A INCM (Imprensa Nacional Casa
da Moeda) publicou, em parceria com a PGR (Procuradoria-Geral
da República), a 2.ª edição da obra “Direitos
Humanos: De onde vêm, o que são e para que servem?”, de Raquel Tavares, que
resume a evolução histórica dos direitos humanos e da sua definição e
principais caraterísticas, bem como o enunciado dos principais instrumentos
existentes para promover e proteger estes direitos, a nível universal, regional
e nacional.
A obra foi pensada para públicos universitários, em
particular nas áreas do Direito e das relações internacionais, mas também para
grupos profissionais cuja atividade possa ter um especial impacto na fruição
dos direitos humanos, como magistrados judiciais e do Ministério Público,
advogados, polícias e assistentes sociais. E, apesar do seu especial enfoque na
situação portuguesa, destina-se a ser utilizada em todos os países de língua
portuguesa, nomeadamente como ferramenta de apoio a ações de educação e
formação em matéria de direitos humanos.
Os seus vetores fundamentais são: liberdade e segurança;
processo equitativo; respeito da vida privada e familiar; liberdade de
expressão; recurso efetivo; e propriedade e respeito dos bens.
A publicação cuja notícia me chegou por e-mail da própria INCM, juntamente com a visita a Portugal do
Presidente da República Popular de Angola (país
tantas vezes apontada no défice dos direitos humanos e na pobreza das
populações em contraste com a riqueza bilionária de uns poucos) dá-me azo a
reflexão, ainda que sucinta, sobre o tema.
***
Conceito
de Direitos Humanos
Direitos
humanos são todas as prerrogativas conexas com a garantia de vida digna para
todas as pessoas simplesmente pelo facto de serem pessoas humanas e em nome da
dignidade de que se reveste a pessoa humana. Assim, os direitos humanos são todos os direitos e liberdades básicas, considerados fundamentais para
dignidade, pelo que têm de ser garantidos a todos os cidadãos em qualquer parte
do mundo, em todas as suas dimensões (pessoal, cidadã,
familiar, profissional, social, económica e política) e sem qualquer tipo de
discriminação, como cor, religião, nacionalidade, género, orientação sexual,
ideológica e política. Constituem, pois, o conjunto de garantias e
valores universais que
têm como objetivo garantir a dignidade, definível como o conjunto mínimo de
condições de uma vida digna, que visam salvaguardar.
De acordo com
a ONU (Organização das
Nações Unidas),
são garantias de proteção das pessoas contra ações ou omissões
dos governos que possam colocar em risco a dignidade humana. Nesse sentido, são
universais,
pois, dizem respeito a todos e a cada um; indivisíveis,
pois, como estão entretecidos, não podem desligar-se uns dos outros nem
fragmentar-se; inerentes à pessoa humana, pois fazem parte da sua natureza,
não podendo ser considerados como um adereço ou acessório; e inalienáveis, pois não podem ser
negociados, trocados por valores materiais.
São direitos
humanos básicos: o direito à vida, o direito à liberdade de
expressão de opinião e de religião, o direito à saúde, o direito à
educação, o direito ao trabalho e o direito ao lazer.
Foram
definidos e conquistados ao longo dos tempos, por várias civilizações
acompanhando a evolução da Humanidade. Entretanto, as diversas civilizações
foram negando ou limitando os direitos humanos a muitas pessoas ou por não as
considerarem pessoas ou pessoas de segunda categoria (vg:
escravos, crianças, mulheres, negros, amarelos, vermelhos, judeus, ciganos… ), tê-las como inimigas ou
malfeitoras ou terem um conceito restrito de vida, paz e bem.
***
Marcos
históricos do estabelecimento dos direitos humanos
O
primeiro instrumento do estabelecimento dos direitos humanos de que há memória
terá sido o Código de Hamurábi (+/-1780 a. C.,
Mesopotâmia), que
estabelece o direito à remuneração básica por dia, a proteção aos mais fracos,
aos órfãos, às viúvas e a pena de Talião, consubstanciada no princípio “olho
por olho e dente por dente” (determinação contra o costume da
punição desproporcionada)
Segue-se,
bastante mais tarde, o Cilindro de Ciro (539
a. C., Babilónia),
que assume o conceito de “lei natural”,
percebida na observação do facto de as pessoas tenderem a seguir certas leis
não escritas no curso da vida, e propõe a libertação dos escravos, a
libertação dos povos exilados e a liberdade de religião. O seu ideário espalhou-se pela Índia, Grécia e, por fim,
chegou a Roma.
