sexta-feira, 30 de novembro de 2018

No Brasil: da criminalização da riqueza à criminalização da política…


O advogado criminalista brasileiro António Carlos de Almeida Castro, mais conhecido pelo hipocorístico Kakay (foi a primeira palavra que disse em menino: perguntavam-lhe como se chamava e respondia “Kakay), nasceu em Patos, Minas Gerais, em setembro de 1957 e tornou-se famoso pela prestação de serviços advocatícios a políticos envolvidos em escândalos de corrupção no país, como como o Mensalão e a Operação Lava-Jato, e por defender celebridades.
Entre 2015 e 2016, então advogado de onze políticos e empresários investigados pela Lava-Jato, afirmou, na tentativa de defender a reputação dos seus clientes que o país vivia “sem a menor dúvida” um momento de “criminalização da riqueza”. De Joaquim Barbosa, ex-ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), Kakay disse:
Não deixa nenhum legado. Não deixa um livro interessante; um acórdão profundo, uma tese. Nada. Eu, por exemplo, não vou nem criticar mais ele. A partir de agora, eu me nego até a falar dele.”.
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Agora, após a eleição de Jair Bolsonaro para a presidência do Brasil e da prevista ascensão de Sérgio Moro (o juiz que prendeu Lula da Silva) a Ministro da Justiça e da Segurança no próximo Governo, aponta a síndrome da “criminalização da política”.
No passado dia 28 de novembro, o Diário de Notícias (DN) publicou uma entrevista de Kakay com a jornalista Valentina Marcelino em torno desta síndrome que evidencia os excessos da “justiça-espetáculo” que tem dominado o país e que foi central nas últimas eleições presidenciais. O advogado sustenta que o combate à corrupção deve ser a prioridade de todos os governos, mas alerta para os perigos da vitória de Bolsonaro e da nomeação de Moro para Ministro da Justiça.
Sobre a eventual responsabilização das suspeitas de corrupção, generalizadas em relação aos políticos, pelos últimos resultados eleitorais, entende que “o Brasil está a passar por um momento muito grave, mas também muito interessante”. E explica:
Vivemos nos últimos anos um momento punitivo preocupante. A Operação Lava-Jato é uma operação séria que trouxe muitas vantagens para o país porque descobriu um sistema capilarizado de corrupção que ninguém poderia imaginar. […] Por outro lado, essa operação fez que vivêssemos um momento de espetacularização do processo penal brasileiro, o que caiu no gosto de grande parte da população. O combate à corrupção, que é algo que todos nós queremos, acabou por criar uma divisão no país.”.
Obviamente que o prestigiado advogado apoia a Operação Lava-Jato, mas, ao aperceber-se dos muitos excessos que aprofundavam o predito momento punitivo, começou “a fazer o debate sobre esses excessos” e a denunciar a construção da ideia maniqueísta da sociedade brasileira: quem ousa criticar os excessos da Lava-Jato é tachado como contrário ao combate à corrupção.
Em relação à alegada perceção de que metade do Brasil acha que o PT (Partido dos Trabalhadores) organiza a corrupção, enquanto outra metade acha que a justiça foi objeto de instrumentalização política para prender Lula, o entrevistado julga que isso é verdade em parte, mas afirma que o combate à corrupção, travado do modo como o foi, criou “a criminalização da política como um todo”, a partir de “uma sedimentação na sociedade por parte de alguns formadores de opinião – organizada, nada foi por acaso – para criminalizar a política”, a ponto de passar a ser mal visto na sociedade aquele que fazia política, “mesmo que não tivesse sido processado”.
Revelando ter conseguido que não dessem início a processos criminais no STF 4 denúncias contra senadores, por falta de provas (só havia a palavra dos delatores), sustenta que “só a palavra dos delatores não serve de prova” – uma questão que o STF terá de decidir (contra a simples delação). E explica o modo como as coisas começaram a avolumar-se na linha do maniqueísmo social:
Quando essa criminalização ficou capilarizada na sociedade, parte da população fez um jogo maniqueísta, no qual o Partido dos Trabalhadores (PT), o Partido da Socialdemocracia Brasileira (PSDB), o Partido Progressista (PP) e outros eram retratados como partidos da corrupção, em diferentes graus de exposição nos media. Com muito mais ênfase para a criminalização do Partido dos Trabalhadores. Com isso, começou a surgir um movimento daquilo que pretensamente representava o ‘novo’, ou seja, o que não era político. Por exemplo, em Minas Gerais, que é um Estado muito tradicional do Brasil, de onde saíram vários presidentes da República, foi eleito um governador que nunca teve qualquer atividade política. O discurso dele era: ‘eu não sou político!’.”.
