O advogado criminalista
brasileiro António Carlos de Almeida Castro, mais conhecido
pelo hipocorístico Kakay (foi a primeira palavra que disse em menino: perguntavam-lhe como se chamava
e respondia “Kakay”), nasceu em Patos,
Minas Gerais, em setembro de 1957 e tornou-se famoso pela prestação de serviços
advocatícios a políticos envolvidos em escândalos de corrupção no
país, como como o Mensalão e a Operação Lava-Jato, e por defender
celebridades.
Entre
2015 e 2016, então advogado de onze políticos e empresários investigados
pela Lava-Jato, afirmou, na tentativa de defender a reputação dos seus
clientes que o país vivia “sem a menor dúvida” um momento de “criminalização da riqueza”. De
Joaquim Barbosa, ex-ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), Kakay disse:
“Não deixa nenhum legado. Não
deixa um livro interessante; um acórdão profundo, uma tese. Nada. Eu, por
exemplo, não vou nem criticar mais ele. A partir de agora, eu me nego
até a falar dele.”.
***
Agora, após a eleição
de Jair Bolsonaro para a presidência do Brasil e da prevista ascensão de Sérgio
Moro (o juiz que prendeu Lula
da Silva) a Ministro da Justiça e da Segurança no próximo
Governo, aponta a síndrome da “criminalização
da política”.
No passado dia 28 de
novembro, o Diário de Notícias (DN) publicou uma
entrevista de Kakay com a jornalista Valentina Marcelino em torno desta síndrome que evidencia os excessos da “justiça-espetáculo” que tem dominado o país e que foi central nas
últimas eleições presidenciais. O advogado sustenta que o combate à corrupção
deve ser a prioridade de todos os governos, mas alerta para os perigos da
vitória de Bolsonaro e da nomeação de Moro para Ministro da Justiça.
Sobre a eventual responsabilização das suspeitas
de corrupção, generalizadas em relação aos políticos, pelos últimos resultados
eleitorais, entende que “o Brasil está a
passar por um momento muito grave, mas também muito interessante”. E explica:
“Vivemos nos últimos anos um momento
punitivo preocupante. A Operação Lava-Jato é uma operação séria que trouxe
muitas vantagens para o país porque descobriu um sistema capilarizado de
corrupção que ninguém poderia imaginar. […] Por outro lado,
essa operação fez que vivêssemos um momento de espetacularização do processo
penal brasileiro, o que caiu no gosto de grande parte da população. O combate à
corrupção, que é algo que todos nós queremos, acabou por criar uma divisão no
país.”.
Obviamente que o prestigiado advogado apoia a Operação Lava-Jato, mas, ao aperceber-se
dos muitos excessos que aprofundavam o predito momento punitivo, começou “a
fazer o debate sobre esses excessos” e a denunciar a construção da ideia
maniqueísta da sociedade brasileira: quem ousa criticar os excessos
da Lava-Jato é tachado como contrário ao combate à corrupção.
Em relação à alegada perceção de que metade do
Brasil acha que o PT (Partido dos Trabalhadores) organiza a corrupção, enquanto
outra metade acha que a justiça foi objeto de instrumentalização política para
prender Lula, o entrevistado julga que isso é verdade em parte, mas afirma que o combate à corrupção, travado do modo como o foi, criou “a criminalização da política como um todo”,
a partir de “uma sedimentação na
sociedade por parte de alguns formadores de opinião – organizada, nada foi por
acaso – para criminalizar a política”, a ponto de passar a ser mal visto na
sociedade aquele que fazia política, “mesmo que não tivesse sido processado”.
Revelando ter conseguido que não dessem início a processos criminais no STF
4 denúncias contra senadores, por falta de provas (só havia a palavra dos delatores), sustenta que “só a palavra dos
delatores não serve de prova” – uma questão que o STF terá de decidir (contra a simples delação). E explica o modo como as coisas começaram a avolumar-se na linha do
maniqueísmo social:
“Quando essa criminalização ficou
capilarizada na sociedade, parte da população fez um jogo maniqueísta, no qual
o Partido dos Trabalhadores (PT), o Partido da Socialdemocracia Brasileira
(PSDB), o Partido Progressista (PP) e outros eram retratados como partidos da
corrupção, em diferentes graus de exposição nos media. Com muito
mais ênfase para a criminalização do Partido dos Trabalhadores. Com isso,
começou a surgir um movimento daquilo que pretensamente representava o ‘novo’,
ou seja, o que não era político. Por exemplo, em Minas Gerais, que é um Estado
muito tradicional do Brasil, de onde saíram vários presidentes da República,
foi eleito um governador que nunca teve qualquer atividade política. O discurso
dele era: ‘eu não sou político!’.”.