Em 450
a. C., Roma institui um conjunto de leis que inscreve em 12 tábuas colocadas frente
ao Fórum para que todas as pessoas pudessem vê-las. É a Lei das 12 Tábuas com um
conjunto de regras de vida, que estabelece, por exemplo, a eliminação das
diferenças de classes, o princípio da igualdade, a definição de procedimentos
judiciais, o direito da família e o direito sucessório.
Em 1215,
a Magna
Carta, na Inglaterra limita poder absoluto do Rei, define os seus
deveres para com o povo e confere o direito à justiça (julgamentos
pela lei e não pela vontade do monarca).
A Petição
de Direito (1628, Inglaterra) estipula que nenhum tributo
pode ser imposto sem o consentimento do Parlamento, nenhum súbdito pode ser
encarcerado sem motivo demonstrado e a Lei Marcial não pode ser aplicada em
tempo de paz.
Em 1776,
a Declaração
de Independência dos EUA estabelece os direitos individuais e o direito
de revolução, proclamando:
“Consideramos estas verdades como autoevidentes, que todos os homens são
criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis,
que entre estes são a vida, a liberdade e a busca da felicidade”.
A Constituição
dos EUA (1787) e a Declaração dos Direitos (1791) protegem as liberdades fundamentais
dos cidadãos dos EUA, como a liberdade de expressão, religião, reunião e
petição, e o direito à justiça.
A Revolução
Francesa (1789)
aprova a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, consagrando os
direitos de “liberdade, propriedade, segurança, e resistência à opressão” e de
“expressão da vontade geral”. Porém, apesar de proposta, deixa de fora os direitos
das mulheres.
A I
Convenção de Genebra (1864) estipula a obrigação de prestar o cuidado, sem
discriminação, a todo o pessoal militar ferido ou doente, independentemente do
lado por que luta.
Em 1945,
é criada a ONU (Organização das Nações Unidas) como resposta às atrocidades da
II Guerra Mundial, promover a paz e prevenir futuras guerras.
***
A
Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH)
Em 1948
(10
de dezembro), a ONU
proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). Eram 56 países: 48 votaram a
favor e 8 abstiveram-se. Definiu que todos os direitos são para todas as
pessoas sem distinção. É o primeiro documento que compreende direitos civis,
políticos, económicos, sociais, culturais e ambientais e considera os direitos
fundamentais como universais, indivisíveis, inerentes (à
pessoa humana) e
inalienáveis.
Segundo
a DUDH, os primeiros são os direitos
civis e políticos, “orientados para a liberdade do indivíduo e proteção de
violações do Estado”, que incluem: os direitos à vida, à liberdade e à
segurança do indivíduo; os direitos às liberdades de opinião, de expressão,
pensamento, consciência e religião; e os direitos à participação política e às
liberdades de associação e de reunião. Vêm, a seguir, os direitos económicos, sociais e culturais, “orientados para a
segurança e bem-estar do indivíduo”, que incluem: o direito à educação; os direitos
ao trabalho, repouso, alimentação, e habitação; e o direito ao acesso aos
cuidados médicos. Depois, vêm os direitos
ambientais e de desenvolvimento, orientados para a convivência sadia e para
o progresso, que incluem: o direito à Paz; o direito a viver em ambiente limpo
e protegido contra a destruição; e o direito dos grupos e povos ao
desenvolvimento cultural, político e económico.
É, pois,
a uma declaração geral de princípios, embora sem poder vinculativo legal,
contudo, com grande impacto mundial junto da opinião pública, de modo que os
seus princípios foram transcritos para diversos pactos e convenções
internacionais onde constituem obrigações legais que enformam muitas das
Constituições democráticas ou leis de valor reforçado.
***
Instrumentos
posteriores à DUDH
Seguiram-se
à DUDH algumas declarações e convenções, de que se destacam:
Em 1951 (28 de julho), a Convenção relativa ao Estatuto
Refugiado ou Convenção de Genebra de 1951 define o
que é um refugiado e estabelece os direitos dos indivíduos aos quais
é concedido o direito de asilo bem como as responsabilidades das
nações concedentes. E estipula quais as pessoas que não podem ser qualificadas como
refugiados, como criminosos de guerra, e garante a livre circulação para
portadores de documento de viagem emitido sob a convenção.
