” no sistema judicial, mas considerou lícito o exercício do direito
à greve pelos juízes, tendo em conta que os magistrados judiciais
têm uma “dupla condição de titulares de
órgãos de soberania e de profissionais de carreira que não dispõem de
competência para definir as condições em que exercem as suas funções”.
***
No contexto de uma greve de juízes e dada a modalidade
inédita de que esta se reveste, vem de novo à baila a questão da legitimidade
da greve dos juízes.
Quem olha para os juízes como trabalhadores
dependentes duma entidade patronal, sem terem capacidade estatutária para
definirem as condições do seu trabalho e mobilizarem os meios adequados para o
desempenho das suas funções, mas com uma carreira que lhes impõe os regimes de
perpetuidade e exclusividade e lhes põe nos ombros uma enorme responsabilidade,
sentencia categoricamente o direito à greve e considera as opiniões contrárias
reveladoras duma posição retrógrada situável no século XIX ou até antes.
Carla Oliveira, na revista “Sábado” discorre sobre o estatuto remuneratório dos juízes com base
no vencimento líquido, por ser este o que deve contar, pois é este que entra em
casa (esquecendo
que na administração pública as contas se fazem com base no vencimento ilíquido), mas refere que “ao valor do vencimento do juiz
acresce o valor de 775,00 € (líquido
ou ilíquido?), correspondente ao subsídio de compensação, igual
para todos os juízes, independentemente da antiguidade e da colocação e o único
que recebem” (E eu
pergunto quantos funcionários públicos recebem tal suplemento?). E aduz:
“Os juízes não podem
ser comparados aos titulares de cargos políticos, estes últimos temporários por
natureza. Um juiz está na carreira dos 25 aos 70 anos. Não sai ao fim de 4 ou 8
anos para regressar à sua atividade privada ou para ingressar em cargos muito
bem pagos, muitas vezes em empresas que tutelou enquanto foi governante ou em
empresas sobre cuja atividade legislou durante um mandato que cumpriu.”.
Ao invés, quem olhar para os juízes como desempenhando
funções de soberania (como militares e polícias ou entidades públicas
administrativas reguladoras) tem
dúvidas da legitimidade das suas greves. E quem olhar para eles só como
titulares de órgão de soberania sustenta que “os juízes não têm direito à greve”.
Por tudo isso, são pertinentes as perguntas: Afinal, os juízes têm direito à greve ou não? Será ela constitucional
ou inconstitucional, atendendo ao facto de os magistrados serem titulares de
órgãos de soberania?
António Cluny, Procurador-Geral-adjunto, representa Portugal na
Eurojust (Unidade Europeia de Cooperação Judiciária), cita o exemplo alemão e de outros países para quase
defender este direito:
“[Na Alemanha] onde juízes e procuradores
podem até estar filiados em partidos e sindicatos (mesmo nacionais e verticais,
como o dos serviços) e exercer publicamente neles a sua militância, os
magistrados, convocando plenários nacionais e regionais ou manifestando-se na
rua, no horário de funcionamento dos tribunais, concretizaram já, também,
formas de protesto que implicaram a suspensão de atividades judiciais e que,
mesmo sem formalmente o serem, constituíram, na prática, formas de greve”.
Na greve dos magistrados judiciais, de outubro de 2005, o CSM considerou o
protesto lícito, apesar de lamentar o “ambiente de crispação” no sistema,
argumentando que os magistrados judiciais têm a “dupla condição
de titulares de órgãos de soberania e de profissionais de carreira que
não dispõem de competência para definir as condições em que exercem as suas
funções”. Desta vez, o CSM ainda não se manifestou quanto à atual paralisação,
tendo reunião marcada para o próximo dia 4 de dezembro. Contudo, o seu vice-presidente Mário Belo Morgado defendeu:
“A greve é um direito legal e
constitucionalmente consagrado, que tem que ser respeitado numa sociedade
democrática. Quero crer
que todas as partes envolvidas nesta questão estarão à altura das suas
responsabilidades institucionais e que será encontrada uma solução equilibrada
e razoável”.
Mas Jorge Miranda, constitucionalista e professor catedrático de Direito na UL (Universidade
de Lisboa) e na UCP (Universidade Católica Portuguesa), considerado como uma autoridade na matéria, defendendo que os juízes não
têm direito à greve, explicita:
“Escusado
deveria ser lembrar que os juízes não são trabalhadores subordinados. Não se
acham em qualquer situação aproximável da dos trabalhadores das empresas
privadas ou da Administração Pública. Investidos na titularidade de órgãos de
soberania, encontram-se perante o Estado numa relação de identificação. Não são
empregados do Estado. Eles são – como o Presidente da República, os deputados e
os ministros – o Estado a agir.”.
Também Pedro Bacelar de
Vasconcelos, deputado
do PS e presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos,
Liberdades e Garantias, sustenta a posição contra a greve dos juízes:
“Ainda que
não seja uma opinião consensual, muitos constitucionalistas consideram – e
quanto a mim, muito bem! – que não faz sentido que os magistrados judiciais
tenham direito à greve justamente pela mesma razão e com fundamentos análogos
aos que rejeitam o direito à greve do Primeiro-Ministro e de todos os membros
do Governo, bem como do Presidente da República e dos deputados”.
