sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Acima de tudo a dignidade da pessoa humana


Dom Bernardito Auza, Observador Permanente da Santa Sé nas Nações Unidas, ao intervir numa conferência realizada na Universidade de Yale, nos Estados Unidos, centrou-se na questão das migrações, recordando a perspetiva do Papa e da Santa Sé sobre este complexo fenómeno e sublinhando que a resposta à migração deve ser global, solidária e sem cálculos. E isto em nome da dignidade de toda a pessoa humana.
Na verdade, como refere o Vatican News pela voz de Amedeo Lomonaco, para a Santa Sé, emigrar é, antes de mais, um direito, mas, por outro lado, a migração voluntária, segura, ordenada, regular e bem gerida fornece um precioso contributo para o desenvolvimento  e o enriquecimento cultural. Foi esta a doutrina humanitária que Dom Bernardito Auza reiterou na sua intervenção no passado dia 14, na conferência sobre migração organizada pelo McMillan Center for International and Area Studies, da Universidade de Yale.
Segundo o prelado, a migração é uma natural resposta humana à crise e um testemunho do desejo inato de todo o ser humano de buscar a felicidade, a liberdade, maiores oportunidades e condições adequadas para uma vida melhor. Por conseguinte, terá de concluir-se que “emigrar não é um ato de desespero”.
Dom Auza aproveitou o ensejo para recordar que a própria Santa Sé deu o seu contributo para a definição do “Pacto Global” promovido pela ONU e assinado pelos 193 membros da Assembleia Geral da ONU – documento cujo texto final, voltado para a promoção de medidas para uma migração ordenada e segura, é o resultado de análises, consultas e negociações a nível internacional. Em particular, a Santa Sé deu a sua contribuição determinante para a formulação do artigo 13.º, que indica a necessidade de “criar condições que permitam às comunidades e indivíduos viver em segurança e dignidade em seus países”; e conseguiu que fosse acrescentado no Pacto global o seguinte dito sentencioso da Santa Sé: “a migração nunca deveria ser um ato de desespero”. 
Dom Auza fez questão de recordar os apelos lançados pela Santa Sé à comunidade internacional em ordem ao respeito dos direitos fundamentais de todos os migrantes, independentemente do seu status. E, respondendo a esses apelos, o Pacto Global indica, entre os seus objetivos, o de garantir a todos os migrantes o exercício de seus direitos através de um acesso seguro aos serviços básicos.
Também a Santa Sé reiterou, em várias ocasiões, que a migração é um fenómeno global, pelo que é necessária uma resposta global, que implica a assunção de uma “responsabilidade compartilhada”. E, embora reconheça e respeite o direito soberano dos Estados individualmente considerados a implementar as suas políticas em matéria de migração, em conformidade com as respetivas obrigações de direito internacional, a Santa Sé entende que são os contextos globais e regionais os mais idóneos para promover uma migração, segura, ordenada e regular.
Por sua vez, o Papa Francisco condensou, segundo Dom Auza, em quatro verbos a abordagem geral da Igreja Católica para responder ao desafio global da migração. São eles: acolher, proteger, promover e integrar.
O verbo acolher, segundo as palavras de Francisco aos participantes no Fórum Internacional sobre Migrações e Paz em fevereiro de 2017, apresenta-se perante a “índole da rejeição” como “urgente mudança de atitude para superar a indiferença e antepor aos receios uma generosa atitude de hospitalidade em relação àqueles que batem às nossas portas”. Para o Pontífice, é preciso abrir canais humanitários acessíveis e seguros para quantos fogem de guerras e de perseguições terríveis, não raro presos nas garras de organizações criminosas sem escrúpulos – um “acolhimento responsável e digno destes nossos irmãos e irmãs” a começar “pela sua primeira acomodação em espaços adequados e decentes”.
O verbo proteger aplica-se à situação de trabalhadores migrantes, refugiados, necessitados de asilo e vítimas do tráfico, que são vulneráveis à exploração, ao abuso e à violência. A estes, deve ser promovida a defesa dos seus direitos inalienáveis, a garantia das suas liberdades fundamentais e o respeito pela sua dignidade – tarefas de que “ninguém se pode eximir”, segundo o Papa, que elencou algumas ações práticas neste sentido aos participantes do Fórum, entre eles a coordenadora da Pastoral dos Refugiados, irmã Rosita Milesi.