Em 1959 (20 novembro), a Assembleia Geral da ONU aprovou a Declaração
dos Direitos das crianças, que vigora em dez princípios/direitos: direito à igualdade, sem distinção de raça,
religião ou nacionalidade; direito
à especial proteção para o seu desenvolvimento físico, mental e
social; direito a um nome e a uma nacionalidade; direito à alimentação, moradia e assistência médica adequada para a criança e a
mãe; direito à educação e a cuidados especiais para a
criança física ou mentalmente deficiente; direito ao amor e à
compreensão por parte dos pais e da sociedade; direito à educação
gratuita e ao lazer infantil; direito
à prioridade do socorro em caso de
catástrofes; direito à proteção contra o abandono e contra a
exploração no trabalho; e direito ao crescimento
dentro de um espírito de solidariedade, compreensão, amizade e justiça entre os
povos.
Em 1965 (21 de
dezembro), a assembleia geral da ONU aprovou
a Convenção
Internacional para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, que reitera o propósito das Nações Unidas de promover o respeito
universal pelos Direitos Humanos, sem discriminação de raça, sexo, idioma ou
religião, enfatizando os princípios da DUDH, em especial a conceção de que
todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos, sem distinção
de qualquer espécie e principalmente de raça, cor ou origem nacional. E acrescenta
que qualquer doutrina de superioridade baseada em diferenças raciais é
cientificamente falsa, moralmente condenável, socialmente injusta e perigosa.
Em 1966 (16
de dezembro) – a assembleia geral da ONU aprovou o Pacto internacional sobre os Direitos
Civis e Políticos (PIDCP),
em seis partes; a primeira refere o direito à autodeterminação; a segunda, o modo como os Estados aplicarão o Pacto; a
terceira elenca os chamados “direitos de primeira geração”, ou seja, as
liberdades individuais e garantias procedimentais de acesso à justiça e
participação política; a quarta prevê a instituição do Comité dos Direitos do
Homem, que foi formado no seio das Nações Unidas e faz avaliação
periódica da aplicação do PIDCP a todos os estados membros do mesmo; a quinta estipula as regras de interpretação; e a sexta, as regras sobre a entrada
em vigor e vinculação dos Estados.
Também a
16 de dezembro de 1966, que entrou em vigor a 3 de janeiro de 1967, a assembleia geral da ONU aprovou o Pacto internacional sobre Direitos
Económicos, Sociais e Culturais (PIDESC), um tratado multilateral pelo
qual os seus membros se comprometem a trabalhar para a concessão de
direitos económicos, sociais e culturais para pessoas físicas,
incluindo o direito ao trabalho e o direito à saúde, além do direito à educação
e a um padrão de vida adequado.
Em 1979, foi aprovada pela ONU a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra
as mulheres, que entrou em vigor a 3 de setembro de 1981. É o tratado sobre
os direitos das mulheres. Por este instrumento, os Estados Partes condenam a
discriminação contra as mulheres sob todas as formas e acordam em prosseguir,
por todos os meios apropriados e sem demora, uma política tendente a eliminar a
discriminação contra as mulheres, comprometendo-se a: inscrever na sua
Constituição nacional ou em outra lei apropriada o princípio da igualdade dos homens
e das mulheres, se o mesmo não tiver já sido feito, e assegurar por via
legislativa ou por outros meios apropriados a aplicação efetiva deste
princípio; adotar medidas legislativas e
outras medidas apropriadas, incluindo a determinação de sanções, proibindo toda
a discriminação contra as mulheres; instaurar a proteção jurisdicional dos
direitos das mulheres em pé de igualdade com os homens e garantir, por meio dos
tribunais nacionais competentes e outras instituições públicas, a proteção
efetiva das mulheres contra qualquer ato discriminatório; abster-se de qualquer
ato ou prática discriminatórios contra as mulheres e atuar para que as
autoridades e instituições públicas se conformem com esta obrigação; tomar
todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação praticada contra as
mulheres por uma pessoa, organização ou empresa; tomar todas as medidas
apropriadas, incluindo disposições legislativas, para modificar ou revogar
qualquer lei, disposição regulamentar, costume ou prática que constitua discriminação
contra as mulheres; e revogar todas as disposições penais que constituam
discriminação contra as mulheres.