***
Entre os constitucionalistas, há, como se viu, os que se posicionam contra
a licitude do direito à greve por parte da classe, assentando o argumento
principal no facto de os juízes não serem funcionários do Estado, mas
pertencerem aos tribunais, um órgão de soberania.
Assim, Jorge Miranda, já referido, defende que a classe não tem direito a
esta forma de protesto. Já a 9 de junho de 2017, alertava no Público que a greve dos juízes vai
contra a Constituição.
Citando artigos da CRP para aferir o EMJ, Jorge Miranda considera que “um
estatuto como este implica, em contrapartida, quer deveres quer restrições de
alguns direitos”, escrevendo:
“Muito
em especial, um direito à greve dos juízes, fosse qual fosse o motivo invocado
para o exercer, contenderia com a ligação estrutural incindível dos magistrados
aos tribunais e ao Estado […] Seria um conflito entre poderes do Estado.”.
Para si, como causa última, a greve de juízes deslegitima os juízes perante a comunidade. E recorre aos
casos dos militares e agentes das forças de segurança “a quem foi recusado, de
forma terminante, o direito à greve”, para argumentar:
“Ainda que os juízes pudessem ser
configurados também como trabalhadores do Estado, nem daí fluiria, como
corolário forçoso, que pudessem pretender ter o direito à greve; nem se
compreenderia que os agentes das forças de segurança, que executam as decisões
dos juízes, não gozassem de direito à greve e dele gozassem os juízes”.
Embora entenda como “perfeitamente normal” um sindicato anunciar um
protesto, contrapõe:
“Ao convocar uma greve que se prolonga para
além das eleições europeias, até à data previsível da realização das eleições
legislativas, a associação sindical não se limita à tentativa, em si mesma
legítima, de pressionar o legislador com o fito de obter benefícios
remuneratórios”.
E acrescenta:
“Este efeito perverso não fica dependente
sequer do êxito ou do fracasso das reivindicações que prossegue”.
Além disso, aduz:
“O estatuto remuneratório dos magistrados judiciais está
sujeito a um limite lógico que impõe como teto salarial a remuneração
legalmente prevista para o cargo de Primeiro-Ministro”.
Porém, o Primeiro-Ministro já veio dizer que tal imposição poderá cessar
por decisão da AR.
E Jorge Miranda conclui:
[Esta greve]
“ficará inscrita como uma perturbação
deliberada do normal funcionamento das instituições democráticas e um desafio
ao princípio constitucional da separação dos poderes. E, lamentavelmente,
ninguém espera que contribua para o prestígio dos tribunais cuja autoridade e
independência, hoje mais do que nunca, importa defender e reforçar.”.
Também Pedro Bacelar de Vasconcelos, já referido, se mostra contra a
greve dos juízes em texto de opinião publicado no Jornal de Notícias a 8 de novembro deste
ano, justificando:
“Acontece, porém, que
os trabalhadores que a Associação Sindical dos Juízes Portugueses representa não
são assalariados comuns. O exercício das suas tarefas profissionais não está
vinculado a qualquer espécie de subordinação hierárquica, ao contrário do que
acontece com os trabalhadores que operam nas organizações empresariais ou na
Administração Pública.”.
Em opinião publicada no jornal I,
António Cluny, também já referido, acaba a questionar qual a melhor maneira de
prever estes protestos num Estado de direito:
“Reconhecendo aos juízes o direito à greve,
enquanto profissionais integrados numa carreira pública; ou levá-los a que, no
âmbito da sua função de titulares de órgão de soberania e de acordo com a
autonomia que lhes é inerente, criem crises institucionais?”.
***
A Constituição não proíbe a greve de magistrados nem a
de qualquer outro grupo profissional e o EMJ também não, embora este vede aos magistrados judiciais em exercício a prática de
atividades político-partidárias de caráter público e a ocupação de cargos
políticos, exceto o de Presidente da República, de membro do Governo ou do
Conselho de Estado.
É certo que, sempre que houve greves no passado por
parte de juízes, nunca foram suspensas por razões de inconstitucionalidade (Quem a declararia senão um Tribunal?) – o que se entende pelo facto de o sistema judicial
não ter qualquer forma de controlo externo (Tudo se resolve dentro do sistema
judicial). Porém, dificilmente o interesse
público comportará a greve de titulares de órgão de soberania, até porque “as decisões dos tribunais são
obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre
as de quaisquer outras autoridades” (CRP, art.º 205.º/2). Não são os juízes trabalhadores subordinados; têm autoridade praticamente inquestionável,
sobretudo fora do seu sistema e arrogam-se como sendo os melhores decisores ao contrário
dos ditos políticos. E, quanto a vencimentos, gratificações e subsídios, falta
de meios e sobrecarga de responsabilidades e de trabalho, há quem esteja muito
pior na Administração Pública. Corporativismo e greve em nome do povo não. Só
justiça!
2018.11.23 –
Louro de Carvalho
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