E agora a eleição presidencial resultou na polarização do discurso antipolítico, como explica:
Temos como presidente da República um cidadão que, embora fosse um político antigo (no 7.º mandato como deputado federal), era um político medíocre. Ele capitalizou com essa nova tendência e com um discurso que nunca ninguém podia imaginar nos dias de hoje que fosse aceite numa sociedade democrática. Ele é contra as mulheres, contra os negros, contra os direitos, contra a imprensa, a favor da tortura e uma série de outras barbáries. Ele conseguiu polarizar o discurso antipolíticos, claramente ajudado pelos efeitos da Lava-Jato.”.
Ora, como vinca, este momento de enfraquecimento da política é muito perigoso, “pois todo o sistema democrático passa pelo fortalecimento da política e não o contrário”. E, admitindo que o sistema judicial brasileiro parece depender da delação premiada (ou seja, do testemunho do implicado que negoceia a redução da pena em troca de depoimentos acusatórios para outrem), sustenta:
A delação premiada é um instrumento importante em qualquer sistema judicial, mas no Brasil ela foi completamente deturpada. Faz lembrar a Itália. Quem fala na Operação Mãos Limpas como tendo sido o que inspirou o juiz Sérgio Moro na Lava-Jato é porque não conhece o que aconteceu no final da história na Itália. Houve 33 suicídios de pessoas envolvidas na operação, por se sentirem injustiçadas. E, no final, desnudou-se que grupos faziam delações para acabar com outros grupos criminosos.”.
Assim se chegou ao fortalecimento exagerado do poder judiciário, visto que o poder legislativo enfraqueceu demasiado e o poder executivo está “extremamente fragilizado”: os principais líderes são investigados, pois ninguém está acima da lei, e Michel Temer aparece absolutamente desacreditado na sua interação com a sociedade. Mas o advogado adverte:
Estas investigações no Brasil dão-se sem um prazo razoável, por um tempo indeterminado. Por isso, o poder legislativo sangrou, não tendo atualmente a força que seria necessária para um equilíbrio entre os poderes. […] Como não existe vácuo de poder, passámos a ter um superpoder judiciário, um poder judiciário ativista. […] Não é só o juiz Sérgio Moro ou o juiz Marcelo Bretas. É o Supremo Tribunal Federal, inclusive ministros do próprio tribunal. Vivemos hoje uma era do judiciário, o que é extremamente negativo para o país. E isso levou a esta utilização indevida, a uma manipulação que chegou ao ponto de, nas últimas eleições, fazer vencer um cidadão que não tem projeto nenhum para o Brasil.”.
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A seguir, Almeida Castro pronuncia-se sobre o processo contra Lula. Referindo que, em nome da imparcialidade, “todos os cidadãos num Estado democrático têm o direito de ser julgados por um juiz natural, definido de acordo com as competências, antes de o crime ser cometido”, sustenta que, no caso de Lula, “Moro não era o juiz natural”. Mas, julgando-se à época “um juiz de jurisdição nacional, podendo julgar todos os casos que achasse importantes”, avocou para si o processo do crime que foi imutado em Guarujá, São Paulo – facto nulo, evidentemente. E, em recente entrevista, Moro disse que “jamais entraria para a política” pois, “estaria a comprovar que tinha sido parcial no julgamento”. Porém, assumiu o lado político e aceitou ser Ministro da Justiça do futuro Governo, que ajudou, como juiz, a eleger.
Relativamente ao mérito técnico-científico de Moro, o advogado sublinha:
Sérgio Moro tem competência intelectual para ser ministro da Justiça. Mas o facto de ele ter aceitado e ter sido consultado ainda antes das eleições, quando era juiz no ativo, foi uma tapa na cara do poder judiciário. Representou um descrédito absoluto para o judiciário. […] Apesar de Moro ter sido um juiz duro que, na minha opinião, cometeu uma série de excessos na Lava-Jato, ele é muito mais qualificado do que o próprio presidente Bolsonaro.”.
