Realizou-se
esta quinta-feira, 8 de novembro, na Pontifícia Universidade Urbaniana, em
Roma, a Conferência internacional sob o tema “A gestão de um bem comum: acesso à água potável para todos” –
evento organizado pelo Dicastério para o
Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, em colaboração com as
embaixadas junto da Santa Sé de França, Itália, Mónaco e Estados Unidos.
O Papa
enviou, a 7 de novembro, aos participantes na Conferência uma lancinante mensagem,
em que define como uma “enorme vergonha
para a humanidade do século XXI” os nossos irmãos adoecerem e morrerem em
decorrência da falta de água ou consumo de água insalubre. E explicita que, enquanto consensualmente se
reconhece que “a água é essencial
para a vida”, em muitas partes do mundo, nossos irmãos e irmãs “não
podem ter uma vida decente precisamente por causa da falta de acesso a água
limpa”. E são as estatísticas dramáticas da sede, sobretudo as atinentes à
situação dos que adoecem e morrem de água contaminada, que induzem a severa conclusão
de que estes factos são uma vergonha para a humanidade do século XXI.
Segundo
Francisco, a falta de água potável e o consumo de água insalubre ocorrem nas
mesmas regiões onde não faltam armas e munições. Diz o Pontífice a respeito
deste tópico:
“Infelizmente,
em muitos dos países onde a população não tem acesso regular à água potável,
não faltam suprimentos de armas e munições que continuam a deteriorar a
situação! A corrupção e os interesses de uma economia que exclui e mata,
muitas vezes, prevalecem sobre os esforços que, em solidariedade, devem
garantir o acesso à água.”.
Infere, como
é recorrente no seu discurso humanitário, que na origem destes desconcertos
está a corrupção e os interesses economicistas mortais, prevalecendo sobre os
ditames da boa convivência, cooperação e solidariedade em prol do bem-estar de
todos e de cada um.
O Pontífice
recorda o empenho da Santa Sé e da Igreja em prol do acesso à água potável para
todos – empenho que se manifesta em múltiplas iniciativas, desde a realização
de infraestruturas à assistência às populações em perigo, sempre evocando as
referências éticas e os princípios contidos no Evangelho numa visão positiva da
antropologia. E explana:
“Já
propus algumas considerações sobre este assunto na Encíclica Laudato si’ e na recente Mensagem
por ocasião do Dia de Oração pelo Cuidado
da Criação. Espero que
aqueles que intervêm e participam nesta Conferência possam compartilhar em seus
respetivos campos profissionais e políticos a necessária urgência, vontade e
determinação. A Santa Sé e a Igreja estão comprometidas no acesso à água
potável para todos. Este compromisso manifesta-se em muitas iniciativas,
como a criação de infraestruturas, formação, advocacia, assistência
a populações ameaçadas cujo abastecimento de água está comprometido, incluindo
migrantes, e o apelo ao conjunto de referências e princípios éticos que brotam
do Evangelho e de uma antropologia saudável.”.
Água é direito, não mercadoria – proclama o Bispo de Roma, sustentado numa adequada
antropologia em que se reconhece o acesso à água potável como direito humano,
portanto incompatível com a conceção da água como uma qualquer mercadoria. Assim,
acentua:
“Uma
antropologia adequada é, na verdade, um pré-requisito indispensável para
estilos de vida responsáveis e solidariedade e para a verdadeira ecologia (vd Laudato si’, 118.122), bem como para o
reconhecimento do acesso à água potável como um direito que flui da dignidade
humana e, portanto, incompatível com o conceito de água como qualquer produto”.