E agora a eleição presidencial resultou na polarização do discurso
antipolítico, como explica:
“Temos como presidente da República um
cidadão que, embora fosse um político antigo (no 7.º mandato como deputado
federal), era um político medíocre. Ele capitalizou com essa nova tendência e
com um discurso que nunca ninguém podia imaginar nos dias de hoje que fosse
aceite numa sociedade democrática. Ele é contra as mulheres, contra os negros,
contra os direitos, contra a imprensa, a favor da tortura e uma série de outras
barbáries. Ele conseguiu polarizar o discurso antipolíticos, claramente ajudado
pelos efeitos da Lava-Jato.”.
Ora, como vinca, este momento de enfraquecimento da política é muito perigoso, “pois todo o sistema democrático passa pelo fortalecimento da política e
não o contrário”. E, admitindo que o sistema judicial brasileiro parece depender da delação
premiada (ou seja, do
testemunho do implicado que negoceia a redução da pena em troca de depoimentos
acusatórios para outrem), sustenta:
“A delação premiada é um instrumento
importante em qualquer sistema judicial, mas no Brasil ela foi completamente
deturpada. Faz lembrar a Itália. Quem fala na Operação Mãos Limpas como tendo
sido o que inspirou o juiz Sérgio Moro na Lava-Jato é porque não conhece o que
aconteceu no final da história na Itália. Houve 33 suicídios de pessoas
envolvidas na operação, por se sentirem injustiçadas. E, no final, desnudou-se
que grupos faziam delações para acabar com outros grupos criminosos.”.
Assim se chegou ao fortalecimento exagerado do poder judiciário, visto que
o poder legislativo enfraqueceu demasiado e o poder executivo está “extremamente
fragilizado”: os principais líderes são investigados, pois ninguém está acima
da lei, e Michel Temer aparece absolutamente desacreditado na sua interação com
a sociedade. Mas o advogado adverte:
“Estas investigações no Brasil dão-se sem um
prazo razoável, por um tempo indeterminado. Por isso, o poder legislativo
sangrou, não tendo atualmente a força que seria necessária para um equilíbrio
entre os poderes. […] Como não
existe vácuo de poder, passámos a ter um superpoder judiciário, um poder judiciário
ativista. […] Não é só o juiz Sérgio Moro ou o juiz Marcelo Bretas. É o Supremo
Tribunal Federal, inclusive ministros do próprio tribunal. Vivemos hoje uma era
do judiciário, o que é extremamente negativo para o país. E isso levou a esta
utilização indevida, a uma manipulação que chegou ao ponto de, nas últimas
eleições, fazer vencer um cidadão que não tem projeto nenhum para o Brasil.”.
***
A seguir, Almeida Castro pronuncia-se sobre o processo
contra Lula. Referindo que, em nome da
imparcialidade, “todos os cidadãos num
Estado democrático têm o direito de ser julgados por um juiz natural, definido
de acordo com as competências, antes de o crime ser cometido”, sustenta
que, no caso de Lula, “Moro não era o
juiz natural”. Mas, julgando-se à época “um juiz de jurisdição nacional, podendo julgar todos os casos que
achasse importantes”, avocou para si o processo do crime que foi imutado em
Guarujá, São Paulo – facto nulo, evidentemente. E, em recente entrevista, Moro disse que “jamais entraria
para a política” pois, “estaria a comprovar que tinha sido parcial no
julgamento”. Porém, assumiu o lado político e aceitou ser Ministro da Justiça
do futuro Governo, que ajudou, como juiz, a eleger.
Relativamente ao mérito técnico-científico de
Moro, o advogado sublinha:
“Sérgio Moro tem competência intelectual
para ser ministro da Justiça. Mas o facto de ele ter aceitado e ter sido
consultado ainda antes das eleições, quando era juiz no ativo, foi uma tapa na
cara do poder judiciário. Representou um descrédito absoluto para o judiciário.
[…] Apesar de Moro ter sido um juiz duro que, na minha opinião, cometeu uma
série de excessos na Lava-Jato, ele é muito mais qualificado do que o próprio
presidente Bolsonaro.”.
Todavia, admite que acaba por ser o lado mais
competente e moderado do governo, mas que entrou em incoerências e não
aguentará ser ministro durante muito tempo. E explica:
“Ele deveria já ter sido exonerado como juiz
desde o primeiro momento em que aceitou ser ministro, porque é proibida a
acumulação destas funções e ele à época pediu apenas o afastamento. Só veio
recentemente a formalizar a sua exoneração pela forte resistência que encontrou
em muitos setores da sociedade. Outro facto relevante é que, nas suas últimas
declarações, ele já veio contrariar uma série de posições do Presidente. Por
exemplo, enquanto o Presidente quer que toda a gente possa ter porte de arma de
forma indiscriminada, Moro limita esse direito a ter a arma apenas à casa de
cada um. Bolsonaro quer criminalizar movimentos sociais, Moro é contra.”.