Todavia, admite que acaba por ser o lado mais competente e moderado do governo, mas que entrou em incoerências e não aguentará ser ministro durante muito tempo. E explica:
Ele deveria já ter sido exonerado como juiz desde o primeiro momento em que aceitou ser ministro, porque é proibida a acumulação destas funções e ele à época pediu apenas o afastamento. Só veio recentemente a formalizar a sua exoneração pela forte resistência que encontrou em muitos setores da sociedade. Outro facto relevante é que, nas suas últimas declarações, ele já veio contrariar uma série de posições do Presidente. Por exemplo, enquanto o Presidente quer que toda a gente possa ter porte de arma de forma indiscriminada, Moro limita esse direito a ter a arma apenas à casa de cada um. Bolsonaro quer criminalizar movimentos sociais, Moro é contra.”.
Ao ser questionado sobre o que aconteceria em caso de embate entre ele e o Presidente, “Moro disse que era subordinado ao Presidente e que teria de se demitir”.
À questão se Moro pode fazer alguma coisa de positivo no Governo, Almeida Castro responde:
Moro sempre foi muito rigoroso com os políticos, mas veja-se, por exemplo, esta situação recente: foi nomeado para seu colega de governo, para a Casa Civil, o deputado federal Onyx Lorenzoni, que foi acusado e admitiu ter recebido ‘caixa dois’ (dinheiro ilegal para campanhas eleitorais, facto pelo qual o Moro, enquanto juiz, determinou a prisão de vários políticos). Perante isto, o que disse Moro? Que Lorenzoni tinha admitido e pedido desculpa. Ele ‘criou’ um novo tipo de extinção de punibilidade no processo penal brasileiro, que é o pedido de desculpas.”.
E à pergunta se acha que ele vai ser melhor político do que juiz, responde que Moro, apesar de bem preparado, “não era um bom juiz”, pois “era muito parcial”. E acrescenta:
Ele não está habituado a ser pressionado. Está habituado a determinar, a mandar. Espero, para o bem do país, que ele seja um bom político, mas pela experiência que já tive com ele como advogado algo me diz que não será. Acho que não terá paciência para enfrentar o delicado jogo da política.”.
Depois, aponta-lhe uma grande contradição:
Até já disse uma coisa incrível: que não tinha aceitado um cargo político, mas sim um cargo ‘predominantemente técnico’. Ora, o Ministério da Justiça é o ministério número um do país. Talvez seja o cargo mais político da República. Por exemplo, Renan Calheiros (do MDB) pode vir a ser o próximo Presidente do Senado e ele tem 16 processos da Lava-Jato. Mas Moro vai ter de ter relacionamento institucional com ele.”.
Mas o mais grave “são as ideias de profundo retrocesso do processo penal”, que Moro pretende levar à discussão no Congresso. E o advogado exemplifica com a tentativa de alteração da Lei de Execução Penal, uma lei muito boa, que prevê, entre outras coisas, a progressão da pena. E diz:
Querem acabar com isso. São admiradores do sistema americano, que é um dos piores do mundo. O Brasil tem a terceira maior população de reclusos do mundo: 750 mil presos em condições sub-humanas. Recentemente, advogados de Portugal – com os quais tenho a honra de trabalhar – conseguiram uma liminar em habeas corpus, perante o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, para impedir a extradição para o Brasil de um cidadão português devido à miserabilidade dos presídios brasileiros. Uma vergonha para o Estado brasileiro.”.
A seguir, acusa: “no judiciário do Moro, a prisão é feita para investigação, antes da sentença, antes da culpa formada, como última ratio. E aponta que o STF afastou o princípio da presunção de inocência, um direito insculpido na Constituição Federal, em que está expresso que “a prisão só pode dar-se após o trânsito em julgado”. Ora é preocupante a tendência de retrocesso do processo penal, que será a possível gestão de Moro alinhada com ideias do Presidente eleito. É certo que o juiz diz não concordar com alguns dos retrocessos propostos, “mas esquece que não pode estabelecer isso por decreto”, tendo de “dialogar com a sociedade brasileira, com o Congresso Nacional”, e que algumas medidas terão de passar por mudanças constitucionais.
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Em todo o caso, o advogado confia que há instituições que podem impedir ou condicionar a ação de Bolsonaro, pois quem está habituado a mandar cumprir “não tem ideia do que é ter de conversar com o Congresso para fazer passar certas medidas”: tem de negociar, até porque estas eleições dividiram o Brasil de forma muito violenta. E até agora “não se conhece nenhum nome para o governo que dê um sinal de credibilidade”, sendo Moro o único “grande nome”, uma pessoa preparada, “mas que não vai poder fazer as ‘maldades’ que diz que vai fazer, apenas com a caneta de juiz”. Mas foi essa sociedade brasileira que votou maioritariamente em Bolsonaro, em alguém que disse coisas como: negros “não fazem nada” e não servem “nem para procriar”; só mulheres bonitas “merecem” ser violadas; o principal erro da ditadura no Brasil “foi torturar e não matar”; “filhos? Antes mortos que gays”...