O verbo promover surge no seguimento da convicção de que “proteger não é suficiente. Com efeito, é necessário promover o desenvolvimento humano integral de migrantes, refugiados e pessoas deslocadas, que ‘tem lugar mediante o cuidado dos bens incomensuráveis da justiça, da paz e da proteção da criação’”, como exortou Francisco, que incentiva as comunidades de origem e também os atores políticos, a sociedade civil, as organizações internacionais e as instituições religiosas a empreenderem ações coordenadas e promover também o direito “a não ter que migrar”: o direito a encontrar na própria pátria as condições que lhes permitam levar uma existência digna.
E o verbo “integrar diz respeito a um processo que se baseia no “mútuo reconhecimento da riqueza cultural do outro”, a integração apontada pelo Papa recordando que o Magistério da Igreja se faz com “políticas capazes de favorecer e privilegiar as reunificações familiares” e também com “programas específicos que favoreçam o encontro significativo com o próximo”. Também para a comunidade cristã, “a integração pacífica de pessoas de várias culturas é, de certo modo, um reflexo da sua catolicidade, pois a unidade que não anula as diversidades étnicas e culturais constitui uma dimensão da vida da Igreja que, no Espírito do Pentecostes, está aberta a cada um e deseja abraçar todos”. (cf http://www.cnbb.org.br/papa-francisco-orienta-acao-da-igreja-junto-aos-migrantes-a-partir-de-quatro-verbos/).
Em suma, acolher significa respeitar a dignidade de todo o migrante; proteger quer dizer salvaguardar a dignidade dos migrantes nos seus Estados de origem, oferecendo informações confiáveis ​​e verificadas antes da partida; promover postula que tal proteção deve depois continuar nos Estados de trânsito e destino com vista a conseguir uma vida digna; e integrar significa incentivar a cultura do encontro. E, em resultado disso, pode concluir-se que, se a migração é bem gerida, os migrantes dão uma contribuição positiva para a economia, a vida social e cultural e enriquecem as comunidades. A integração, como observou Dom Auza, não é um processo de assimilação que leva os migrantes a suprimir ou esquecer a sua identidade cultural. Ao invés, é um processo de “conhecimento recíproco” e de “abertura recíproca”.
O Observador Permanente da Santa Sé nas Nações Unidas enfatizou que o Pacto Global será “um ponto de referência internacional” para as boas práticas e a cooperação global na gestão da migração. O acordo, que entrará em vigor após o encontro da Cimeira de Marraquexe, previsto para dezembro será, em particular, um ponto de referência não só para os governos, mas também para as organizações não-governamentais. E Dom Auza, convicto de que só pode a responsabilidade compartilhada concretizar-se apenas se todos realizarem esforços, concluiu:
Seja qual for a nossa parte nesta responsabilidade compartilhada, a nossa resposta deve ser motivada principalmente pelo nosso profundo senso de comum humanidade pelo migrante e não por cálculos contingentes que poderiam violar sua dignidade humana”.
***
E os bispos mexicanos veem no migrante o rosto sofredor de Cristo. Com efeito, na Mensagem ao Povo de Deus, no final de sua Assembleia Plenária, os bispos recordam os deslocados hondurenhos e pedem às autoridades que mantenham os projetos de bem comum e justiça social apresentados na campanha eleitoral. E escrevem:
Descobrimos o rosto sofredor de Cristo em milhares de irmãos migrantes da América Central, deslocados em diferentes circunstâncias e que seguem em direção  aos Estados Unidos da América. Reconhecemos a ação responsável de algumas autoridades estaduais e municipais, que trataram eficazmente dessa emergência, mesmo se reconhecemos que muitas outras deixaram de lado a responsabilidade estabelecida na Lei Nacional de Migração.”.
“Como sociedade e Igreja – escrevem os prelados na mensagem – procuramos acolher com fraternidade aos migrantes enquanto  atravessavam a nossa terra, respondendo ao apelo do Papa Francisco para acolhê-los, protegê-los, promovê-los e integrá-los”.
***
Por seu turno, o Cardeal Secretário de Estado da Santa Sé põe o acento na dignidade humana e no compromisso com todos os possíveis interlocutores e diz que a tentação da sociedade de hoje é a de dar mais atenção à palavra “direitos”, deixando de lado a mais importante: a “humana”.
Na verdade, o Cardeal fez uma conferência, na tarde do passado dia 15, em Roma, durante o Simpósio Internacional da “Fundação Ratzinger – Bento XVI”, que teve como tema: “Direitos Fundamentais e conflito entre direitos”. O evento ocorreu por ocasião dos 70 anos da “Declaração Universal dos Direitos Humanos”, de 10 de dezembro de 1948.