Em 10 de
dezembro de 1984, a assembleia
geral da ONU aprovou
a Convenção
contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, pela qual cada Estado Parte, entre outros aspetos,
se compromete a tomar
medidas legislativas, administrativas, judiciais ou de outra natureza para
impedir atos de tortura no território sob a sua jurisdição e a não admitir como
justificativa para a tortura nenhuma circunstância excecional, como ameaça ou
estado de guerra, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência
pública.
Segundo
a Convenção, o termo “tortura” designa qualquer ato pelo qual uma violenta dor
ou sofrimento, físico ou mental se infligem intencionalmente a uma pessoa, para:
se obter dela ou de terceira pessoa informações ou confissão; puni-la por um
ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido;
ou intimidá-la ou coagi-la a ela ou a terceira pessoa. É também tortura a dor
ou sofrimento impostos, invocando qualquer razão baseada em discriminação de
qualquer espécie, por funcionário público ou outra pessoa (atuando
no exercício de funções públicas)
ou por instigação dele ou com o seu consentimento ou aquiescência.
Não se tortura
as dores ou sofrimentos que sejam consequência, inerentes ou decorrentes de
sanções legítimas.
E, a 20 de novembro de 1989, as Nações Unidas
adotaram, por unanimidade, a Convenção
sobre Direitos Crianças (CDC), que enuncia amplo conjunto de direitos fundamentais
– os direitos civis e políticos, e também os direitos económicos, sociais e
culturais – de todas as crianças, bem como as respetivas disposições para que
sejam aplicados. A CDC, o tratado de
direitos humanos internacionais mais amplamente ratificado de sempre, não é só declaração de princípios gerais, pois, quando ratificada,
representa um vínculo jurídico
para os Estados que a ela aderem, os quais devem adequar as normas de Direito
interno às da Convenção para a promoção e proteção eficaz dos direitos e
Liberdades nela consagrados; e é um
importante instrumento legal devido ao seu caráter universal e ao facto de ter
sido ratificado pela quase totalidade dos Estados do mundo. Apenas um
país, os Estados Unidos da América, ainda não ratificou a Convenção sobre os
Direitos da Criança.
A CDC assenta em 4 pilares fundamentais, relacionados
com todos os outros direitos das crianças: a não discriminação, que
significa que todas as crianças têm o direito de desenvolver todo o seu
potencial – todas as crianças, em todas as circunstâncias, em qualquer momento,
em qualquer parte do mundo; o interesse superior da criança, que deve ser uma
consideração prioritária em todas as ações e decisões que lhe digam respeito; a sobrevivência
e desenvolvimento, sublinhando
a importância vital da garantia de acesso a serviços básicos e à igualdade de
oportunidades para que as crianças possam desenvolver-se plenamente; e a opinião da
criança, o que
significa que a voz da criança deve ser ouvida e tida em conta em todos os assuntos
que se relacionem com os seus direitos.
A CDC contém 54
artigos, que podem ser divididos em 4
categorias de direitos: os direitos
à sobrevivência (vg: o
direito a cuidados adequados); os direitos relativos ao desenvolvimento (vg: o direito à educação); os direitos
relativos à proteção (vg: o
direito de ser protegida contra a exploração); e os direitos de participação (vg: o direito de exprimir a sua
própria opinião).
A 20 de dezembro de
1993, a assembleia geral da ONU aprovou a Declaração sobre a Eliminação da
Violência sobre Mulheres, um tratado internacional de direitos humanos
que enuncia os direitos de todas as mulheres e raparigas e que visa eliminar
todas as formas de discriminação contra as mulheres, bem como alcançar a plena
igualdade entre mulheres e homens – contrariando as
predominantes posições governamentais de que a violência contra as mulheres era
um assunto privado, que não exigia intervenção estatal. Na Declaração está
contido o reconhecimento da “necessidade urgente da aplicação universal para as
mulheres dos direitos e princípios no que diz respeito à igualdade, à
segurança, à liberdade, à integridade e à dignidade de todos os seres humanos”.
