Também uma colher de pau é efetivamente pretexto para lembrar a Primeira
Guerra Mundial e constitui, não por si só, mas pelo que faz evocar, uma memória
de guerra, tanto em África como na Flandres.
O episódio faz parte do relato que a historiadora Ana Paula Pires – doutorada em História, na especialidade de História
Económica e Social Contemporânea, pela Universidade Nova de Lisboa, e a
realizar atualmente um pós-doutoramento na Universidade de
Stanford e na Universidade Nova de Lisboa – ditou em entrevista
publicada pela Notícias Magazine em
2014 e republicada pelo DN, a 4 de
novembro, a propósito do centenário do fim da Guerra, sob o título “Uma colher de pau para lembrar as trincheiras”.
Com efeito, no âmbito do conjunto de iniciativas que o Instituto de
História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa tem desenvolvido, com grande adesão, como recolher
testemunhos – desde cartas a armas de pessoas com antepassados que estiveram na
guerra, surge história da colher. E a historiadora, que se tem dedicado à
investigação sobre a presença portuguesa na Primeira Guerra Mundial, explica:
“Foi uma iniciativa que começou em 2012, 2013. Vimos que há um projeto
europeu, o Europeana 1914-1918, que
tem esta missão de recolher as histórias de família relacionadas com a Primeira
Guerra. Fui com a professora Fernanda Rollo à Irlanda assistir ao primeiro road show. E ficámos fascinadas a ver
velhinhos a carregar baús, literalmente baús, com fotografias de familiares que
tinham combatido.”.
E ficaram inspiradas com o que viram na Irlanda para fazerem o mesmo na
Assembleia da República em outubro de 2014, assinalando o início da Guerra. E
diz ter corrido tudo muito bem, até porque, antes de tudo devolverem aos seus
donos ou fiéis depositários, fotografaram e digitalizaram todos os objetos. E
foi neste contexto que surgiu a colher, que ficou como especial marca da
exposição, como explicita:
“Um senhor
que levou uma colher. Era simplesmente uma colher que tinha sido usada pelo pai
dele, que fazia parte do kit que foi
distribuído às tropas que foram para África. O pai usou essa colher em África.
Depois, essas tropas foram para a Flandres. O pai também usou essa colher na
Flandres e depois foi feito prisioneiro de guerra e a colher acompanhou-o
sempre. O filho, emocionado, levou-nos essa colher que contava esta história de
vida.”.
Este é
um episódio entre os muitos que Ana Paula Pires conta no quadro das memórias
que vem interpretando em resultado da investigação
que desenvolve sobre a presença nacional na Primeira Guerra Mundial, o conflito
em que estiveram os pais, os avós ou mesmo os bisavós – cujas memórias agora as
famílias tiram dos baús.
***
Entretanto, a historiadora não se fica pelos objetos. Deve, ao invés,
registar-se que o título da sua tese de doutoramento é “Portugal
e a I Guerra Mundial. A República e a Economia de Guerra (1914-1919)”, que foi passada a livro sob o
título “Portugal e a I Guerra Mundial. A República e a
Economia de Guerra” (Lisboa: CNCCR / Caleidoscópio, 2011). No âmbito do pós-doutoramento,
encontra-se a desenvolver um projeto financiado pela FCT (Fundação
para a Ciência e a Tecnologia)
denominado: “A outra frente: a economia
africana e a I Guerra Mundial (1914-1919)”. E, na mencionada entrevista,
explica algumas situações, acaso pouco relevadas.
Assim, começa por justificar a entrada oficial do país na Primeira Guerra
Mundial a 9 de março de 1916, mercê da declaração
de guerra por parte da Alemanha, no seguimento da apreensão dos navios de
guerra alemães e austríacos fundeados em portos nossos desde a entrada da Alemanha
na guerra, tendo Portugal resolvido tomar para si os navios nessa altura, face
às dificuldades que tinha nos abastecimentos e no transporte. Por isso, não foi
Portugal que declarou guerra, mas incorreu na ação que a desencadeou, o que
decorreu, além das dificuldades apontadas, devido à pressão que a Grã-Bretanha
vinha fazendo sobre o país desde 1915 no sentido da tomada desses navios. Além
disso, em termos do cenário internacional de guerra, era um momento “em que os
aliados estavam numa situação complicada na Flandres”.
