É verdade que o caso de Tancos
está a ser rudemente partidarizado (não apenas politizado), quer seja pela sua gravidade, quer seja
pela falta de assunto pertinente da parte da oposição.
O tema reveste-se
de gravidade, não por causa do presumível furto de material de guerra, já que
não se trata de armas, mas de consumíveis (portanto, não material
reutilizável), ainda
que representem perigo para vidas humanas, mas por se tratar de falha na gestão
de material das forças armadas e do eventual avolumar do mercado subterrâneo,
que, em caso de matéria de guerra, pode ser alimentado por furto de material de
paióis, em trânsito de fornecedores para a instituição castrense ou por saída
do fornecedor pela porta do cavalo. Não é verdade que existem armas que
utilizam munições de 9 mm nas mãos de particulares? E alimentam-se de quê?
Por
outro lado, o Exército revelou-se incapaz de dar conta do recado, não tendo
sabido bater o pé pela falta de efetivos perante um poder político que
supinamente falta com recursos financeiros às forças armadas. É lamentável que
instalações militares possam estar sob guarda de empresas particulares de
segurança ou vigiadas por via eletrónica ou, no limite, sem vigilância. Admitindo
que as câmaras de vigilância ou sensores de entradas e saídas possam constituir
um precioso meio auxiliar de vigilância, não dispensam, contudo, a ação humana
atenta, pronta e eficaz. É de instalações militares, de estrutura complexa,
mesmo que em estado e desativação (podendo constituir
albergue de malfeitores ou de passagem de estupefacientes), e de material de guerra (com
algum índice de periculosidade)
que se trata.
No caso
vertente, o antigo CEME tomou decisões erráticas a propósito do furto de
material presumivelmente a partir de Tancos. Não terá ninguém colocado a
hipótese de o material ter sido eventualmente furtado a partir de outros
lugares, tendo em conta o habitual regime de requisição de material e de
reposição do material não consumido e o facto de serem várias as unidades
militares requisitantes daquele material?
Face à
pressão política, do poder e da oposição, bem como da opinião pública, a tutela
encenou ações propagandísticas (foram os políticos em andor a
Tancos), produziu
declarações erráticas (ora facto inédito e crime gravíssimo,
ora, no limite, nem existência de furto)
e as chefias militares ao tempo curvaram-se sob o peso das culpas perante a
tutela política, mas sem terem apurado factos e responsabilidades em sede de
procedimento disciplinar. E o poder executivo e o fiscalizador ficaram
descansados, remetendo para as autoridades judiciárias a investigação, que
tardava, a cargo do MP (Ministério Público) secundado pela PJ (Polícia
Judiciária Militar).
Nisto,
surgiu a notícia da recuperação do material furtado, emergindo o mérito da PJM
e ficando alguns setores da comunicação social a resmungar a luta entre a PJ e
a PJM.
Entretanto,
o Comandante Supremo das Forças Armadas, condição demasiadas vezes invocada
pelo Presidente da República, a meu ver, passado um ano sobre o desaparecimento
dos materiais, veio alertar para a necessidade de a investigação ser acelerada
e ir ao fim de tudo custe o que custar, doa a quem doer e a lamentar-se por não
haver conclusões. Ora, se o Chefe de Estado diz agora – e bem – que a
especulação política prejudica a investigação de Tancos, também devia ter
atentado em que a pressão de um órgão de soberania sobre a investigação – seja
o Presidente, seja o Governo, seja a Assembleia da República, sejam os tribunais
(os
tribunais julgam o que naturalmente lhes é apresentado, mas não interferem na
investigação, mesmo o tribunal de instrução criminal, que se limita a autorizar
ou não determinadas ações e valida ou não as conclusões dos investigadores) – também prejudica a
investigação. E queiramos ou não, o Presidente da República, seja quem for – e
este mais ainda – não pode eximir-se da acusação de pressão política quando
fala.