Convicto de
que são os valores e princípios do Evangelho que devem orientar o compromisso
concreto de cada um para a realização do bem comum a toda a família humana
(cf Evangelii Gaudium, 179-183), o Pontífice sublinha que, do ponto de vista da fé radicada
nas Escrituras, em cada homem sedento se reconhece a própria imagem de Deus,
pelo que não pode ignorar-se a dimensão espiritual e cultural da água em prol
da comunidade. E frisa, a este respeito:
“Do
ponto de vista da fé, em cada homem sedento percebemos a mesma imagem de Deus,
como lemos no Evangelho de Mateus: “Eu
estava com sede e destes-me de beber” (Mt 25,42). Esta Conferência oportunamente envolve
expoentes de diferentes credos e culturas; a dupla dimensão espiritual e
cultural da água nunca deve ser negligenciada, pois é fundamental moldar o
tecido social, a coexistência e a organização comunitária.”
O Santo Padre,
por fim, convida os participantes a meditarem sobre a simbologia da água nas
principais tradições religiosas, exortando-os à contemplação deste recurso,
como São Francisco de Assis, que encarou a água como “multo utile et humile
et Preziosa et casta”, e ao
compromisso concreto para uma melhor gestão deste recurso. E implorou a bênção
do Altíssimo Criador para cada um e suas famílias, nas iniciativas voltadas
para uma melhor gestão da água.
Em suma, são
as estatísticas da
sede que exigem vontade e determinação e todos os esforços institucionais,
organizacionais, educacionais, tecnológicos e financeiros.
***
Também Manuela Silva, membro da Rede Cuidar da Casa Comum, aborda um outro problema
conexo com a gestão da água, ora em debate no país, destacando a
responsabilidade dos políticos, por vezes, fechados numa funesta “visão míope”.
Não é aqui o aproveitamento da água que está em causa, mas a
defesa da orla costeira contra as investidas do mar, que eleva o seu nível e
põe a sua água em fúria prejudicando o litoral.
Disse à agência Ecclesia a ativista que a intenção do Governo em se
debruçar sobre o problema da orla costeira portuguesa se coloca “praticamente em todo o litoral do continente
europeu” e não só na orla costeira de Caminha a Espinho.
Este insigne membro da Rede ‘Cuidar da Casa Comum’, que reúne
várias instituições e organizações, nomeadamente cristãs, no âmbito da causa
ambiental e ecológica, contextualizou:
“Nós estamos numa fase marcada por grandes
alterações climáticas e tudo isso tem que ser devidamente acomodado nas
decisões que implicam o futuro coletivo”.
Depois, apontou o dedo:
“Muitas vezes, os nossos decisores, por
razões várias e, por vezes, por interesses político-partidários do momento,
acabam por se deixar vencer por uma visão míope”.
No dia 12 de novembro vai ser colocado para consulta pública
por 30 dias um novo plano de ordenamento da orla costeira, do Ministério do
Ambiente, orientado para a proteção de mais de 122 quilómetros da costa
portuguesa. Este plano de ordenamento da orla costeira, da responsabilidade da Agência Portuguesa do Ambiente, abrange
9 municípios entre Caminha e Espinho e prevê a demolição de pelo menos 34
edifícios, a maior parte deles ligados à área da restauração e do comércio. O seu
objetivo é limitar e mesmo proibir a construção de casas nas zonas junto ao mar
e fazer recuar de forma planeada pelo menos 14 aglomerados atualmente colocados
em zonas consideradas mais críticas, pois estão em causa habitações em risco,
mais vulneráveis a condições climatéricas adversas ou inundações, e outras que foram
ilegalmente edificadas em zonas protegidas, como dunas ou arribas.
No novo plano para a orla costeira estão identificadas pelo
menos 46 áreas mais sensíveis e 13 de risco especialmente elevado, mais
concretamente nas localidades de Moledo e de Ofir.
O Governo prevê investir neste novo plano de ordenamento da
orla costeira uma verba de cerca de 470 milhões de euros, distribuída pelos
próximos 10 anos. Mas, para Manuela Silva, para lá das intervenções a fazer, é
essencial “acautelar devidamente os interesses
das pessoas que vão ser afetadas, positiva ou negativamente por esta medida”,
pois, como salienta:
“Trata-se de problema muitíssimo difícil de
resolver, porque, em alguns casos, o processo implica a demolição de património
que está instalado há vários anos e que inclusivamente constitui para as
pessoas que lá habitam uma fonte de rendimento, de trabalho, de emprego”.