Não era que o seu velho aliado quisesse que Portugal entrasse na guerra,
mas apenas que requisitasse os preditos navios. Na verdade, pelos vistos, lá “no íntimo da diplomacia britânica nunca se pensou que
essa predita tomada de navios (72 ao todo, revertendo 65% para uso da Inglaterra e
ficando os restantes para uso português) pudesse
dar numa declaração de guerra” – o que eu penso algo de estranho, pois
dificilmente a Alemanha não retaliaria, até porque estava no seu escopo
apoderar-se de colónias portuguesas confinantes com as alemãs em África, espaço
onde Portugal já combatia, tendo sido constituído um CEP (corpo expedicionário
português) para África (Angola e
Moçambique).
O regime
republicano decidiu, como é sabido, optar por uma tomada de posição ativa na
guerra por várias razões: manter as colónias, de modo a poder reivindicar
a sua soberania na Conferência de Paz que se adivinhava para o final da
guerra; afirmar o prestígio e a influência diplomática do Estado republicano,
bem como a sua legitimação no seio das potências europeias, maioritariamente
monárquicas; crer que era imperativo entrar na guerra pelo progresso nacional,
ao lado das democracias; honrar o compromisso de aliança com a Inglaterra,
tradicional aliada de Portugal, e afirmar a autonomia de Portugal nas questões
bilaterais com a Inglaterra; travar a influência alemã nas populações indígenas
no sul de Angola e norte de Moçambique e evitar insurreições locais contra o
domínio português; defender as colónias duma possível penetração militar alemã
que, de resto, se estava a materializar através de escaramuças fronteiriças
desde o início da guerra; afirmar, por parte do Partido Democrático de
Afonso Costa, no poder, o seu poder político, ao envolver o país num esforço
coletivo de guerra, tanto em relação à oposição republicana quanto em relação
às influências monárquicas no exílio.
Porém, o
principal oponente à entrada formal de Portugal no Conflito foi a Inglaterra.
***
O cenário dos
nossos combates em África é pouco sublinhado e causa impressão às pessoas que
Portugal só tenha entrado oficialmente na guerra em 1916 quando tinha tropas a
combater em África, pois, segundo a historiadora, “uma das preocupações da
diplomacia republicana foi salvaguardar o património colonial”, pelo que, logo
em setembro de 1914, houve envio de tropas para o sul de Angola e o norte de Moçambique, fronteiriços com colónias alemãs.
Isto
deveu-se a “uma coisa bastante paradigmática e exemplificativa daquilo que foi
a política portuguesa”: Portugal é o
único país envolvido na guerra que teve, na fase inicial, uma declaração de não
neutralidade e não beligerância. Assim, não era neutral nem era
beligerante. Tinha tido este estatuto ambíguo a pedido da aliança britânica.
Desta sorte,
logo nos primeiros meses da Guerra, foram militares para Angola e Moçambique
porque o Governo percebeu que, se a guerra alastrasse às colónias, os nossos
territórios poderiam estar em perigo, pois, ainda antes da declaração de
guerra, “tinham sido alvo de cobiça e de disputa por parte da Grã-Bretanha e da
Alemanha” (a própria Grã-Bretanha as cobiçava). Todavia,
tratava-se de meras expedições coloniais “com o intuito de proteção de
fronteiras”. Não obstante, as baixas são muito elevadas, pelas razões
climáticas e pela impreparação da tropa, que estava habituada a “combates com
tropas indígenas e não com tropas europeias bem treinadas”. Assim, as primeiras
escaramuças começam logo em dezembro de 1914, com o desastre de Naulila, em que
tombaram setenta militares portugueses em combates junto ao rio Rovuma, em Moçambique. No entanto, é a partir destes combates que Portugal consegue recuperar, depois nas negociações de
Versalhes, um enclave, o chamado triângulo de Quionga, que tinha sido ocupado
em 1898 por tropas alemãs. Foi uma vitória e a única.
