Sob o título “Uma
igreja, dois papas: a ‘guerra’ entre Bento e Francisco”, o Diário de Notícias de 2 de novembro, com
a pena de Fernanda Câncio, faz eco dum “longo artigo” publicado no passado dia
30 de outubro na revista Vanity Fair, em que o colunista denuncia o facto de alegadamente o Papa emérito Bento
XVI não se inibir de mandar recados e arregimentar tropas contra o Papa
Francisco, o que, na ótica do jornalista, constitui “mais uma pedra no sapato de Francisco, sem mãos a medir face à
tempestade do abuso sexual”. E infere que Bento XVI, ao contrário do que
prometeu e do previsto, “não se enclausurou num convento para nunca mais ser
visto ou ouvido”.
Efetivamente,
o jornalista e escritor britânico John
Cornwell, autor de várias obras sobre os meandros da igreja
católica e sobre papados – nomeadamente Hitler's Pope – The secret
story of Pius XII (O Papa de Hitler – A
História Secreta de Pio XII, 1999) e A
Thief in the Night – The Mysterious Death of Pope John Paul I (Um ladrão na noite – A morte misteriosa do Papa João Paulo I, 1989) – descreve vários episódios supostamente reveladores
de um mal-estar entre os dois pontífices, referindo que, “se Francisco é o papa
vivo que reina, Bento é a sua sombra, o papa emérito morto-vivo”. E prossegue:
“Em 2013, Bento anunciou inesperadamente a sua resignação. Era o
primeiro papa a fazê-lo em quase 600 anos. Mas, a seguir, ao contrário dos que
muitos esperavam, não se enfiou num obscuro mosteiro bávaro. Ficou no mesmo
sítio, continuando a aceitar ser tratado por ‘Sua Santidade’, a usar ao peito a
cruz de bispo de Roma, a publicar, a encontrar-se com cardeais, a fazer
pronunciamentos. A sua mera existência encoraja os conservadores que querem
minar o reinado de Francisco.”.
Com o devido
respeito, como sói dizer-se, o escritor e jornalista não pode fazer crer que
Bento tenha prometido ficar em absoluto silêncio ou retirar-se para um qualquer
mosteiro bávaro. Na verdade, continuar a ser tratado por ‘Sua Santidade’ (o tratamento
de Santidade
não é privativo do Papa: outros patriarcas o têm a par se outros que têm o de Beatitude), envergar a sotaina branca, usar um solidéu branco ou eventualmente
ostentar uma cruz peitoral são elementos consensualmente estipulados em
concertação com o conselho dos cardeais, mas que não outorgam qualquer
prerrogativa que ultrapasse a índole honorífica. O Papa emérito é
estruturalmente o bispo emérito de Roma, o que de si não lhe retira o poder da
opinião, da intervenção teológica, de publicar, de se avistar com outras
personalidades, incluindo cardeais. O estatuto de emérito retira-lhe o
pontificado, a liderança, o supremo magistério, a presidência no múnus de
santificação e o governo da diocese de Roma e da Igreja universal. Até poderia,
como qualquer Bispo emérito pregar e presidir a celebrações litúrgicas, mesmo
em nome de outro bispo. Só o não faz – e bem, a meu ver – para não criar
confusões levando o auditório a pensar que o fazia como Papa ou Bispo de Roma,
o que seria deletério para a unidade eclesial.
Obviamente
que John Cornwell afirma que “a guerra entre conservadores e liberais no
seio da Igreja Católica não é de agora”, mas que “é a primeira vez da história da instituição em que cada um dos
lados tem um papa vivo”. Porém, isso, a suceder, é unicamente da
responsabilidade dos digladiadores, a que se atrelam políticos como Matteo Salvini.
