sexta-feira, 23 de novembro de 2018

De onde vêm os direitos humanos, o que são e para que servem?


A INCM (Imprensa Nacional Casa da Moeda) publicou, em parceria com a PGR (Procuradoria-Geral da República), a 2.ª edição da obra “Direitos Humanos: De onde vêm, o que são e para que servem?”, de Raquel Tavares, que resume a evolução histórica dos direitos humanos e da sua definição e principais caraterísticas, bem como o enunciado dos principais instrumentos existentes para promover e proteger estes direitos, a nível universal, regional e nacional.
A obra foi pensada para públicos universitários, em particular nas áreas do Direito e das relações internacionais, mas também para grupos profissionais cuja atividade possa ter um especial impacto na fruição dos direitos humanos, como magistrados judiciais e do Ministério Público, advogados, polícias e assistentes sociais. E, apesar do seu especial enfoque na situação portuguesa, destina-se a ser utilizada em todos os países de língua portuguesa, nomeadamente como ferramenta de apoio a ações de educação e formação em matéria de direitos humanos.
Os seus vetores fundamentais são: liberdade e segurança; processo equitativo; respeito da vida privada e familiar; liberdade de expressão; recurso efetivo; e propriedade e respeito dos bens.
A publicação cuja notícia me chegou por e-mail da própria INCM, juntamente com a visita a Portugal do Presidente da República Popular de Angola (país tantas vezes apontada no défice dos direitos humanos e na pobreza das populações em contraste com a riqueza bilionária de uns poucos) dá-me azo a reflexão, ainda que sucinta, sobre o tema.
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Conceito de Direitos Humanos
Direitos humanos são todas as prerrogativas conexas com a garantia de vida digna para todas as pessoas simplesmente pelo facto de serem pessoas humanas e em nome da dignidade de que se reveste a pessoa humana. Assim, os direitos humanos são todos os direitos e liberdades básicas, considerados fundamentais para dignidade, pelo que têm de ser garantidos a todos os cidadãos em qualquer parte do mundo, em todas as suas dimensões (pessoal, cidadã, familiar, profissional, social, económica e política) e sem qualquer tipo de discriminação, como cor, religião, nacionalidade, género, orientação sexual, ideológica e política.  Constituem, pois, o conjunto de garantias e valores universais que têm como objetivo garantir a dignidade, definível como o conjunto mínimo de condições de uma vida digna, que visam salvaguardar.
De acordo com a ONU (Organização das Nações Unidas), são garantias de proteção das pessoas contra ações ou omissões dos governos que possam colocar em risco a dignidade humana. Nesse sentido, são universais, pois, dizem respeito a todos e a cada um; indivisíveis, pois, como estão entretecidos, não podem desligar-se uns dos outros nem fragmentar-se; inerentes à pessoa humana, pois fazem parte da sua natureza, não podendo ser considerados como um adereço ou acessório; e inalienáveis, pois não podem ser negociados, trocados por valores materiais. 
São direitos humanos básicos: o direito à vida, o direito à liberdade de expressão de opinião e de religião, o direito à saúde, o direito à educação, o direito ao trabalho e o direito ao lazer.
Foram definidos e conquistados ao longo dos tempos, por várias civilizações acompanhando a evolução da Humanidade. Entretanto, as diversas civilizações foram negando ou limitando os direitos humanos a muitas pessoas ou por não as considerarem pessoas ou pessoas de segunda categoria (vg: escravos, crianças, mulheres, negros, amarelos, vermelhos, judeus, ciganos… ), tê-las como inimigas ou malfeitoras ou terem um conceito restrito de vida, paz e bem. 
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Marcos históricos do estabelecimento dos direitos humanos
O primeiro instrumento do estabelecimento dos direitos humanos de que há memória terá sido o Código de Hamurábi (+/-1780 a. C., Mesopotâmia), que estabelece o direito à remuneração básica por dia, a proteção aos mais fracos, aos órfãos, às viúvas e a pena de Talião, consubstanciada no princípio “olho por olho e dente por dente” (determinação contra o costume da punição desproporcionada)
Segue-se, bastante mais tarde, o Cilindro de Ciro (539 a. C., Babilónia), que assume o conceito de “lei natural”, percebida na observação do facto de as pessoas tenderem a seguir certas leis não escritas no curso da vida, e propõe a libertação dos escravos, a libertação dos povos exilados e a liberdade de religião. O seu ideário espalhou-se pela Índia, Grécia e, por fim, chegou a Roma.