***
Ora, se ouve
consenso quanto ao envio de militares para África, levando a que a Grã-Bretanha
parasse de nos continuar a cobiçar colónias (já tínhamos sido levados a ceder o
território representado no mapa cor-de-rosa no tempo de Dom Carlos – o famoso Ultimatum), para a Flandres a questão foi diferente, nunca tendo havido entendimento
sobre se e como devia ser a nossa participação na frente europeia, gerando-se
dois grupos, o dos guerristas e o dos não guerristas, embora a opinião pública e a classe política
estivessem claramente ao lado de Inglaterra. Porém, isso não quer dizer que, ao
tempo da entrada oficial de Portugal na Guerra, se percebesse que o campo da Entente Cordiale (aliança franco-britânica) iria vencer. Com efeito, 1916 é um
ano de grande incerteza, pois é dramático para as tropas britânicas. E a historiadora
explica:
“É o ano da batalha do Somme, em que há milhares de vidas que se perdem.
Portanto, havia a sensação de que algo estaria bastante tremido para o lado da
Grã-Bretanha e que havia uma hipótese, talvez não tão remota quanto isso, de a
Alemanha vencer.”.
Relativamente ao facto de as tropas portuguesas terem ido mal preparadas
para a Flandres, mesmo em termos de equipamento, a investigadora e intérprete
do fenómeno da Primeira Guerra Mundial avança uma explicação:
“Eram tropas que tinham sido aquarteladas pouco tempo antes de irem para
a frente. Eram homens que não tinham qualquer experiência de combate. Se
quisermos fazer um ponto de comparação com as unidades britânicas, em que eram
muito associadas a uma região, em que os homens se conheciam ou porque tinham
sido companheiros de escolas ou porque tinham trabalhado juntos, no nosso caso
isso não existiu. Também os oficiais portugueses, muitos, estavam revoltados
com a ida para a guerra.”.
Na verdade,
é difícil a liderança por parte de um oficial revoltado.
Não se
colocava o facto de o CEP (Corpo
Expedicionário Português) não estar
bem equipado em munições ou armas, pois “as
nossas armas eram iguais às dos outros exércitos”. Tanto assim é que ainda
está algum equipamento no Entroncamento, local donde partiram de comboio as
nossas tropas para a Flandres, depois de, como refere João Gonçalves no JN do dia 5, terem sido preparadas à
pressa em Tancos.
Mas houve tropas
que recusaram o embarque, tendo ficado conhecido o episódio de Tomar
protagonizado por Machado Santos, “o herói da Rotunda, que impediu o embarque
de tropas para a Flandres”. Eram aspetos de motivação e organização que estavam
em causa. De facto, a revolução republicana sucedera em outubro de 1910 e a
reorganização do exército tinha sido em 1911; tínhamos perdido chefias militares monárquicas com experiência; ocorrera,
pois, alguma revolução ao nível das forças armadas, sobretudo ao nível do recrutamento;
e houvera, na hierarquia militar, ainda que pouco sucedida, uma tentativa de
depuração das elites.
***
Por indução do entrevistador, a insigne entrevistada detém-se na batalha La
Lys, de que os portugueses têm ouvido falar e de que sobressai na memória coletiva
o propalado heroísmo do soldado Milhões, que era o valonguense Aníbal Milhais (que ficou
para trás durante o ataque alemão de 9 de abril e cobriu a retirada dos
camaradas com a sua “Luisinha”, nome
que os portugueses davam à metralhadora Lewis) e, anos depois da guerra rumou ao Brasil para garantir a sua subsistência
e a da família. Constituiu este ataque “uma grande ofensiva alemã” que infligiu “um
número elevadíssimo de baixas”, ficando para o imaginário popular como “o grande
mito português da guerra”. A este propósito, a historiadora não se inibe de afirmar:
“Esse é o grande mito que fez que durante muitos anos não se olhasse
para a Primeira Guerra Mundial. E aí o Estado Novo teve uma grande
responsabilidade. Olhava para o Partido Republicano como o partido charneira
que empurrou Portugal para aquela desgraça, que foi La Lys, em que tudo correu
mal [terão morrido 398 portugueses e cerca de 6500 foram feitos prisioneiros,
apesar de os números não serem consensuais]. Temos, depois, o contraponto com a
Segunda Guerra Mundial, em que Salazar manteve a neutralidade. La Lys é um mito
negativo, de derrota de Portugal numa campanha militar no exterior.”.
