terça-feira, 6 de novembro de 2018

Fazer memória das trincheiras através duma colher de pau



Também uma colher de pau é efetivamente pretexto para lembrar a Primeira Guerra Mundial e constitui, não por si só, mas pelo que faz evocar, uma memória de guerra, tanto em África como na Flandres.
O episódio faz parte do relato que a historiadora Ana Paula Pires – doutorada em História, na especialidade de História Económica e Social Contemporânea, pela Universidade Nova de Lisboa, e a realizar atualmente  um pós-doutoramento na Universidade de Stanford  e na Universidade Nova de Lisboa – ditou em entrevista publicada pela Notícias Magazine em 2014 e republicada pelo DN, a 4 de novembro, a propósito do centenário do fim da Guerra, sob o título “Uma colher de pau para lembrar as trincheiras”.
Com efeito, no âmbito do conjunto de iniciativas que o Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa tem desenvolvido, com grande adesão, como recolher testemunhos – desde cartas a armas de pessoas com antepassados que estiveram na guerra, surge história da colher. E a historiadora, que se tem dedicado à investigação sobre a presença portuguesa na Primeira Guerra Mundial, explica:
Foi uma iniciativa que começou em 2012, 2013. Vimos que há um projeto europeu, o Europeana 1914-1918, que tem esta missão de recolher as histórias de família relacionadas com a Primeira Guerra. Fui com a professora Fernanda Rollo à Irlanda assistir ao primeiro road show. E ficámos fascinadas a ver velhinhos a carregar baús, literalmente baús, com fotografias de familiares que tinham combatido.”.
E ficaram inspiradas com o que viram na Irlanda para fazerem o mesmo na Assembleia da República em outubro de 2014, assinalando o início da Guerra. E diz ter corrido tudo muito bem, até porque, antes de tudo devolverem aos seus donos ou fiéis depositários, fotografaram e digitalizaram todos os objetos. E foi neste contexto que surgiu a colher, que ficou como especial marca da exposição, como explicita:
Um senhor que levou uma colher. Era simplesmente uma colher que tinha sido usada pelo pai dele, que fazia parte do kit que foi distribuído às tropas que foram para África. O pai usou essa colher em África. Depois, essas tropas foram para a Flandres. O pai também usou essa colher na Flandres e depois foi feito prisioneiro de guerra e a colher acompanhou-o sempre. O filho, emocionado, levou-nos essa colher que contava esta história de vida.”.
Este é um episódio entre os muitos que Ana Paula Pires conta no quadro das memórias que vem interpretando em resultado da investigação que desenvolve sobre a presença nacional na Primeira Guerra Mundial, o conflito em que estiveram os pais, os avós ou mesmo os bisavós – cujas memórias agora as famílias tiram dos baús.
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Entretanto, a historiadora não se fica pelos objetos. Deve, ao invés, registar-se que o título da sua tese de doutoramento é “Portugal e a I Guerra Mundial. A República e a Economia de Guerra (1914-1919)”, que foi passada a livro sob o título “Portugal e a I Guerra Mundial. A República e a Economia de Guerra” (Lisboa: CNCCR / Caleidoscópio, 2011). No âmbito do pós-doutoramento, encontra-se a desenvolver um projeto financiado pela FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia) denominado: “A outra frente: a economia africana e a I Guerra Mundial (1914-1919)”. E, na mencionada entrevista, explica algumas situações, acaso pouco relevadas.
Assim, começa por justificar a entrada oficial do país na Primeira Guerra Mundial a 9 de março de 1916, mercê da declaração de guerra por parte da Alemanha, no seguimento da apreensão dos navios de guerra alemães e austríacos fundeados em portos nossos desde a entrada da Alemanha na guerra, tendo Portugal resolvido tomar para si os navios nessa altura, face às dificuldades que tinha nos abastecimentos e no transporte. Por isso, não foi Portugal que declarou guerra, mas incorreu na ação que a desencadeou, o que decorreu, além das dificuldades apontadas, devido à pressão que a Grã-Bretanha vinha fazendo sobre o país desde 1915 no sentido da tomada desses navios. Além disso, em termos do cenário internacional de guerra, era um momento “em que os aliados estavam numa situação complicada na Flandres”.