Em 450 a. C., Roma institui um conjunto de leis que inscreve em 12 tábuas colocadas frente ao Fórum para que todas as pessoas pudessem vê-las. É a Lei das 12 Tábuas com um conjunto de regras de vida, que estabelece, por exemplo, a eliminação das diferenças de classes, o princípio da igualdade, a definição de procedimentos judiciais, o direito da família e o direito sucessório.
Em 1215, a Magna Carta, na Inglaterra limita poder absoluto do Rei, define os seus deveres para com o povo e confere o direito à justiça (julgamentos pela lei e não pela vontade do monarca).
A Petição de Direito (1628, Inglaterra) estipula que nenhum tributo pode ser imposto sem o consentimento do Parlamento, nenhum súbdito pode ser encarcerado sem motivo demonstrado e a Lei Marcial não pode ser aplicada em tempo de paz.
Em 1776, a Declaração de Independência dos EUA estabelece os direitos individuais e o direito de revolução, proclamando:
Consideramos estas verdades como autoevidentes, que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes são a vida, a liberdade e a busca da felicidade”.
A Constituição dos EUA (1787) e a Declaração dos Direitos (1791) protegem as liberdades fundamentais dos cidadãos dos EUA, como a liberdade de expressão, religião, reunião e petição, e o direito à justiça.
A Revolução Francesa (1789) aprova a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, consagrando os direitos de “liberdade, propriedade, segurança, e resistência à opressão” e de “expressão da vontade geral”. Porém, apesar de proposta, deixa de fora os direitos das mulheres.
A I Convenção de Genebra (1864) estipula a obrigação de prestar o cuidado, sem discriminação, a todo o pessoal militar ferido ou doente, independentemente do lado por que luta.
Em 1945, é criada a ONU (Organização das Nações Unidas) como resposta às atrocidades da II Guerra Mundial, promover a paz e prevenir futuras guerras.
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A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH)
Em 1948 (10 de dezembro), a ONU proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). Eram 56 países: 48 votaram a favor e 8 abstiveram-se. Definiu que todos os direitos são para todas as pessoas sem distinção. É o primeiro documento que compreende direitos civis, políticos, económicos, sociais, culturais e ambientais e considera os direitos fundamentais como universais, indivisíveis, inerentes (à pessoa humana) e inalienáveis.
Segundo a DUDH, os primeiros são os direitos civis e políticos, “orientados para a liberdade do indivíduo e proteção de violações do Estado”, que incluem: os direitos à vida, à liberdade e à segurança do indivíduo; os direitos às liberdades de opinião, de expressão, pensamento, consciência e religião; e os direitos à participação política e às liberdades de associação e de reunião. Vêm, a seguir, os direitos económicos, sociais e culturais, “orientados para a segurança e bem-estar do indivíduo”, que incluem: o direito à educação; os direitos ao trabalho, repouso, alimentação, e habitação; e o direito ao acesso aos cuidados médicos. Depois, vêm os direitos ambientais e de desenvolvimento, orientados para a convivência sadia e para o progresso, que incluem: o direito à Paz; o direito a viver em ambiente limpo e protegido contra a destruição; e o direito dos grupos e povos ao desenvolvimento cultural, político e económico.
É, pois, a uma declaração geral de princípios, embora sem poder vinculativo legal, contudo, com grande impacto mundial junto da opinião pública, de modo que os seus princípios foram transcritos para diversos pactos e convenções internacionais onde constituem obrigações legais que enformam muitas das Constituições democráticas ou leis de valor reforçado.