Para os fins
desta Declaração, o termo ‘violência contra as mulheres’ significa qualquer ato
de violência de género que resulte ou possa resultar em dano físico, sexual ou
psicológico ou sofrimento para as mulheres, incluindo ameaças de tais atos,
coerção ou privação arbitrária de liberdade, quer ocorra em público quer ocorra
na vida privada. E inclui, sem limitar, a violência física, sexual e
psicológica: que ocorre na família,
como maus tratos, abuso sexual de crianças do sexo feminino no domicílio,
violência relacionada a dote, estupro conjugal, mutilação genital feminina e
demais práticas (tradicionais)
prejudiciais para as mulheres, violência não conjugal e a violência conexa
com exploração; que ocorre na
comunidade em geral, como estupro, abuso sexual, assédio sexual e
intimidação no trabalho, em instituições educacionais e em outros
lugares, tráfico de mulheres e prostituição forçada; e que for perpetrada ou tolerada pelo Estado, onde
quer que ocorra.
***
A Encíclica “Pacem in Terris”, de 11 de abril de 1963
Dada a
relevância humana da matéria e porque busca o bem do homem todo e de todos os
seres humanos, a Igreja Católica entende dever proferir uma palavra sobre os direitos
humanos, pois, como crê, só quando o grito dos pobres tiver efetivo eco na
sociedade e junto dos decisores políticos e económicos é que os direitos de Deus
ficarão salvaguardados.
Assim, a
Encíclica, abrindo com a afirmação de que “o fundamento de uma sociedade bem
ordenada e fecunda é o princípio de que todo o ser humano é uma pessoa, ou seja:
uma natureza dotada de inteligência e vontade livre, declara que, por isso
mesmo, ela é sujeito de direitos e de deveres, derivando uns e outros, conjunta
e imediatamente, da sua natureza. São, portanto, “direitos universais,
invioláveis e inalienáveis» (n.º 9). Seguidamente, a Encíclica ocupa-se, em toda a
primeira parte, dos direitos e deveres dos homens, partindo da ideia de que os
deveres se definem em função dos direitos (a
cada direito correspondem deveres: deveres no próprio de os exercer, deveres
nos outros e na sociedade de os reconhecer e respeitar).
Neste
sentido, São João XXIII enuncia os direitos de modo a produzir deste modo uma ampla
declaração cristã dos Direitos do Homem. Tal declaração, solene e
incisiva, abarca todos os aspetos fundamentais da vida dos indivíduos e
sociedades.
Sumariando
e agrupando os direitos, temos: os direitos à
vida, à integridade física e aos recursos correspondentes a um digno padrão de
vida (n.º 11);
direito ao respeito da dignidade pessoal
e à boa reputação (n.º 12); direito à liberdade
na escolha do seu estado de vida e, portanto, a constituir família, na base
da paridade de direitos entre o homem e a mulher, ou a seguir a vocação ao
sacerdócio ou à vida religiosa (n.º 15); direito dos pais a assegurar, com prioridade, o sustento e a
educação dos filhos (n.º 17); direito à liberdade
na pesquisa da verdade e, salvaguardadas as exigências da ordem moral e do
bem comum, à liberdade na expressão e difusão
do pensamento e na criação artística (n.º 12); direito a participar nos bens da cultura e a adquirir instrução de base e
formação técnico-profissional correspondente ao grau de desenvolvimento da
respetiva comunidade (n.º 13); direito a prestar
culto a Deus, segundo a sua própria consciência e a professar a sua religião na vida pública e privada (n.º
14); direito à iniciativa, ao trabalho e à liberdade do trabalho (n.º 18); direito a uma justa remuneração do trabalho que, tendo
em conta as possibilidades da empresa, permita ao trabalha dor e à sua família
um nível de vida conforme à dignidade humana (n.º 20); direito à segurança contra os riscos sociais, designadamente na doença, invalidez, viuvez, velhice, desemprego
forçado, e em qualquer outro caso de privação dos meios de sustento por
circunstâncias independentes de sua vontade (n.º
11); direito a condições de trabalho que não comprometam
a saúde ou a integridade moral do trabalhador e não entravem o desenvolvimento
normal da juventude (n.º 19); direito das
mulheres a condições de trabalho adequadas às exigências do seu sexo e aos seus
deveres de esposas e mães (n.º 19); direito à propriedade privada, mesmo sobre os meios de produção em nome da
dignidade humana, da estabilidade familiar e da paz social (n.º
21); direito a
exercer a atividade económica com
sentido de responsabilidade (n.º 20); direito de reunião e de associação, abrangendo o de
conferir às associações a forma que aos seus membros pareça mais conveniente
para os fins em vista, e ainda o de agir dentro delas por sua própria conta e
risco, em ordem a atingir esses fins (n.º 23); direito à liberdade de movimento e de permanência no interior da comunidade
política de que se é cidadão (n.º 25); direito a, por motivos
válidos, se deslocar ao estrangeiro e
emigrar (n.º 25);
direito à informação verídica sobre
os acontecimentos públicos (n.º 12); direito a tomar parte ativa na vida pública e a concorrer pessoalmente para o bem
comum (n.º 26);
e direito à segurança jurídica –
eficaz, imparcial e conforme às normas objetivas da justiça – dos seus próprios
direitos (n.º 27).