Ora, Castro interroga-se se é isto que as pessoas querem mesmo. E insiste:
O pior é que ele não mentiu quando disse isso. Não escondeu quando disse que era fascista, racista, que não gostava de homossexuais, que apoiava a tortura. A sociedade votou nele sabendo o que ele defendia. Mas eu não acredito que a sociedade brasileira, na sua maioria, defenda, de facto, estas ideias.”.
E interpreta o que a sociedade brasileira sentiu e fez:
A sociedade brasileira fez um voto de protesto. Um protesto contra os políticos, contra a corrupção, contra o Partido dos Trabalhadores (PT), relacionado com a Lava-Jato. Foi uma onda. Mas, quando as coisas começarem a ser colocadas para discussão, acredito que não apoiem todas as ideias de Bolsonaro. Por exemplo, como ele disse na campanha, colocar armas nas mãos de crianças – afirmou que o filho dele pegava em armas desde os 5 anos – pregando terror, não vai ser bem recebido pela sociedade. Qual é a mãe que vai deixar o filho ter uma arma aos 5 anos? A executar o que este Governo prometeu na campanha vão ser fechadas todas as livrarias do país. Será um momento de obscurantismo. Como cidadãos resta-nos resistir.”.
Confessando que Bolsonaro não é comparável com nenhum outro líder, frisa:
Não existe ninguém atrasado como ele. Para se ter uma ideia, recentemente a Marine Le Pen veio criticá-lo, como sendo muito à direita. Está tudo dito!”.
Questionado sobre o modo como vê a realidade portuguesa, a pretexto da recente tomada de posse da nossa nova Procuradora-Geral da República, que anunciou como principal prioridade o combate à corrupção, o prestigiado causídico declarou:
Quando se olha para o Brasil, com a repercussão que tem em Portugal pela afinidade entre os dois países, e se vê um fenómeno de proposta de combate à corrupção crescer ao ponto de eleger presidente da República um obscuro deputado federal sem proposta nenhuma, é óbvio que isso começa a dar os seus frutos. O combate à corrupção tem de ser a prioridade de qualquer governo, mas jamais esse combate pode ser a única prioridade. E sempre o combate tem de ser feito respeitando os princípios das garantias constitucionais.
E acrescenta que, enquanto advogado, não permite que esse combate se faça passando por cima dos direitos e garantias individuais; defende o combate à corrupção tal como os que fazem parte da equipa da Operação Lava-Jato, mas pretende que ocorra dentro da preservação dos direitos e com o respeito pela Constituição. Com efeito, procedendo-se dessa forma, até pode demorar um pouco mais, mas, diz, “sairemos como um país mais justo e mais solidário”, ao invés, “seremos um país obscurantista”. Na verdade, o combate à corrupção não é a única prioridade. Há outros valores a preservar e a incrementar, como: a educação, a saúde, a proteção social, a liberdade, a segurança, em nome da dignidade da pessoa humana…
Porém, verificando ser essa a tendência do combate cego à corrupção, avisa:
Podemos ter um retrocesso de cem anos nas garantias que conquistámos. E não fomos só nós, brasileiros. Foi também na Europa, foi toda uma geração. Mas eu acredito que a sociedade brasileira vai acordar, e mais cedo do que se pode pensar. Quando começar a notar que esses arroubos contra os direitos constituídos das minorias não era só uma questão de campanha, mas que realmente vão tentar introduzir esses retrocessos, duvido de que a sociedade brasileira se veja representada.”.
E, se isso acontecer, se houver esse retrocesso, diz lisonjeiramente que “sempre nos resta Portugal”, mas que o Brasil vai continuar a trabalhar para não ter um retrocesso nas garantias dos cidadãos, estribado no facto de o país ter um poder judiciário estável, vindo o próprio sistema a verificar que os abusos estão a instalar-se. Na verdade, o atual presidente do STF já declarou que “está na hora de o poder judiciário deixar de ter protagonismo”. E o próprio Almeida Castro diz ter conversado com muitas pessoas que acreditam que “o poder judiciário brasileiro não vai permitir que os abusos se consolidem”.
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Oxalá o Brasil saiba travar os arroubos dum ditador estupidificado e estupidificante – rodeado de delfins e de eminências pardas. E a democracia subsista. Prender para investigar? Não, por certo.
2018.11.30 – Louro de Carvalho

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