A antiga presidente da Comissão Justiça e Paz, da Igreja
Católica em Portugal, saúda neste sentido a colocação de todo este processo em apreciação
pública e espera que “haja uma grande
adesão a esse debate, designadamente por parte das entidades envolvidas, sejam
as autarquias sejam os atores económicos da zona afetada, com a consciência de
que a decisão que venha a ser tomada tem que contemplar um horizonte de largo
prazo”.
Têm vários municípios abrangidos por este projeto tecido
críticas a esta estratégia, preocupados com a forma como se prevê a colmatação
dos espaços vazios que vão ser deixados e com o modo de fazer a adaptação do
edificado. Um dos edifícios a demolir é o Edifício
Transparente, no Porto, construído em 2001 no âmbito da iniciativa Porto – Capital Europeia da Cultura, um
projeto na altura orçado em 7,5 milhões de euros.
Segundo Manuela Silva, este caso só reforça a ideia de que
nem sempre há, por parte do poder político, uma visão de “futuro”, também
quanto à promoção de projetos desta envergadura.
***
Todas estas matérias estão contempladas doutrinal
e pastoralmente na Laudato si’, cuja
difusão está a ser bloqueada, pelo que o Cardeal Peter Kodwo Appiah Turkson, prefeito do Dicastério para o Desenvolvimento Humano
Integral, lança
o apelo à colegialidade para ultrapassar esses bloqueios.
Tal apelo surge no contexto da apresentação, na Universidade Gregoriana, do segundo
curso do Joint Diploma em Ecologia
Integral inspirado na Laudato si’.
“Apóstolos
da Laudato si’ e do Evangelho da Criação” são expressões de Turkson
ao definir os participantes do predito curso – um percurso de estudos
coordenado por dez universidades e ateneus pontifícios de Roma para promover o
cuidado da Criação como o Papa indicou
na encíclica.
O Cardeal
evidenciou a urgência de intervir nas temáticas ambientais, pois as promessas
dos Acordos de Paris de 2005 (Cop 21) não foram
mantidas; falou do grande interesse do mundo, não só católico, pela Laudato
si’; e exortou a Igreja a
uma maior colegialidade na difusão do texto do Papa, dizendo:
“A rede da Igreja Católica é muito admirada, graças à qual as palavras do
Papa conseguem chegar nos lugares mais remotos do planeta, mas às vezes, por
causa de alguns sacerdotes ou bispos, assistimos a um bloqueio do afluxo das
informações e dos conhecimentos”.
Durante a
apresentação, foram entregues os diplomas aos participantes da 1.ª edição do
ano académico de 2017-2018, estudantes, leigos e empresários provenientes de
vários países.
O Joint Diploma é formado por 6 módulos (realizados
nas várias universidades participantes),
correspondentes aos 6 capítulos da Laudato si’, e abrange várias
áreas ligadas aos desafios ecológicos: da teologia à filosofia, da economia à
espiritualidade. É um projeto comum das Universidades pontifícias de Roma para
a difusão da visão e da missão da Encíclica Laudato si’. Participam
estudantes das universidades pontifícias, mas é aberto a membros de ordens
religiosas, sacerdotes e agentes pastorais que tenham diploma universitário ou
de ensino médio.
***
Está visto
que não basta aclamar o Papa, mas que é preciso ouvi-lo (como
advertia São João Paulo II) e segui-lo.
Não basta publicar uma bela encíclica, mas é preciso pô-la em prática. Não
basta ter um bom programa de governo ou um bom projeto setorial, mas é preciso
pautar a sua execução por um sólido quadro ético no respeito pela dignidade
humana e na prossecução do bem comum.
2018.11.10 – Louro de Carvalho
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