Também eu digo repetidas vezes que o meu Papa de referência é Paulo VI e creio
que ninguém vai responsabilizá-lo a ele nem à sua memória por esta minha
preferência. E é, sobretudo, de registar que Bento XVI, quando alguns o
tentaram questionar, respondeu: “O Papa é
Francisco”. Além disso, o designativo de “emérito” não é propriamente um
cognome como Câncio ou Cornwell querem
fazer passar; é apenas um designativo de estado. Bento poderá passar para a
posteridade como “o teólogo”, “o vigilante da fé” ou outro cognome do
género, mas não com emérito. Mais: o estado de emérito não dá a ninguém o
direito de o considerar como desaparecido do mundo dos vivos, nem a remissão
para um resto da vida em recolhimento e oração implica um auto ou
heterossilenciamento, pois o recolhimento e a oração não tapam os olhos, os
ouvidos a boca e as mãos ao recolhido e orante. Portanto, não há motivo para
esperanças tolas nem para desilusões.
***
Pensando o
jornalista tratar-se de situação para a qual é difícil encontrar precedentes,
discorre:
“Com que podemos comparar esta circunstância de uma Igreja com dois
papas? Estamos nos domínios dos arquétipos e do mito. Pensemos no Rei Lear, que
deu todo o poder, mas se manteve perto para controlar, resultando em desastre,
ou no fantasma em Hamlet. A mera presença de um ex-Papa já seria o suficiente
para pôr em causa a força de espírito e a independência de Francisco desde o
primeiro dia.”.
Vistas bem as coisas, nunca há dois papas. Se essa aparência aflora,
seguramente um é antipapa. E, quando o conclave reuniu, já sabia que o eleito
se depararia com a figura do emérito a viver no Vaticano, ainda que em situação
reservada. Aliás, Bento retirou-se para Castelgandolfo para não ser apontado
como condicionante do processo conclavista. E Francisco, que o mencionou quando
se apresentou à multidão, foi visitá-lo ao palácio de férias dos Papas,
visita-o frequentemente e já o convidou para alguns eventos.
Quando à hipotética impossibilidade, levantada por Cornwell, de o simpático João XXIII, “ter iniciado a
reforma do Concílio Vaticano II” com Pio XII, “o seu autocrático predecessor”,
a observar lugubremente de uma janela vizinha ou a de “João Paulo II abanar a
árvore apodrecida da União Soviética” com “o angustiado e hesitante Paulo VI,
que chegou a ponderar uma concordata com Moscovo”, a “puxar-lhe pelo braço”, é decente
não entrarmos em especulações desnecessárias, porque pensar como as coisas
teriam acontecido, se o curso dos acontecimentos tivesse sido outro, não leva a
lado nenhum. Além disso, perante a resistência de alguns cardeais ao anúncio
dum Concílio, João XXIII invocou a autoridade papal e João Paulo II soube
mostrar quão determinado era e nomeou Secretário de Estado o Cardeal Agostino
Casaroli (simpatizante da Teologia da Libertação e favorável à relação com a URSS), que manteve o cargo de 1979 a 1990 (aos 75 anos,
idade-limite para o desempenho de cargos pontifícios).
***
O escritor recorda que Bento, em 2013, anunciou inesperadamente a sua
resignação, sendo o primeiro Papa a fazê-lo em quase 600 anos. E anota que, a seguir,
ao invés do que muitos esperavam, não se enfiou num obscuro mosteiro bávaro,
mas permaneceu no mesmo sítio, com o tratamento e as insígnias referidas acima
e alguns dos comportamentos apontados, sendo que alegadamente “a sua mera
existência encoraja os conservadores que querem minar o reinado de Francisco”.
E discorre contradizendo-se:
“Qualquer que seja a direção do papado, esquerda ou direita, para o
melhor ou o pior, é a iniciativa única e exclusiva de um Papa de cada vez que
se lhe confere suprema autoridade e poder. O segredo da unidade católica é a
lealdade, em todas as circunstâncias, ao único supremo pontífice vivo. A briga
entre os leais a Francisco e os insurgentes de Bento ameaça provocar a maior
divisão na Igreja Católica desde a Reforma do século XVI, quando Martinho
Lutero e outros reformistas lideraram a revolta protestante contra o Vaticano.”.