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Instrumentos posteriores à DUDH
Seguiram-se à DUDH algumas declarações e convenções, de que se destacam:
Em 1951 (28 de julho), a Convenção relativa ao Estatuto Refugiado ou Convenção de Genebra de 1951 define o que é um refugiado e estabelece os direitos dos indivíduos aos quais é concedido o direito de asilo bem como as responsabilidades das nações concedentes. E estipula quais as pessoas que não podem ser qualificadas como refugiados, como criminosos de guerra, e garante a livre circulação para portadores de documento de viagem emitido sob a convenção.
Em 1959 (20 novembro), a Assembleia Geral da ONU aprovou a Declaração dos Direitos das crianças, que vigora em dez princípios/direitos: direito à igualdade, sem distinção de raça, religião ou nacionalidade; direito à especial proteção para o seu desenvolvimento físico, mental e social; direito a um nome e a uma nacionalidade; direito à alimentação, moradia e assistência médica adequada para a criança e a mãe; direito à educação e a cuidados especiais para a criança física ou mentalmente deficiente; direito ao amor e à compreensão por parte dos pais e da sociedade; direito à educação gratuita e ao lazer infantil; direito à prioridade do socorro em caso de catástrofes; direito à proteção contra o abandono e contra a exploração no trabalho; e direito ao crescimento dentro de um espírito de solidariedade, compreensão, amizade e justiça entre os povos.
Em 1965 (21 de dezembro), a assembleia geral da ONU aprovou a Convenção Internacional para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, que reitera o propósito das Nações Unidas de promover o respeito universal pelos Direitos Humanos, sem discriminação de raça, sexo, idioma ou religião, enfatizando os princípios da DUDH, em especial a conceção de que todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos, sem distinção de qualquer espécie e principalmente de raça, cor ou origem nacional. E acrescenta que qualquer doutrina de superioridade baseada em diferenças raciais é cientificamente falsa, moralmente condenável, socialmente injusta e perigosa.
Em 1966 (16 de dezembro) – a assembleia geral da ONU aprovou o Pacto internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP), em seis partes; a primeira refere o direito à autodeterminação; a segunda, o modo como os Estados aplicarão o Pacto; a terceira elenca os chamados “direitos de primeira geração”, ou seja, as liberdades individuais e garantias procedimentais de acesso à justiça e participação política; a quarta prevê a instituição do Comité dos Direitos do Homem, que foi formado no seio das Nações Unidas e faz avaliação periódica da aplicação do PIDCP a todos os estados membros do mesmo; a quinta estipula as regras de interpretação; e a sexta, as regras sobre a entrada em vigor e vinculação dos Estados.
Também a 16 de dezembro de 1966, que entrou em vigor a 3 de janeiro de 1967, a assembleia geral da ONU aprovou o Pacto internacional sobre Direitos Económicos, Sociais e Culturais (PIDESC), um tratado multilateral pelo qual os seus membros se comprometem a trabalhar para a concessão de direitos económicos, sociais e culturais para pessoas físicas, incluindo o direito ao trabalho e o direito à saúde, além do direito à educação e a um padrão de vida adequado.
Em 1979, foi aprovada pela ONU a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres, que entrou em vigor a 3 de setembro de 1981. É o tratado sobre os direitos das mulheres. Por este instrumento, os Estados Partes condenam a discriminação contra as mulheres sob todas as formas e acordam em prosseguir, por todos os meios apropriados e sem demora, uma política tendente a eliminar a discriminação contra as mulheres, comprometendo-se a: inscrever na sua Constituição nacional ou em outra lei apropriada o princípio da igualdade dos homens e das mulheres, se o mesmo não tiver já sido feito, e assegurar por via legislativa ou por outros meios apropriados a aplicação efetiva deste princípio; adotar medidas legislativas e outras medidas apropriadas, incluindo a determinação de sanções, proibindo toda a discriminação contra as mulheres; instaurar a proteção jurisdicional dos direitos das mulheres em pé de igualdade com os homens e garantir, por meio dos tribunais nacionais competentes e outras instituições públicas, a proteção efetiva das mulheres contra qualquer ato discriminatório; abster-se de qualquer ato ou prática discriminatórios contra as mulheres e atuar para que as autoridades e instituições públicas se conformem com esta obrigação; tomar todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação praticada contra as mulheres por uma pessoa, organização ou empresa; tomar todas as medidas apropriadas, incluindo disposições legislativas, para modificar ou revogar qualquer lei, disposição regulamentar, costume ou prática que constitua discriminação contra as mulheres; e revogar todas as disposições penais que constituam discriminação contra as mulheres.
Em 10 de dezembro de 1984, a assembleia geral da ONU aprovou a Convenção contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, pela qual cada Estado Parte, entre outros aspetos, se compromete a tomar medidas legislativas, administrativas, judiciais ou de outra natureza para impedir atos de tortura no território sob a sua jurisdição e a não admitir como justificativa para a tortura nenhuma circunstância excecional, como ameaça ou estado de guerra, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência pública.
Segundo a Convenção, o termo “tortura” designa qualquer ato pelo qual uma violenta dor ou sofrimento, físico ou mental se infligem intencionalmente a uma pessoa, para: se obter dela ou de terceira pessoa informações ou confissão; puni-la por um ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; ou intimidá-la ou coagi-la a ela ou a terceira pessoa. É também tortura a dor ou sofrimento impostos, invocando qualquer razão baseada em discriminação de qualquer espécie, por funcionário público ou outra pessoa (atuando no exercício de funções públicas) ou por instigação dele ou com o seu consentimento ou aquiescência.
Não se tortura as dores ou sofrimentos que sejam consequência, inerentes ou decorrentes de sanções legítimas.
E, a 20 de novembro de 1989, as Nações Unidas adotaram, por unanimidade, a Convenção sobre Direitos Crianças (CDC), que enuncia amplo conjunto de direitos fundamentais – os direitos civis e políticos, e também os direitos económicos, sociais e culturais – de todas as crianças, bem como as respetivas disposições para que sejam aplicados. A CDC, o tratado de direitos humanos internacionais mais amplamente ratificado de sempre, não é só declaração de princípios gerais, pois, quando ratificada, representa um vínculo jurídico para os Estados que a ela aderem, os quais devem adequar as normas de Direito interno às da Convenção para a promoção e proteção eficaz dos direitos e Liberdades nela consagrados; e é um importante instrumento legal devido ao seu caráter universal e ao facto de ter sido ratificado pela quase totalidade dos Estados do mundo. Apenas um país, os Estados Unidos da América, ainda não ratificou a Convenção sobre os Direitos da Criança.
A CDC assenta em 4 pilares fundamentais, relacionados com todos os outros direitos das crianças: a não discriminação, que significa que todas as crianças têm o direito de desenvolver todo o seu potencial – todas as crianças, em todas as circunstâncias, em qualquer momento, em qualquer parte do mundo; o interesse superior da criança, que deve ser uma consideração prioritária em todas as ações e decisões que lhe digam respeito; a sobrevivência e desenvolvimento, sublinhando a importância vital da garantia de acesso a serviços básicos e à igualdade de oportunidades para que as crianças possam desenvolver-se plenamente; e a opinião da criança, o que significa que a voz da criança deve ser ouvida e tida em conta em todos os assuntos que se relacionem com os seus direitos.
A CDC contém 54 artigos, que podem ser divididos em 4 categorias de direitos: os direitos à sobrevivência (vg: o direito a cuidados adequados); os direitos relativos ao desenvolvimento (vg: o direito à educação); os direitos relativos à proteção (vg: o direito de ser protegida contra a exploração); e os direitos de participação (vg: o direito de exprimir a sua própria opinião).
A 20 de dezembro de 1993, a assembleia geral da ONU aprovou a Declaração sobre a Eliminação da Violência sobre Mulheres, um tratado internacional de direitos humanos que enuncia os direitos de todas as mulheres e raparigas e que visa eliminar todas as formas de discriminação contra as mulheres, bem como alcançar a plena igualdade entre mulheres e homens – contrariando as predominantes posições governamentais de que a violência contra as mulheres era um assunto privado, que não exigia intervenção estatal. Na Declaração está contido o reconhecimento da “necessidade urgente da aplicação universal para as mulheres dos direitos e princípios no que diz respeito à igualdade, à segurança, à liberdade, à integridade e à dignidade de todos os seres humanos”.
Para os fins desta Declaração, o termo ‘violência contra as mulheres’ significa qualquer ato de violência de género que resulte ou possa resultar em dano físico, sexual ou psicológico ou sofrimento para as mulheres, incluindo ameaças de tais atos, coerção ou privação arbitrária de liberdade, quer ocorra em público quer ocorra na vida privada. E inclui, sem limitar, a violência física, sexual e psicológica: que ocorre na família, como maus tratos, abuso sexual de crianças do sexo feminino no domicílio, violência relacionada a dote, estupro conjugal, mutilação genital feminina e demais práticas (tradicionais) prejudiciais para as mulheres, violência não conjugal e a violência conexa com exploração; que ocorre na comunidade em geral, como estupro, abuso sexual, assédio sexual e intimidação no trabalho, em instituições educacionais e em outros lugares, tráfico de mulheres e prostituição forçada; e que for perpetrada ou tolerada pelo Estado, onde quer que ocorra.
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A Encíclica “Pacem in Terris”, de 11 de abril de 1963
Dada a relevância humana da matéria e porque busca o bem do homem todo e de todos os seres humanos, a Igreja Católica entende dever proferir uma palavra sobre os direitos humanos, pois, como crê, só quando o grito dos pobres tiver efetivo eco na sociedade e junto dos decisores políticos e económicos é que os direitos de Deus ficarão salvaguardados.    
Assim, a Encíclica, abrindo com a afirmação de que “o fundamento de uma sociedade bem ordenada e fecunda é o princípio de que todo o ser humano é uma pessoa, ou seja: uma natureza dotada de inteligência e vontade livre, declara que, por isso mesmo, ela é sujeito de direitos e de deveres, derivando uns e outros, conjunta e imediatamente, da sua natureza. São, portanto, “direitos universais, invioláveis e inalienáveis» (n.º 9). Seguidamente, a Encíclica ocupa-se, em toda a primeira parte, dos direitos e deveres dos homens, partindo da ideia de que os deveres se definem em função dos direitos (a cada direito correspondem deveres: deveres no próprio de os exercer, deveres nos outros e na sociedade de os reconhecer e respeitar).
Neste sentido, São João XXIII enuncia os direitos de modo a produzir deste modo uma ampla declaração cristã dos Direitos do Homem. Tal declaração, solene e incisiva, abarca todos os aspetos fundamentais da vida dos indivíduos e sociedades.
Sumariando e agrupando os direitos, temos: os direitos à vida, à integridade física e aos recursos correspondentes a um digno padrão de vida (n.º 11); direito ao respeito da dignidade pessoal e à boa reputação (n.º 12); direito à liberdade na escolha do seu estado de vida e, portanto, a constituir família, na base da paridade de direitos entre o homem e a mulher, ou a seguir a vocação ao sacerdócio ou à vida religiosa (n.º 15); direito dos pais a assegurar, com prioridade, o sustento e a educação dos filhos (n.º 17); direito à liberdade na pesquisa da verdade e, salvaguardadas as exigências da ordem moral e do bem comum, à liberdade na expressão e difusão do pensamento e na criação artística (n.º 12); direito a participar nos bens da cultura e a adquirir instrução de base e formação técnico-profissional correspondente ao grau de desenvolvimento da respetiva comunidade (n.º 13); direito a prestar culto a Deus, segundo a sua própria consciência e a professar a sua religião na vida pública e privada (n.º 14); direito à iniciativa, ao trabalho e à liberdade do trabalho (n.º 18); direito a uma justa remuneração do trabalho que, tendo em conta as possibilidades da empresa, permita ao trabalha dor e à sua família um nível de vida conforme à dignidade humana (n.º 20); direito à segurança contra os riscos sociais, designadamente na doença, invalidez, viuvez, velhice, desemprego forçado, e em qualquer outro caso de privação dos meios de sustento por circunstâncias independentes de sua vontade (n.º 11); direito a condições de trabalho que não comprometam a saúde ou a integridade moral do trabalhador e não entravem o desenvolvimento normal da juventude (n.º 19); direito das mulheres a condições de trabalho adequadas às exigências do seu sexo e aos seus deveres de esposas e mães (n.º 19); direito à propriedade privada, mesmo sobre os meios de produção em nome da dignidade humana, da estabilidade familiar e da paz social (n.º 21); direito a exercer a atividade económica com sentido de responsabilidade (n.º 20); direito de reunião e de associação, abrangendo o de conferir às associações a forma que aos seus membros pareça mais conveniente para os fins em vista, e ainda o de agir dentro delas por sua própria conta e risco, em ordem a atingir esses fins (n.º 23); direito à liberdade de movimento e de permanência no interior da comunidade política de que se é cidadão (n.º 25); direito a, por motivos válidos, se deslocar ao estrangeiro e emigrar (n.º 25); direito à informação verídica sobre os acontecimentos públicos (n.º 12); direito a tomar parte ativa na vida pública e a concorrer pessoalmente para o bem comum (n.º 26); e direito à segurança jurídica – eficaz, imparcial e conforme às normas objetivas da justiça – dos seus próprios direitos (n.º 27).