***
Porém,
desde que surgiu a informação alegadamente sustentada de que a operação de
entrega de material, dado como encontrado na Chamusca em virtude duma chamada
anónima para um elemento da PJM, recentemente transformada em encobrimento de
um dos furtantes, ora restituinte, o facto do furto foi secundarizado. Hoje, o
acento recai sobre a “maldade” da PJM, que pretendia ficar com os louros
deixando para trás a PJ – tudo em nome do interesse público ou da segurança
nacional. E, a par do encobrimento do arrependido, que não se perdoa à PJM (não
sei se o perdoariam à PJ),
discute-se quem sabia ou não do encobrimento.
O então
Ministro da Defesa Nacional declarou a pés juntos que não sabia de nada; o seu
ex-chefe de gabinete admitiu que recebeu o então diretor e o então porta-voz da
PJM, mas que não lhe deram nota do encobrimento, vindo mais tarde a reconhecer
que tinha recebido um memorando, que já entregou no DCIAP; o demitido Ministro
da Defesa, confortado com o teor do memorando, declarou que não se tinha
apercebido do encobrimento, mas agora está disponível para prestar declarações
perante os investigadores e até disse que, no limite, nem terá havido
encobrimento; e o demitido CEME (Chefe do Estado-Maior
do Exército),
resignou alegando perante o Comandante Supremo das Forças Armadas motivos de
ordem pessoal, mas perante os seus militares revelou forte condicionamento
político e a necessidade de não desgastar a instituição castrense. Isto já
parece a guerra do Solnado!
***
Foi dito
e redito que o Ministro sabia do encobrimento, que o Primeiro-Ministro também
sabia, que a Ministra da Justiça sabia e que o próprio Presidente também sabia,
alegadamente pela via de contactos havidos com o então chefe da sua Casa
Militar. E a então PGR (Procuradora-Geral da República), ao sentir o mal-estar no DCIAP,
terá telefonado ao Ministro da Defesa a dar conta do caso, o que ele terá
respondido que fizesse a participação por escrito. Será de estranhar que a PGR
não tivesse reportado o caso à sua Ministra da Justiça. Portanto, facilmente, a
ser tudo verdade, se concluiria que todos os interessados sabiam.
Contudo, o Presidente da República, de visita à Madeira,
garantiu que não sabia de qualquer encobrimento e classificou tal hipótese de “coisa do outro mundo”, declarando que, “se hoje soubesse quem furtou, não exigia o
esclarecimento”. E alertou para o risco de a “especulação
política” em torno do caso do furto de armas em Tancos levar a “uma nebulosa” que prejudique a investigação
e o apuramento da verdade, advertindo que “o
país corre o risco de estar a criar uma nebulosa que tem como efeito nunca
apanhar os responsáveis”.
Para o Chefe de Estado, aquele que não se perde na
vertente do encobrimento, mas insiste na investigação ao furto, “um dos efeitos de querer disparar em várias
direções”, na base do debate e da “especulação
política”, pode ser desfocar a atenção do essencial e “prender os responsáveis”
nunca mais ser feito. E afirmou:
“Como
a mim o que interessa é prender os responsáveis, até parece que é de propósito
que, de cada vez que se deve deixar espaço para a investigação, para que ela se
aprofunde, surgir uma nebulosa que tem como efeito objetivo juntar as mais
diversas pistas que obviamente não facilitam a investigação”.
O Presidente reiterou que não sabia de nada sobre
qualquer “encobrimento” no caso de Tancos, chegando a classificar de “coisa do outro mundo” pensar-se que poderia
ter conhecimento e, ao mesmo tempo, insistir na necessidade de esclarecimento. E,
ao ser confrontado pelos jornalistas na Madeira, no final dum debate com alunos
do antigo ‘Liceu do Funchal’, com a possibilidade de a Casa Militar ter tido
conhecimento dum alegado encobrimento relacionado com as armas furtadas em
Tancos no ano passado, declarou: “Não há
nenhum dado novo”. E recordou que o seu anterior chefe da Casa Militar,
general João Cordeiro, já esclareceu duas coisas: em primeiro lugar, ter sabido
“o que quer que fosse” sobre o
memorando escrito pelo ex-porta-voz da PJM; em segundo, que “não houve da parte militar da Presidência da
República nunca conhecimento daquilo que surgiu como sendo encobrimento e agora
já não é encobrimento”.