E interpreta
o sucedido com base na falta de rotação de tropas na linha da frente, devido ao
golpe do antigo embaixador de Portugal na Alemanha Sidónio Pais, considerado
germanófilo:
“Todas as tropas na linha da frente tinham um tempo de rotação. No caso
português isso não aconteceu. A pressão era imensa por tudo o que sabemos da
vida das trincheiras. E, quando surgem os ataques de 9 de abril de 1918,
enquadrados numa ofensiva alemã, as tropas portuguesas estavam tudo menos
frescas. Estavam cansadas, muitos homens estavam doentes, muitos tinham
regressado a Portugal. E, em dezembro de 1917, tinha acontecido o golpe de
Sidónio Pais e todos sabiam que o novo Presidente tinha uma posição bastante
particular quanto à Flandres, achando que era altura de diminuir o esforço de
guerra.”.
Ora, tendo
vindo muitas destas tropas a Portugal de férias e não tendo regressado nem tendo
sido substituídas mercê da grande
agitação política e social em que o país estava mergulhado, sucedeu que,
ao surgir esta grande ofensiva, não houve capacidade de rotação, o que “não tem
que ver com má preparação”, porquanto, “se fosse o exército mais bem preparado do
mundo, teria sucumbido da mesma maneira que o português”.
Houve também visitas de
submarinos alemães a Ponta Delgada e ao
Funchal.
No entanto, na ótica da historiadora-intérprete, não se pode dizer que a
guerra não tenha chegado a Portugal continental, que se travara somente em
África, na Flandres e em águas portuguesas
(no
âmbito da referida incursão alemã, ocorreu o episódio bastante
conhecido que é a morte de Carvalho Araújo, com o afundamento do navio Augusto
Castilho por um submarino alemão nos Açores). Ao invés
do que se diz, a guerra também chegou cá, pois “a fome que se fez sentir acaba
por ser também um reflexo direto da guerra”. Assim, “as dificuldades de bens
alimentares de primeira necessidade fizeram que a guerra chegasse ao quotidiano
dos portugueses”. Por isso, foi grande a popularidade da neutralidade na Segunda Guerra Mundial, que
Ana Paula Pires explica assim:
“Oliveira Salazar nesta altura já estava vivo, de saúde e com cabeça
para pensar. E tirou grandes lições da Primeira Guerra Mundial. Se olharmos
para o que foram as suas medidas durante a Segunda Guerra Mundial, veremos que
há ali uma observação direta do que aconteceu.”.
Porém, do meu ponto de vista, não se pode escamotear o terrível flagelo
da fome que grassava entre a população portuguesa durante a guerra de 1939-1945,
graças à falta e ao racionamento de víveres para as famílias, ponto de haver
populações inteiras que barravam a saída dos camiões de milho e outro cereal (para comprarem pelo mesmo preço), enquanto atravessavam a Espanha comboios carregados de alimentos com o
irónico dístico “SOBRAS DE PORTUGAL.
***
Ana Paula
Pires, quando fez a tese de mestrado, começou por estudar a indústria de moagem
de cereais, percebendo que, entre 1914 e 1918, tal indústria teve importante papel
em razão da crise de subsistência, a fome. Assim, começou a tentar perceber o
que sucedia no quotidiano e as medidas que tomara o Estado para mitigar o
impacto da guerra na vida dos cidadãos. Além do processo académico, também a
investigadora teve um bisavô que esteve na Flandres, sendo que também ela, por
obra do acaso, poderia ter encontrado um baú com uma colher de pau em torno da qual
pudesse fazer memória da guerra em que Portugal também entrou.
2018.11.06 – Louro de Carvalho
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