E, citando o
historiador Diarmaid MacCulloch, da Universidade de Oxford, entende que “dois papas é a receita para um cisma”,
até porque se trata de “dois papas com
visões tão diferentes”. Com
efeito, desde que o Cardeal Joseph Ratzinger foi, por João Paulo II, nomeado Prefeito
da Congregação para a Doutrina da Fé, ou seja, para fiscalizador-chefe da
doutrina, em 1981, passou a defender uma Igreja Católica mais pequena, limpa de
imperfeições, ao passo que a visão de Francisco é diferente: “uma igreja aberta, acolhedora,
misericordiosa para com os pecadores, hospitaleira face aos estranhos,
respeitosamente tolerante para com outras fés”. Encoraja os que duvidam,
consola os feridos e traz de volta os excluídos pela respetiva orientação.
Compara a Igreja a um hospital de campanha.
Segundo o escritor, as
trincheiras são tão óbvias que se consubstanciam em tshirts. Assim, Matteo Salvini, Ministro da Administração Interna e
líder do partido de extrema-direita Liga (antes Liga Norte), conhecida pelas suas posições xenófobas, fez-se
fotografar em setembro de 2016 com uma, em que se vê o rosto de Francisco com
ar horrorizado, com o escrito “O meu Papa
é Bento”. Na verdade, se Francisco apela constantemente ao acolhimento de
refugiados, Salvini é avesso a refugiados. E crê o jornalista e escritor que Bento
XVI recusa esse tipo de apoio aos refugiados, sendo que, na opinião de Cornwell,
o Papa “reformado’ “continua a opinar e a fazer-se ouvir diretamente ou através
de outros. Nestes “outros” inclui-se o seu secretário, o arcebispo alemão Georg
Gänswein, que vive na atual residência do Papa emérito – um convento para 12
freiras contemplativas no tempo de João Paulo II e que Bento mandou renovar e
preparar antes de anunciar a renúncia – e que, em maio de 2016, declarou que Francisco e Bento representam um único
ofício papal “alargado”, com um membro “ativo” e um “contemplativo”. Mas
Francisco foi pronto a reagir ao disparate: “Só há um Papa”.
Especula
Cornwell que, desde então a relação entre o Papa e o emérito se terá
deteriorado, estribando-se em factos que entende como corrosivos. Por exemplo,
em julho de 2017, no funeral do Cardeal Joachim Meisner, arcebispo emérito de
Colónia, um conservador e crítico do Papa, Gänswein leu uma carta de Bento, com
uma frase alegadamente muito desestabilizadora do atual pontificado. Ei-la:
“O Senhor não abandona a Sua Igreja, mesmo que o barco tenha metido
tanta água que esteja à beira de afundar”.
Para
Cornwell, Bento parece dizer que a Igreja Católica sob Francisco está a
afundar-se, quando este tipo de discurso é recorrente em meios eclesiais e tem
subtexto bíblico.
Também em
setembro último, Gänswein deu uma palestra na biblioteca do Parlamento italiano
por ocasião do lançamento da tradução italiana do livro The Benedict
Option (A opção de Bento), do americano Rod Dreher, autodescrito como um “conservador empedernido”.
Ora, como o livro sustenta que a civilização ocidental se encaminha para um
tempo de caos e negritude, uma nova idade das trevas, e que o caminho é voltar
aos ensinamentos de Bento de Núrsia, o fundador do monaquismo beneditino, o
escritor inglês infere que esta marcha civilizacional é provocada ou vista passivamente
por Francisco – o que não é verdade. Ao invés, o Papa não se cansa de apontar
os males do mundo e da civilização, mesmo a III Guerra Mundial aos pedaços. E
foi ao Conselho da Europa e ao Parlamento Europeu denunciar as debilidades da
Europa e lembrar as suas raízes e responsabilidades, foi ao Congresso americano
e à Assembleia geral da ONU oferecer o seu testemunho e a disponibilidade da
Igreja Católica para cooperar na causa comum da paz.