Ali declarou que, se os direitos perderem a sua “unidade com a humanidade”, podem tornar-se meras expressões de grupos de interesse, com um conceito de pessoa humana separada de qualquer contexto social e antropológico, como o Papa afirmou por diversas vezes. Por isso, o Cardeal Parolin reiterou o compromisso da Igreja com todos e cada um dos homens e com o “homem na sua totalidade”. E, nas vésperas da sua viagem à África, o Secretário de Estado traçou um quadro dos interlocutores da Santa Sé no âmbito dos direitos humanos, afirmando:
Na reflexão da Igreja, não há direitos de um homem livre de qualquer elo de união ou um homem fragmentado nos vários aspetos sociais, económicos, religiosos, mas o homem na sua totalidade”.
Neste sentido, a Santa Sé não cessa de “levantara sua voz” em defesa da pessoa humana. E Parolin afirmou que a Igreja tem a “liberdade” de atingir “todos os possíveis interlocutores”, mesmo partindo das posições “mais longínquas” e de um aspeto fundamental: “o caráter universal dos direitos”. E o Cardeal Secretário de Estado recordou:
Notamos certa distância, seja entre algumas áreas do chamado Ocidente, seja em outros contextos culturais, como se o profundo significado de direitos humanos fosse possível contextualizar e aplicar apenas a alguns lugares e algumas épocas, que parecem, irremediavelmente, a caminho do ocaso”.
No entanto, como acrescentou, convém recuperar a dimensão objetiva dos direitos humanos, com base no reconhecimento: “A dignidade inerente a todos os membros da família humana, que é o fundamento da justiça, da liberdade e da paz no mundo” (Declaração de 1948).
O dignitário romano anotou que há também uma “crescente insensibilidade em relação às organizações internacionais e à diplomacia multilateral”, que, hoje, coloca em sério perigo a interlocução sobre os direitos humanos. E a Santa Sé entende que é “fundamental” favorecer um confronto mais amplo com todos os homens e com instituições “que trabalham para proteger os direitos humanos e promover o bem comum e o desenvolvimento social”. E recorrendo às palavras do Papa Francisco, disse:
Tal confronto impulsiona-nos, constantemente, a construir pontes com os diversos interlocutores, seja a nível multilateral e bilateral, seja dos Estados com as organizações não governamentais, com interlocutores religiosos, como com fiéis leigos e não crentes”.
Sobre o compromisso da Santa Sé com a defesa dos direitos específicos, o Cardeal Secretário de Estado Pietro Parolin pôs em evidência o direito à vida, desde o início até ao seu fim natural – obviamente tendo como subtexto o aborto e a eutanásia –, sobretudo face aos “novos desafios”, concernentes à biotecnia moderna e, às vezes, favorecidos por legislações mais permissivas, bem como por “questões delicadas”, como a manipulação genética, o tráfico de órgãos, a hibridização, os genomas humanos… E destacou o trabalho da Santa Sé na ONU no atinente ao compromisso de promover a eliminação da pena de morte, os direitos dos migrantes e refugiados.
Por outro lado, a Santa Sé participa também na definição dos chamados Pactos Globais sobre migrantes e refugiados, que serão adotados no decorrer do ano – uma referência ao trabalho de Dom Auza. E a este respeito, o Cardeal recordou que o Papa Francisco propôs “acolher, proteger, promover e integrar” os que deixam a sua pátria por causa das guerras, perseguições, fome, dificuldades económicas, na linha dum acolhimento dos migrantes que deve ser razoável e acompanhado pela capacidade dos governantes de integrar. No entanto, nem sempre a política tem demonstrado seu papel de “mediação social” para construir o bem comum.
No quadro do direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião, o Secretário de Estado recordou que a Santa Sé toma as devidas medidas para se evitar a marginalização da religião na sociedade civil, onde devem ser protegidos os direitos de todos os cidadãos, independentemente das suas crenças religiosas.
E o Cardeal Pietro Parolin concluiu a sua intervenção dizendo que, no mandamento do amor, podemos encontrar a ideia inspiradora dos direitos humanos. Na sua origem, há só compaixão e gratuitidade, que recebem, em termos cristãos, o nome de caridade.
***
É de recordar que, em 1963, o Papa São João XXIII, publicou a Encíclica Pacem in Terris sobre a Paz de todos os Povos na base da Verdade, Justiça, Caridade e Liberdade, na qual, partindo do reto ordenamento nos seres humanos (segundo o coração de Deus), enuncia os direitos e os deveres de cada homem, as bases das relações dos poderes públicos com os cidadãos e dos direitos e deveres dos cidadãos relativamente aos poderes públicos, bem como as relações entre as diversas comunidades políticas – tudo na linha do Evangelho e na leitura atenta dos sinais dos tempos.
***
Enfim, tantos motivos para reflexão e ação!
2018.11.16 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário