quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Segundo Marcelo, especulação política prejudica investigação a Tancos


É verdade que o caso de Tancos está a ser rudemente partidarizado (não apenas politizado), quer seja pela sua gravidade, quer seja pela falta de assunto pertinente da parte da oposição.
O tema reveste-se de gravidade, não por causa do presumível furto de material de guerra, já que não se trata de armas, mas de consumíveis (portanto, não material reutilizável), ainda que representem perigo para vidas humanas, mas por se tratar de falha na gestão de material das forças armadas e do eventual avolumar do mercado subterrâneo, que, em caso de matéria de guerra, pode ser alimentado por furto de material de paióis, em trânsito de fornecedores para a instituição castrense ou por saída do fornecedor pela porta do cavalo. Não é verdade que existem armas que utilizam munições de 9 mm nas mãos de particulares? E alimentam-se de quê? 
Por outro lado, o Exército revelou-se incapaz de dar conta do recado, não tendo sabido bater o pé pela falta de efetivos perante um poder político que supinamente falta com recursos financeiros às forças armadas. É lamentável que instalações militares possam estar sob guarda de empresas particulares de segurança ou vigiadas por via eletrónica ou, no limite, sem vigilância. Admitindo que as câmaras de vigilância ou sensores de entradas e saídas possam constituir um precioso meio auxiliar de vigilância, não dispensam, contudo, a ação humana atenta, pronta e eficaz. É de instalações militares, de estrutura complexa, mesmo que em estado e desativação (podendo constituir albergue de malfeitores ou de passagem de estupefacientes), e de material de guerra (com algum índice de periculosidade) que se trata.
No caso vertente, o antigo CEME tomou decisões erráticas a propósito do furto de material presumivelmente a partir de Tancos. Não terá ninguém colocado a hipótese de o material ter sido eventualmente furtado a partir de outros lugares, tendo em conta o habitual regime de requisição de material e de reposição do material não consumido e o facto de serem várias as unidades militares requisitantes daquele material?
Face à pressão política, do poder e da oposição, bem como da opinião pública, a tutela encenou ações propagandísticas (foram os políticos em andor a Tancos), produziu declarações erráticas (ora facto inédito e crime gravíssimo, ora, no limite, nem existência de furto) e as chefias militares ao tempo curvaram-se sob o peso das culpas perante a tutela política, mas sem terem apurado factos e responsabilidades em sede de procedimento disciplinar. E o poder executivo e o fiscalizador ficaram descansados, remetendo para as autoridades judiciárias a investigação, que tardava, a cargo do MP (Ministério Público) secundado pela PJ (Polícia Judiciária Militar).
Nisto, surgiu a notícia da recuperação do material furtado, emergindo o mérito da PJM e ficando alguns setores da comunicação social a resmungar a luta entre a PJ e a PJM.
Entretanto, o Comandante Supremo das Forças Armadas, condição demasiadas vezes invocada pelo Presidente da República, a meu ver, passado um ano sobre o desaparecimento dos materiais, veio alertar para a necessidade de a investigação ser acelerada e ir ao fim de tudo custe o que custar, doa a quem doer e a lamentar-se por não haver conclusões. Ora, se o Chefe de Estado diz agora – e bem – que a especulação política prejudica a investigação de Tancos, também devia ter atentado em que a pressão de um órgão de soberania sobre a investigação – seja o Presidente, seja o Governo, seja a Assembleia da República, sejam os tribunais (os tribunais julgam o que naturalmente lhes é apresentado, mas não interferem na investigação, mesmo o tribunal de instrução criminal, que se limita a autorizar ou não determinadas ações e valida ou não as conclusões dos investigadores) – também prejudica a investigação. E queiramos ou não, o Presidente da República, seja quem for – e este mais ainda – não pode eximir-se da acusação de pressão política quando fala.
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Porém, desde que surgiu a informação alegadamente sustentada de que a operação de entrega de material, dado como encontrado na Chamusca em virtude duma chamada anónima para um elemento da PJM, recentemente transformada em encobrimento de um dos furtantes, ora restituinte, o facto do furto foi secundarizado. Hoje, o acento recai sobre a “maldade” da PJM, que pretendia ficar com os louros deixando para trás a PJ – tudo em nome do interesse público ou da segurança nacional. E, a par do encobrimento do arrependido, que não se perdoa à PJM (não sei se o perdoariam à PJ), discute-se quem sabia ou não do encobrimento.
O então Ministro da Defesa Nacional declarou a pés juntos que não sabia de nada; o seu ex-chefe de gabinete admitiu que recebeu o então diretor e o então porta-voz da PJM, mas que não lhe deram nota do encobrimento, vindo mais tarde a reconhecer que tinha recebido um memorando, que já entregou no DCIAP; o demitido Ministro da Defesa, confortado com o teor do memorando, declarou que não se tinha apercebido do encobrimento, mas agora está disponível para prestar declarações perante os investigadores e até disse que, no limite, nem terá havido encobrimento; e o demitido CEME (Chefe do Estado-Maior do Exército), resignou alegando perante o Comandante Supremo das Forças Armadas motivos de ordem pessoal, mas perante os seus militares revelou forte condicionamento político e a necessidade de não desgastar a instituição castrense. Isto já parece a guerra do Solnado!    
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Foi dito e redito que o Ministro sabia do encobrimento, que o Primeiro-Ministro também sabia, que a Ministra da Justiça sabia e que o próprio Presidente também sabia, alegadamente pela via de contactos havidos com o então chefe da sua Casa Militar. E a então PGR (Procuradora-Geral da República), ao sentir o mal-estar no DCIAP, terá telefonado ao Ministro da Defesa a dar conta do caso, o que ele terá respondido que fizesse a participação por escrito. Será de estranhar que a PGR não tivesse reportado o caso à sua Ministra da Justiça. Portanto, facilmente, a ser tudo verdade, se concluiria que todos os interessados sabiam.    
Contudo, o Presidente da República, de visita à Madeira, garantiu que não sabia de qualquer encobrimento e classificou tal hipótese de “coisa do outro mundo”, declarando que, “se hoje soubesse quem furtou, não exigia o esclarecimento”. E alertou para o risco de a “especulação política” em torno do caso do furto de armas em Tancos levar a “uma nebulosa” que prejudique a investigação e o apuramento da verdade, advertindo que “o país corre o risco de estar a criar uma nebulosa que tem como efeito nunca apanhar os responsáveis”.
Para o Chefe de Estado, aquele que não se perde na vertente do encobrimento, mas insiste na investigação ao furto, “um dos efeitos de querer disparar em várias direções”, na base do debate e da “especulação política”, pode ser desfocar a atenção do essencial e “prender os responsáveis” nunca mais ser feito. E afirmou:
Como a mim o que interessa é prender os responsáveis, até parece que é de propósito que, de cada vez que se deve deixar espaço para a investigação, para que ela se aprofunde, surgir uma nebulosa que tem como efeito objetivo juntar as mais diversas pistas que obviamente não facilitam a investigação”.
O Presidente reiterou que não sabia de nada sobre qualquer “encobrimento” no caso de Tancos, chegando a classificar de “coisa do outro mundo” pensar-se que poderia ter conhecimento e, ao mesmo tempo, insistir na necessidade de esclarecimento. E, ao ser confrontado pelos jornalistas na Madeira, no final dum debate com alunos do antigo ‘Liceu do Funchal’, com a possibilidade de a Casa Militar ter tido conhecimento dum alegado encobrimento relacionado com as armas furtadas em Tancos no ano passado, declarou: “Não há nenhum dado novo”. E recordou que o seu anterior chefe da Casa Militar, general João Cordeiro, já esclareceu duas coisas: em primeiro lugar, ter sabido “o que quer que fosse” sobre o memorando escrito pelo ex-porta-voz da PJM; em segundo, que “não houve da parte militar da Presidência da República nunca conhecimento daquilo que surgiu como sendo encobrimento e agora já não é encobrimento”.
Ora, se, no limite, não houve furto e, se, no limite, não houve encobrimento, é caso para perguntar, se, no limite, ainda existe a famosa localidade que tem dado pelo nome de Tancos.
O Presidente recordou que, aquando da sua deslocação a Tancos, em 4 de julho, cinco dias depois de o Exército tornar público o desaparecimento das armas, o que foi tornado público “em momento algum envolveu encobrimento”, explicando:
Encobrimento significa haver proteção dada a quem se desconfia que é criminoso em troca de alguma coisa, recuperação das armas ou pista para a recuperação das armas, com a garantia de uma não punição”.
E aduziu:
Naquela altura, estava-se em cima do acontecimento, procuravam-se, como se procuram, os responsáveis pelo furto. Portanto, jamais se poderia ter falado de encobrimento porque a preocupação era quem terá furtado.”.
O Chefe de Estado, cobrindo-se com a sua douta sabedoria jurídica, parece estar a confundir o encobrimento no caso da entrega do material com o encobrimento das condições do furto, acabando por baralhar as hostes – outra forma de fazer política! E, nestes termos, advertiu para o absurdo de eventualmente estar a insistir reiteradamente no esclarecimento se soubesse de algum encobrimento, pois, “se hoje soubesse quem furtou, não exigia o esclarecimento; se hoje soubesse o destino das armas, não exigia esclarecimento”, acrescentando que, se o Presidente insiste no tema, é “porque não sabe”. E, porfiando que ninguém o calará, vincou:
Podem insistir uma, duas, dez, 20 vezes: se há quem, dia após dia, contra tudo e todos, tem insistido para se apurasse a verdade, foi o Presidente da República”.
Por isso, Marcelo, que prometeu falar sobre tudo e sempre que o julgar necessário, sustenta:
Do ponto de vista do sentido de Estado e da falta de noção, são coisas do outro mundo achar-se que quem efetivamente andou a insistir permanentemente em relação ao apuramento da verdade, agora aparece como tendo sabido a verdade do momento do furto das armas. […]. É um mundo de pernas para o ar e por aí nunca se apurará nada.”.
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Tão assertivo é o discurso de Marcelo que o Primeiro-Ministro, agora sob fogo cruzado da oposição da direita, que o acusa de saber do encobrimento, enquanto se disponibiliza para depor na Comissão Parlamentar de Inquérito (Rui Rio acha dispensável), veio reclamar o alinhamento com o Presidente na preocupação pelo cabal esclarecimento de Tancos. Será mais um que ninguém conseguirá calar?
O certo é que Marcelo já tem vozes mais que suficientes muito incomodadas a clamar pelo seu silêncio, nomeadamente à direita e na comunicação social. Paulo Baldaia até lhe aplica a pergunta do então Rei de Espanha a Hugo Chávez “¿Por qué no te callas?”. Uma direita descontente com o Presidente por alegadamente pactuar com a esquerda e um Governo, sem o confessar, desconfortável com o Presidente demasiado interventivo! Por mim, penso que o Presidente fala muito, não o pensando pelas mesmas razões, mas porque a sua palavra simbólica em grandes momentos e necessária em tempo de crise tem de ser credível, pelo que não pode ser banalizada em questões dúbias e nem todas as pressões lhe são legítimas. A bem da República!
2018.11.08 – Louro de Carvalho  


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