Gänswein
defendeu que a crise de abuso sexual na Igreja Católica é a idade das trevas da
instituição, o 11 de setembro católico – paralelismo interpretado por Dreher
como significando que o salvador atual é o emérito. Entretanto, Cornwell
encontra outros sinais de perversidade na conduta de Bento até antes de
renunciar, referindo, por exemplo, o facto de em 2012, pouco antes de anunciar a sua inesperada decisão, ter nomeado o
bispo conservador Gerhard Ludwig Müller para o lugar que fora seu sob João
Paulo, ou seja, ter designado um conservador de linha dura para fiscalizar a
doutrina (num ministério encarregado
de investigar casos de abuso sexual), cargo de o sucessor teria dificuldade em retirá-lo sem parecer
desrespeitador (Francisco só o substituiu em
2017). Por
outro lado, Bento não só nomeou Gänswein como secretário pessoal como o fez
Prefeito da Casa Pontifícia, onde os papas vivem e trabalham – o que permitiria
ao secretário e homem de confiança do emérito monitorizar toda a atividade do
novo Pontífice. Ora,
segundo Cornwell, a decisão de Francisco de não ocupar as instalações que são,
há séculos, a casa dos papas pode ter a ver com uma forma de dar a volta a
Bento e Gänswein, para o que se instalou na Casa Santa Marta, onde ficam os clérigos
que visitam o Vaticano; e, se permite a Gänswein a organização de receções nos
aposentos papais para reis e outros chefes de Estado, o resto do tempo estará
fora do alcance do secretário de Bento.
Cornwell
esquece que a praxe vaticana é, muito embora o novo Pontífice tenha a
prerrogativa de substituir os ocupantes de altos cargos na Cúria, a recondução.
Depois, à medida que os titulares se aproximam da idade-limite ou acabam as comissões
de serviço, o Papa ou os reconduz, os substitui ou lhes prolonga o mandato. Assim,
Müller foi substituído; Gänswein
continua.
É certo que,
aos 91 anos, cinco após a resignação, Bento mantém notável vigor mental, pelo que
John Cornwell se interroga sobre os motivos da resignação e sobre que
estratégia terá em vista, pois Francisco
está cada vez mais isolado e acossado por escândalos sucessivos e alegadamente
a presença de Bento e as suas intervenções não ajudam. Mais refere ser tentador assacar a culpa do impasse a Bento,
“o rígido moralista e o defensor de uma Igreja mais pequena e mais pura, mas também
há motivo para acreditar que Francisco tem os seus próprios motivos para querer
provocar uma crise”. E explica:
“Desde
os primeiros dias do papado, falou de forma a sugerir que procura, que provoca,
que pede uma mudança massiva numa autoritária, dogmática teimosamente
inamovível Igreja que mostra os seus frutos amargos nos milhares de jovens
fiéis abusados em todo o mundo católico. Uma purga drástica dos privilégios
obstinados, do secretismo, da riqueza, do tradicionalismo, da falta de
transparência e de controlo, pode ser a condição necessária de um novo começo.”.
***
Apontada a
especulação de Cornwell (A
Gänswein cabia discrição), é de rejeitar qualquer tentativa
de polémica entre Bento e Francisco. Bento fez chegar a Francisco os dossiês
problemáticos que tinha entre mãos, o que o induziu a herdar todos os problemas
pendentes. Mas o novo Papa não se contentou em gerir a pesada herança, mas
desencadeou uma séria reforma espiritual, pastoral e orgânica na Cúria e na
Igreja. As iniciativas de diversa índole falam por si mesmas!
É óbvio que muitos
estão contra Francisco e a reforma, mas nem o emérito o desgasta nem a sua paciência
se esfuma ante a resistência ativa dos oponentes. E, no atinente a Bento XVI,
que não perdeu a liberdade de intervir, embora seja discreto, é de recordar
que, em fevereiro, enviou carta ao Prefeito da Secretaria da Comunicação em que
dizia da sua não comparência na apresentação dos 11 livros escritos (“Teologia
do Papa Francisco”) por
vários autores e publicados pela Librería Vaticana devido à inclusão de Peter
Hunermann, teólogo que liderou iniciativas antipapais, e do apoio a Francisco e
à globalidade da publicação, declarando:
“Aplaudo
a iniciativa. […]. Contradiz os preconceitos tontos daqueles que acham que falta
ao Papa Francisco uma particular formação teológica e filosófica, enquanto eu
teria sido apenas um teórico da teologia, com pouca compreensão da vida
concreta das vidas dos cristãos hoje. […]. É um homem com uma profunda
formação filosófica e teológica e demonstra a continuidade interna entre os
dois pontificados, não obstante todas as diferenças de estilo e de temperamento”.
2018.11.03 – Louro de Carvalho
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