Tão
ampla enumeração dos direitos do Homem não tem precedentes na história da
Doutrina Social da Igreja (DSI). Aliás, dantes os documentos eclesiásticos
focavam-se sobretudo nos deveres e tratavam com prudência e discrição os
direitos; agora o Papa recorda os deveres, sem de nenhum modo os diminuir, mas
enuncia sobretudo os direitos. Por outro lado, se é certo que os direitos
referidos por João XXIII já antes foram apontados por alguns antecessores,
nomeadamente Pio XII, também é verdade que certos direitos, sobretudo os incluídos
nos dois últimos grupos acima elencados, adquirem agora maior nitidez e relevo.
Tudo isso é coerente com a atitude de João XXIII perante o mundo contemporâneo:
vendo no acesso à consciência de direitos o verdadeiro e fundamental progresso
humano, o Papa só podia optar pela clareza na afirmação dos direitos do Homem.
Ao mesmo tempo, a posição que as linhas seguintes explicitam:
“A dignidade da pessoa humana exige uma atuação responsável e livre.
Importa, por conseguinte, que na vida social o exercício dos direitos, o
cumprimento dos deveres e a colaboração nas múltiplas atividades resultem
sobretudo de decisões pessoais, fruto da convicção e iniciativa próprias, do
sentido pessoal das responsabilidades, mais que da coação, precisão ou forma
qualquer de imposição externa. Uma sociedade fundada unicamente em relações de
força nada tem de humano: nela veem as pessoas coarctada a sua liberdade,
quando, pelo contrário, deveriam ser colocadas em condições tais que se
sentissem estimuladas a procurar desenvolver-se e aperfeiçoar-se” (n.º 34).
Esta
posição torna-se ainda mais nítida, quando João XXIII declara:
“A sociedade humana realiza-se na liberdade digna de cidadãos que, sendo
por natureza dotados de razão, assumem a responsabilidade dos seus atos”
(n.º 35).
***
A
Constituição da República Portuguesa
Também a
nossa lei fundamental, testemunhando a sua índole democrática em termos da
cidadania, da política, da economia e da convivência social, dá largo espaço às
liberdades, direitos e garantias, que vinculam todas as entidades públicas e
privadas (vd art.º 18.º/1).
E fá-lo em nome da dignidade humana e dos princípios da universalidade (art.º
12.º) e da igualdade
(art.º
13.º). Obviamente estipula
e desenvolve os direitos pessoais, económicos, sociais e políticos definidos na
DUDH, na Pacem in Terris, bem como
nas declarações, tratados e convenções acima referenciadas. Porém, estabelece
um direito que ainda não foi enunciado, o direito à resistência, explicitado no
art.º 21.º: “Todos têm o direito de
resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e
de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à
autoridade pública”. Embora de não fácil prática, é um direito inovador
dando valor reforçado ao complexo dos direitos, liberdades e garantias.
***
Ora, com
tantos e tais documentos sobre direitos e contra a discriminação e violência (doméstica,
sexual, pública…),
como se entende tanta limitação ao exercício dos direitos? Tanta negociata na saúde,
educação e seguros e tanta gente sem acesso à educação, saúde e proteção!
Habitação (propriedade e renda) a preços proibitivos! Gente perseguida, presa sem
sentença?! Onde para o zelo pelo bem comum a que se comprometem os políticos,
que deixam campear a especulação?
2018.11.22 –
Louro de Carvalho
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