Tão ampla enumeração dos direitos do Homem não tem precedentes na história da Doutrina Social da Igreja (DSI). Aliás, dantes os documentos eclesiásticos focavam-se sobretudo nos deveres e tratavam com prudência e discrição os direitos; agora o Papa recorda os deveres, sem de nenhum modo os diminuir, mas enuncia sobretudo os direitos. Por outro lado, se é certo que os direitos referidos por João XXIII já antes foram apontados por alguns antecessores, nomeadamente Pio XII, também é verdade que certos direitos, sobretudo os incluídos nos dois últimos grupos acima elencados, adquirem agora maior nitidez e relevo. Tudo isso é coerente com a atitude de João XXIII perante o mundo contemporâneo: vendo no acesso à consciência de direitos o verdadeiro e fundamental progresso humano, o Papa só podia optar pela clareza na afirmação dos direitos do Homem. Ao mesmo tempo, a posição que as linhas seguintes explicitam:
A dignidade da pessoa humana exige uma atuação responsável e livre. Importa, por conseguinte, que na vida social o exercício dos direitos, o cumprimento dos deveres e a colaboração nas múltiplas atividades resultem sobretudo de decisões pessoais, fruto da convicção e iniciativa próprias, do sentido pessoal das responsabilidades, mais que da coação, precisão ou forma qualquer de imposição externa. Uma sociedade fundada unicamente em relações de força nada tem de humano: nela veem as pessoas coarctada a sua liberdade, quando, pelo contrário, deveriam ser colocadas em condições tais que se sentissem estimuladas a procurar desenvolver-se e aperfeiçoar-se” (n.º 34).
Esta posição torna-se ainda mais nítida, quando João XXIII declara:
A sociedade humana realiza-se na liberdade digna de cidadãos que, sendo por natureza dotados de razão, assumem a responsabilidade dos seus atos” (n.º 35).
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A Constituição da República Portuguesa
Também a nossa lei fundamental, testemunhando a sua índole democrática em termos da cidadania, da política, da economia e da convivência social, dá largo espaço às liberdades, direitos e garantias, que vinculam todas as entidades públicas e privadas (vd art.º 18.º/1). E fá-lo em nome da dignidade humana e dos princípios da universalidade (art.º 12.º) e da igualdade (art.º 13.º). Obviamente estipula e desenvolve os direitos pessoais, económicos, sociais e políticos definidos na DUDH, na Pacem in Terris, bem como nas declarações, tratados e convenções acima referenciadas. Porém, estabelece um direito que ainda não foi enunciado, o direito à resistência, explicitado no art.º 21.º: “Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública”. Embora de não fácil prática, é um direito inovador dando valor reforçado ao complexo dos direitos, liberdades e garantias.
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Ora, com tantos e tais documentos sobre direitos e contra a discriminação e violência (doméstica, sexual, pública…), como se entende tanta limitação ao exercício dos direitos? Tanta negociata na saúde, educação e seguros e tanta gente sem acesso à educação, saúde e proteção! Habitação (propriedade e renda) a preços proibitivos! Gente perseguida, presa sem sentença?! Onde para o zelo pelo bem comum a que se comprometem os políticos, que deixam campear a especulação?
2018.11.22 – Louro de Carvalho

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