Ora, se, no limite, não houve furto e, se, no limite, não
houve encobrimento, é caso para perguntar, se, no limite, ainda existe a famosa
localidade que tem dado pelo nome de Tancos.
O Presidente recordou que, aquando da sua deslocação a
Tancos, em 4 de julho, cinco dias depois de o Exército tornar público o desaparecimento
das armas, o que foi tornado público “em
momento algum envolveu encobrimento”, explicando:
“Encobrimento significa haver proteção dada
a quem se desconfia que é criminoso em troca de alguma coisa, recuperação das
armas ou pista para a recuperação das armas, com a garantia de uma não punição”.
E aduziu:
“Naquela altura, estava-se em cima do
acontecimento, procuravam-se, como se procuram, os responsáveis pelo furto.
Portanto, jamais se poderia ter falado de encobrimento porque a preocupação era
quem terá furtado.”.
O Chefe de Estado, cobrindo-se com a sua douta sabedoria
jurídica, parece estar a confundir o encobrimento no caso da entrega do material
com o encobrimento das condições do furto, acabando por baralhar as hostes –
outra forma de fazer política! E, nestes termos, advertiu para o absurdo de eventualmente
estar a insistir reiteradamente no esclarecimento se soubesse de algum
encobrimento, pois, “se hoje soubesse
quem furtou, não exigia o esclarecimento; se hoje soubesse o destino das armas,
não exigia esclarecimento”, acrescentando que, se o Presidente insiste no
tema, é “porque não sabe”. E, porfiando
que ninguém o calará, vincou:
“Podem insistir uma, duas, dez, 20 vezes: se
há quem, dia após dia, contra tudo e todos, tem insistido para se apurasse a
verdade, foi o Presidente da República”.
Por isso, Marcelo, que prometeu falar sobre tudo e sempre
que o julgar necessário, sustenta:
“Do ponto de vista do sentido de Estado e da
falta de noção, são coisas do outro mundo achar-se que quem efetivamente andou
a insistir permanentemente em relação ao apuramento da verdade, agora aparece
como tendo sabido a verdade do momento do furto das armas. […]. É um mundo de
pernas para o ar e por aí nunca se apurará nada.”.
***
Tão assertivo é o discurso de Marcelo que o
Primeiro-Ministro, agora sob fogo cruzado da oposição da direita, que o acusa
de saber do encobrimento, enquanto se disponibiliza para depor na Comissão Parlamentar
de Inquérito (Rui Rio acha dispensável), veio
reclamar o alinhamento com o Presidente na preocupação pelo cabal esclarecimento
de Tancos. Será mais um que ninguém conseguirá calar?
O certo é que Marcelo já tem vozes mais que suficientes
muito incomodadas a clamar pelo seu silêncio, nomeadamente à direita e na comunicação
social. Paulo Baldaia até lhe aplica a pergunta do então Rei de Espanha a Hugo
Chávez “¿Por qué no te callas?”. Uma direita descontente com o Presidente por alegadamente pactuar
com a esquerda e um Governo, sem o confessar, desconfortável com o
Presidente demasiado interventivo! Por mim, penso que o Presidente fala muito,
não o pensando pelas mesmas razões, mas porque a sua palavra simbólica em grandes
momentos e necessária em tempo de crise tem de ser credível, pelo que não pode
ser banalizada em questões dúbias e nem todas as pressões lhe são legítimas. A bem
da República!
2018.11.08 – Louro de Carvalho
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