Não era que o seu velho aliado quisesse que Portugal entrasse na guerra, mas apenas que requisitasse os preditos navios. Na verdade, pelos vistos, lá “no íntimo da diplomacia britânica nunca se pensou que essa predita tomada de navios (72 ao todo, revertendo 65% para uso da Inglaterra e ficando os restantes para uso português) pudesse dar numa declaração de guerra” – o que eu penso algo de estranho, pois dificilmente a Alemanha não retaliaria, até porque estava no seu escopo apoderar-se de colónias portuguesas confinantes com as alemãs em África, espaço onde Portugal já combatia, tendo sido constituído um CEP (corpo expedicionário português) para África (Angola e Moçambique).
O regime republicano decidiu, como é sabido, optar por uma tomada de posição ativa na guerra por várias razões: manter as colónias, de modo a poder reivindicar a sua soberania na Conferência de Paz que se adivinhava para o final da guerra; afirmar o prestígio e a influência diplomática do Estado republicano, bem como a sua legitimação no seio das potências europeias, maioritariamente monárquicas; crer que era imperativo entrar na guerra pelo progresso nacional, ao lado das democracias; honrar o compromisso de aliança com a Inglaterra, tradicional aliada de Portugal, e afirmar a autonomia de Portugal nas questões bilaterais com a Inglaterra; travar a influência alemã nas populações indígenas no sul de Angola e norte de Moçambique e evitar insurreições locais contra o domínio português; defender as colónias duma possível penetração militar alemã que, de resto, se estava a materializar através de escaramuças fronteiriças desde o início da guerra; afirmar, por parte do Partido Democrático de  Afonso Costa, no poder, o seu poder político, ao envolver o país num esforço coletivo de guerra, tanto em relação à oposição republicana quanto em relação às influências monárquicas no exílio.
Porém, o principal oponente à entrada formal de Portugal no Conflito foi a Inglaterra.
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O cenário dos nossos combates em África é pouco sublinhado e causa impressão às pessoas que Portugal só tenha entrado oficialmente na guerra em 1916 quando tinha tropas a combater em África, pois, segundo a historiadora, “uma das preocupações da diplomacia republicana foi salvaguardar o património colonial”, pelo que, logo em setembro de 1914, houve envio de tropas para o sul de Angola e o norte de Moçambique, fronteiriços com colónias alemãs.
Isto deveu-se a “uma coisa bastante paradigmática e exemplificativa daquilo que foi a política portuguesa”: Portugal é o único país envolvido na guerra que teve, na fase inicial, uma declaração de não neutralidade e não beligerância. Assim, não era neutral nem era beligerante. Tinha tido este estatuto ambíguo a pedido da aliança britânica.
Desta sorte, logo nos primeiros meses da Guerra, foram militares para Angola e Moçambique porque o Governo percebeu que, se a guerra alastrasse às colónias, os nossos territórios poderiam estar em perigo, pois, ainda antes da declaração de guerra, “tinham sido alvo de cobiça e de disputa por parte da Grã-Bretanha e da Alemanha” (a própria Grã-Bretanha as cobiçava). Todavia, tratava-se de meras expedições coloniais “com o intuito de proteção de fronteiras”. Não obstante, as baixas são muito elevadas, pelas razões climáticas e pela impreparação da tropa, que estava habituada a “combates com tropas indígenas e não com tropas europeias bem treinadas”. Assim, as primeiras escaramuças começam logo em dezembro de 1914, com o desastre de Naulila, em que tombaram setenta militares portugueses em combates junto ao rio Rovuma, em Moçambique. No entanto, é a partir destes combates que Portugal consegue recuperar, depois nas negociações de Versalhes, um enclave, o chamado triângulo de Quionga, que tinha sido ocupado em 1898 por tropas alemãs. Foi uma vitória e a única.