Ao ser questionado sobre o que aconteceria em caso de embate entre ele e o
Presidente, “Moro disse que era subordinado ao Presidente e que teria de se
demitir”.
À questão se Moro pode fazer alguma coisa de positivo no Governo, Almeida Castro responde:
“Moro sempre foi muito rigoroso com os
políticos, mas veja-se, por exemplo, esta situação recente: foi nomeado para
seu colega de governo, para a Casa Civil, o deputado federal Onyx Lorenzoni,
que foi acusado e admitiu ter recebido ‘caixa dois’ (dinheiro ilegal para campanhas
eleitorais, facto pelo qual o Moro, enquanto juiz, determinou a prisão de
vários políticos). Perante isto, o que disse Moro? Que Lorenzoni tinha admitido
e pedido desculpa. Ele ‘criou’ um novo tipo de extinção de punibilidade no
processo penal brasileiro, que é o pedido de desculpas.”.
E à pergunta se acha que ele vai ser melhor político do que juiz, responde que
Moro, apesar de bem preparado, “não era um bom juiz”, pois “era muito parcial”. E acrescenta:
“Ele não está habituado a ser pressionado.
Está habituado a determinar, a mandar. Espero, para o bem do país, que ele seja
um bom político, mas pela experiência que já tive com ele como advogado algo me
diz que não será. Acho que não terá paciência para enfrentar o delicado jogo da
política.”.
Depois, aponta-lhe uma grande contradição:
“Até já disse uma coisa incrível: que não
tinha aceitado um cargo político, mas sim um cargo ‘predominantemente técnico’.
Ora, o Ministério da Justiça é o ministério número um do país. Talvez seja o
cargo mais político da República. Por exemplo, Renan Calheiros (do MDB) pode
vir a ser o próximo Presidente do Senado e ele tem 16 processos da Lava-Jato.
Mas Moro vai ter de ter relacionamento institucional com ele.”.
Mas o mais grave “são as ideias de profundo retrocesso do processo penal”,
que Moro pretende levar à discussão no Congresso. E o advogado exemplifica com
a tentativa de alteração da Lei de Execução Penal, uma lei muito boa, que
prevê, entre outras coisas, a progressão da pena. E diz:
“Querem acabar com isso. São admiradores do
sistema americano, que é um dos piores do mundo. O Brasil tem a terceira maior
população de reclusos do mundo: 750 mil presos em condições sub-humanas. Recentemente, advogados de Portugal – com os quais tenho a honra de
trabalhar – conseguiram uma liminar em habeas corpus, perante o
Tribunal Europeu de Direitos Humanos, para impedir a extradição para o Brasil
de um cidadão português devido à miserabilidade dos presídios brasileiros. Uma
vergonha para o Estado brasileiro.”.
A seguir, acusa: “no judiciário do Moro, a prisão é feita para
investigação, antes da sentença, antes da culpa formada, como última ratio”. E aponta que o STF afastou o princípio da presunção de inocência,
um direito insculpido na Constituição Federal, em que está expresso que “a prisão só pode dar-se após o trânsito em
julgado”. Ora é preocupante a tendência de retrocesso do processo penal,
que será a possível gestão de Moro alinhada com ideias do Presidente eleito. É
certo que o juiz diz não concordar com alguns dos retrocessos propostos, “mas
esquece que não pode estabelecer isso por decreto”, tendo de “dialogar com a
sociedade brasileira, com o Congresso Nacional”, e que algumas medidas terão de
passar por mudanças constitucionais.
***
Em todo o caso, o advogado confia que há
instituições que podem impedir ou condicionar a ação de Bolsonaro, pois quem
está habituado a
mandar cumprir “não tem ideia do que é
ter de conversar com o Congresso para fazer passar certas medidas”: tem de
negociar, até porque estas eleições dividiram o Brasil de forma muito violenta.
E até agora “não se conhece nenhum nome para o governo que dê um sinal de
credibilidade”, sendo Moro o único “grande nome”, uma pessoa preparada, “mas que não vai poder fazer as ‘maldades’
que diz que vai fazer, apenas com a caneta de juiz”. Mas foi essa sociedade brasileira que votou
maioritariamente em Bolsonaro, em alguém que disse coisas como: negros “não
fazem nada” e não servem “nem para procriar”; só mulheres bonitas “merecem” ser
violadas; o principal erro da ditadura no Brasil “foi torturar e não matar”; “filhos?
Antes mortos que gays”...
Ora, Castro interroga-se se é isto que as pessoas
querem mesmo. E insiste:
“O pior é que ele não mentiu quando disse
isso. Não escondeu quando disse que era fascista, racista, que não gostava de
homossexuais, que apoiava a tortura. A sociedade votou nele sabendo o que ele
defendia. Mas eu não acredito que a sociedade brasileira, na sua maioria,
defenda, de facto, estas ideias.”.
E interpreta o que a sociedade brasileira sentiu e fez:
“A sociedade brasileira fez um voto de
protesto. Um protesto contra os políticos, contra a corrupção, contra o Partido
dos Trabalhadores (PT), relacionado com a Lava-Jato. Foi uma onda. Mas, quando
as coisas começarem a ser colocadas para discussão, acredito que não apoiem
todas as ideias de Bolsonaro. Por exemplo, como ele disse na campanha, colocar
armas nas mãos de crianças – afirmou que o filho dele pegava em armas desde os
5 anos – pregando terror, não vai ser bem recebido pela sociedade. Qual é a mãe
que vai deixar o filho ter uma arma aos 5 anos? A executar o que este Governo
prometeu na campanha vão ser fechadas todas as livrarias do país. Será um
momento de obscurantismo. Como cidadãos resta-nos resistir.”.
Confessando que Bolsonaro não é comparável com nenhum
outro líder, frisa:
“Não existe ninguém atrasado como ele. Para
se ter uma ideia, recentemente a Marine Le Pen veio criticá-lo, como sendo
muito à direita. Está tudo dito!”.
Questionado sobre o modo como vê a realidade
portuguesa, a pretexto da recente tomada de posse da nossa nova
Procuradora-Geral da República, que anunciou como principal prioridade o
combate à corrupção, o prestigiado causídico declarou:
“Quando se olha para o Brasil, com a
repercussão que tem em Portugal pela afinidade entre os dois países, e se vê um
fenómeno de proposta de combate à corrupção crescer ao ponto de eleger
presidente da República um obscuro deputado federal sem proposta nenhuma, é
óbvio que isso começa a dar os seus frutos. O combate à corrupção tem de ser a prioridade
de qualquer governo, mas jamais esse combate pode ser a única prioridade. E
sempre o combate tem de ser feito respeitando os princípios das garantias
constitucionais.”
E acrescenta que, enquanto advogado, não permite que esse combate se faça
passando por cima dos direitos e garantias individuais; defende o combate à
corrupção tal como os que fazem parte da equipa da Operação Lava-Jato, mas
pretende que ocorra dentro da preservação dos direitos e com o respeito pela
Constituição. Com efeito, procedendo-se dessa forma, até pode demorar um pouco
mais, mas, diz, “sairemos como um país mais justo e mais solidário”, ao invés, “seremos
um país obscurantista”. Na verdade, o
combate à corrupção não é a única prioridade. Há outros valores a preservar
e a incrementar, como: a educação, a saúde, a proteção social, a liberdade, a
segurança, em nome da dignidade da pessoa humana…
Porém, verificando ser essa a tendência do
combate cego à corrupção, avisa:
“Podemos ter um retrocesso de cem anos nas
garantias que conquistámos. E não fomos só nós, brasileiros. Foi também na
Europa, foi toda uma geração. Mas eu acredito que a sociedade brasileira vai
acordar, e mais cedo do que se pode pensar. Quando começar a notar que esses
arroubos contra os direitos constituídos das minorias não era só uma questão de
campanha, mas que realmente vão tentar introduzir esses retrocessos, duvido de que
a sociedade brasileira se veja representada.”.
E, se isso acontecer, se houver esse retrocesso,
diz lisonjeiramente que “sempre nos resta
Portugal”, mas que o Brasil vai continuar a trabalhar para não ter um
retrocesso nas garantias dos cidadãos, estribado no facto de o país ter um
poder judiciário estável, vindo o próprio sistema a verificar que os abusos
estão a instalar-se. Na verdade, o atual presidente do STF já declarou que “está na hora de o poder judiciário deixar de
ter protagonismo”. E o próprio Almeida Castro diz ter conversado com muitas pessoas
que acreditam que “o poder judiciário
brasileiro não vai permitir que os abusos se consolidem”.
***
Oxalá o Brasil saiba travar os arroubos dum ditador estupidificado e
estupidificante – rodeado de delfins e de eminências pardas. E a democracia
subsista. Prender para investigar? Não, por certo.
2018.11.30 –
Louro de Carvalho
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