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Ora, se ouve consenso quanto ao envio de militares para África, levando a que a Grã-Bretanha parasse de nos continuar a cobiçar colónias (já tínhamos sido levados a ceder o território representado no mapa cor-de-rosa no tempo de Dom Carlos – o famoso Ultimatum), para a Flandres a questão foi diferente, nunca tendo havido entendimento sobre se e como devia ser a nossa participação na frente europeia, gerando-se dois grupos, o dos guerristas e o dos não guerristas, embora a opinião pública e a classe política estivessem claramente ao lado de Inglaterra. Porém, isso não quer dizer que, ao tempo da entrada oficial de Portugal na Guerra, se percebesse que o campo da Entente Cordiale (aliança franco-britânica) iria vencer. Com efeito, 1916 é um ano de grande incerteza, pois é dramático para as tropas britânicas. E a historiadora explica:
É o ano da batalha do Somme, em que há milhares de vidas que se perdem. Portanto, havia a sensação de que algo estaria bastante tremido para o lado da Grã-Bretanha e que havia uma hipótese, talvez não tão remota quanto isso, de a Alemanha vencer.”.
Relativamente ao facto de as tropas portuguesas terem ido mal preparadas para a Flandres, mesmo em termos de equipamento, a investigadora e intérprete do fenómeno da Primeira Guerra Mundial avança uma explicação:
Eram tropas que tinham sido aquarteladas pouco tempo antes de irem para a frente. Eram homens que não tinham qualquer experiência de combate. Se quisermos fazer um ponto de comparação com as unidades britânicas, em que eram muito associadas a uma região, em que os homens se conheciam ou porque tinham sido companheiros de escolas ou porque tinham trabalhado juntos, no nosso caso isso não existiu. Também os oficiais portugueses, muitos, estavam revoltados com a ida para a guerra.”.
Na verdade, é difícil a liderança por parte de um oficial revoltado.
Não se colocava o facto de o CEP (Corpo Expedicionário Português) não estar bem equipado em munições ou armas, pois “as nossas armas eram iguais às dos outros exércitos”. Tanto assim é que ainda está algum equipamento no Entroncamento, local donde partiram de comboio as nossas tropas para a Flandres, depois de, como refere João Gonçalves no JN do dia 5, terem sido preparadas à pressa em Tancos.
Mas houve tropas que recusaram o embarque, tendo ficado conhecido o episódio de Tomar protagonizado por Machado Santos, “o herói da Rotunda, que impediu o embarque de tropas para a Flandres”. Eram aspetos de motivação e organização que estavam em causa. De facto, a revolução republicana sucedera em outubro de 1910 e a reorganização do exército tinha sido em 1911; tínhamos perdido chefias militares monárquicas com experiência; ocorrera, pois, alguma revolução ao nível das forças armadas, sobretudo ao nível do recrutamento; e houvera, na hierarquia militar, ainda que pouco sucedida, uma tentativa de depuração das elites.
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Por indução do entrevistador, a insigne entrevistada detém-se na batalha La Lys, de que os portugueses têm ouvido falar e de que sobressai na memória coletiva o propalado heroísmo do soldado Milhões, que era o valonguense Aníbal Milhais (que ficou para trás durante o ataque alemão de 9 de abril e cobriu a retirada dos camaradas com a sua “Luisinha”, nome que os portugueses davam à metralhadora Lewis) e, anos depois da guerra rumou ao Brasil para garantir a sua subsistência e a da família. Constituiu este ataque “uma grande ofensiva alemã” que infligiu “um número elevadíssimo de baixas”, ficando para o imaginário popular como “o grande mito português da guerra”. A este propósito, a historiadora não se inibe de afirmar:
Esse é o grande mito que fez que durante muitos anos não se olhasse para a Primeira Guerra Mundial. E aí o Estado Novo teve uma grande responsabilidade. Olhava para o Partido Republicano como o partido charneira que empurrou Portugal para aquela desgraça, que foi La Lys, em que tudo correu mal [terão morrido 398 portugueses e cerca de 6500 foram feitos prisioneiros, apesar de os números não serem consensuais]. Temos, depois, o contraponto com a Segunda Guerra Mundial, em que Salazar manteve a neutralidade. La Lys é um mito negativo, de derrota de Portugal numa campanha militar no exterior.”.
E interpreta o sucedido com base na falta de rotação de tropas na linha da frente, devido ao golpe do antigo embaixador de Portugal na Alemanha Sidónio Pais, considerado germanófilo:
Todas as tropas na linha da frente tinham um tempo de rotação. No caso português isso não aconteceu. A pressão era imensa por tudo o que sabemos da vida das trincheiras. E, quando surgem os ataques de 9 de abril de 1918, enquadrados numa ofensiva alemã, as tropas portuguesas estavam tudo menos frescas. Estavam cansadas, muitos homens estavam doentes, muitos tinham regressado a Portugal. E, em dezembro de 1917, tinha acontecido o golpe de Sidónio Pais e todos sabiam que o novo Presidente tinha uma posição bastante particular quanto à Flandres, achando que era altura de diminuir o esforço de guerra.”.
Ora, tendo vindo muitas destas tropas a Portugal de férias e não tendo regressado nem tendo sido substituídas mercê da grande agitação política e social em que o país estava mergulhado, sucedeu que, ao surgir esta grande ofensiva, não houve capacidade de rotação, o que “não tem que ver com má preparação”, porquanto, “se fosse o exército mais bem preparado do mundo, teria sucumbido da mesma maneira que o português”.
Houve também visitas de submarinos alemães a Ponta Delgada e ao Funchal.
No entanto, na ótica da historiadora-intérprete, não se pode dizer que a guerra não tenha chegado a Portugal continental, que se travara somente em África, na Flandres e em águas portuguesas (no âmbito da referida incursão alemã, ocorreu o episódio bastante conhecido que é a morte de Carvalho Araújo, com o afundamento do navio Augusto Castilho por um submarino alemão nos Açores). Ao invés do que se diz, a guerra também chegou cá, pois “a fome que se fez sentir acaba por ser também um reflexo direto da guerra”. Assim, “as dificuldades de bens alimentares de primeira necessidade fizeram que a guerra chegasse ao quotidiano dos portugueses”. Por isso, foi grande a popularidade da neutralidade na Segunda Guerra Mundial, que Ana Paula Pires explica assim:
Oliveira Salazar nesta altura já estava vivo, de saúde e com cabeça para pensar. E tirou grandes lições da Primeira Guerra Mundial. Se olharmos para o que foram as suas medidas durante a Segunda Guerra Mundial, veremos que há ali uma observação direta do que aconteceu.”.
Porém, do meu ponto de vista, não se pode escamotear o terrível flagelo da fome que grassava entre a população portuguesa durante a guerra de 1939-1945, graças à falta e ao racionamento de víveres para as famílias, ponto de haver populações inteiras que barravam a saída dos camiões de milho e outro cereal (para comprarem pelo mesmo preço), enquanto atravessavam a Espanha comboios carregados de alimentos com o irónico dístico “SOBRAS DE PORTUGAL.   
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Ana Paula Pires, quando fez a tese de mestrado, começou por estudar a indústria de moagem de cereais, percebendo que, entre 1914 e 1918, tal indústria teve importante papel em razão da crise de subsistência, a fome. Assim, começou a tentar perceber o que sucedia no quotidiano e as medidas que tomara o Estado para mitigar o impacto da guerra na vida dos cidadãos. Além do processo académico, também a investigadora teve um bisavô que esteve na Flandres, sendo que também ela, por obra do acaso, poderia ter encontrado um baú com uma colher de pau em torno da qual pudesse fazer memória da guerra em que Portugal também entrou.
2018.11.06 – Louro de Carvalho

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