quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Sobre a presença de deputado no hemiciclo da AR estando longe algures


O coro das oposições de minudência, à falta de melhor tema em agenda, encheu as pantalhas da comunicação social porque deputado de determinado partido político com assento parlamentar teve a sua presença assinalada numa sessão plenária da Assembleia da República (AR) estando naquele horizonte temporal bem longe de Lisboa e obviamente do Palácio de São Bento. Também foi badalado o facto de o mesmo senhor Deputado e secretário-geral do seu partido político ter assinado a folha de presenças numa sessão de trabalho de comissão parlamentar, se ter ausentado de imediato e não ter regressado à respetiva sessão.
Antes de mais e para evitar equívocos de entendimento sobre a ética e a legalidade destes comportamentos, devo dizer que são comportamentos absolutamente reprováveis. No entanto, os nossos reputados vêm incorrendo em erros bem mais graves e cobertos pela lei, como já tem sido denunciado e mais adiante se reiterará. E é só por isso que falo de minudências e mesmo de hipotética falta de agenda política ou então de erro na hierarquização das prioridades. Por outro lado, pode e deve assinalar-se neste derramamento de tinta ou de saliva um ato de hipocrisia e arremesso político. Muitos falham em matéria procedimental. E o deputado ou deputada totalmente inocente – é desejável que aja – que atire a primeira pedra!
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Em termos da intervenção cidadã, os membros dum órgão colegial devem primar pela assiduidade e pontualidade. Assim, os membros duma associação, sociedade, grémio, cooperativa, fundação ou clube devem participar nas sessões de assembleia geral, sendo que as suas faltas, entradas com atraso ou abandonos precoces têm implicações apenas ao nível da discussão das matérias e na votação quando a ela há lugar. O mesmo não digo das sessões do órgão diretivo ou do órgão de fiscalização em que os respetivos elementos representam o coletivo alargado.
Quanto às assembleias de freguesia, juntas de freguesia e assembleias municipais e câmaras municipais, a situação é diversa. E as consequências de quebra de assiduidade e/ou de pontualidade deveriam ser mais gravosas do que efetivamente o são (perda do quantitativo atribuído em senha de presença e eventualmente perda de mandato). Na verdade, os titulares de órgãos autárquicos são representantes das populações que os elegem, sendo que a sua responsabilidade no órgão ou órgãos que integram não é meramente pessoal, mas sobretudo vicária. Por isso, deviam os seus desvios procedimentais ter uma penalização corrente congruente com essa qualidade de representantes (de associado, sócio, agremiado ou equivalente), de acordo com o previsto ou a prever no respetivo regimento. E, no caso dos deputados à Assembleia da República, câmaras municipais (presidente e vereadores em regime de permanência) e presidentes de juntas de freguesia, que têm um vencimento compatível com o cargo que desempenham e cuja responsabilidade é pessoal na certa (de boa consciência), mas também e sobretudo política (em função da comunidade que representam).
No entanto, deputados à AR e titulares de autarquia em regime de permanência usufruem mensalmente duma verba a título de despesas de representação paga juntamente com o vencimento. E os deputados à AR são pagos com uma verba adicional (senhas de presença) por cada sessão plenária ou de comissão em que participam – e isto sem falar das despesas de deslocação e ajudas de custo por deslocação para o e do circulo político por que foram eleitos e onde pretendem fazer o chamado trabalho político, como se o trabalho no Parlamento não fosse um trabalho eminentemente político.
Pode dizer-se que os deputados, dado o peso financeiro do alojamento em Lisboa terão dificuldades em sobreviver com a remuneração parlamentar. Há formas de resolver o problema: aumento do vencimento-base do deputado; desempenho rotativo dos diversos cargos ao menos por parte dos deputados repetentes (Os grupos parlamentares não têm os assessores políticos e técnicos?), com exceção dos que vêm a seguir, para acabar com a distinção entre deputados de primeira e deputados de segunda; abolição das gratificações suplementares de alguns deputados com exceção do presidente e dos vice-presidentes da AR, bem como dos líderes dos respetivos grupos parlamentares pelas funções de liderança e representação do Parlamento; alojamento em edifícios do Estado com o mínimo de condições para que os deputados possam viver condignamente na capital e trabalhar com assiduidade e pontualidade – ou cada partido se responsabilizar pelo alojamento dos seus deputados –, faltando apenas por motivos de força maior ou trabalho político extraparlamentar de todo inadiável, com falta registada e justificada por motivos comprovados. De certeza que a credibilidade parlamentar seria readquirida ou reforçada, ou seja, os cidadãos eleitores rever-se-iam mais fácil e orgulhosamente nos seus eleitos e confiariam que eles estavam dedicados incondicionalmente ao serviço do bem comum.
Porém, o espetáculo da República assemelha-se, com honrosas exceções, a uma panóplia de predadores dos partidos e do Estado para a locupletação pessoal e dos amigos a que se alia a promiscuidade entre os grandes interesses privados e os negócios do Estado – salta-se de empresa para o Governo e Parlamento e vice-versa, encomendam-se pareceres jurídicos e económicos a grandes grupos para futuras leis em que se deixam subtis alçapões para os grandes poderem escapar com eficácia –, sendo que, regra geral, são lesados os interesses do Estado. Com efeito, o estatuto de deputado está subvertido a nível das remunerações, como se verificou, e a nível dos procedimentos, já que são habitualmente as mesmas caras que se veem a usar da palavra no plenário, a menos que seja para defender causas contra as quais se estava na oposição e que têm de ser retomadas na situação, o que passa a ser defendido por deputados de segunda ou de última plana (Os deputados são 230!). E, se formos a pesquisar o volume de intervenções de cada um dos deputados, ficamos com a sensação de que a maior parte não tem intervenção, limitando-se à presença e a participar nas votações. De resto, lê-se o jornal, boceja-se, dorme-se, sai-se para fumar ou tomar café, pintam-se as unhas, pesquisa-se no computador para fins políticos, profissionais e pessoais (alguns de dúbia validade), falta-se, chega-se atrasado, fazem-se grandes clareiras humanas nos cadeirais do hemiciclo… Uns têm protagonismo excessivo; outros têm crasso apagamento suspeitando-se de que muitos nem sabem o que estão a votar.
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Atentando no aludido caso do início desta prosa – um só caso porque os dois procedimentos enunciados aconteceram em redor do mesmo deputado –, devo dizer que assinar uma folha de presença e abandonar a sessão sem regresso me parece mais contrário à ética do que alguém registar a presença de quem não está, se tal sucede por engano ou inépcia informática.
A primeira vertente não podia ter acontecido sob pena de a prestação “parlamentar” vir a ser “para lamentar” e deve ser rotundamente censurada. Quanto à segunda, devo dizer que, se efetivamente houve engano e alguém utilizou o computador do deputado ausente para colher informação pertinente, facto de que alegadamente terá resultado uma automática marcação de presença, o utilizador fortuito deveria ser rápido a comunicar o caso a quem de direito para que a presença viesse a ser anulada. Também não é plausível que informação política pertinente seja exclusiva de um deputado por mais altamente que ele esteja colocado no partido; e, se o é, não poderá ser utilizada de imediato. E, ainda, logo que o caso foi denunciado, o líder parlamentar respetivo deveria ter mandado inquirir o que se passou e o utilizador fortuito do computador deveria adiantar-se a dar explicações públicas logo que a comunicação social badalou o facto.       
Porém, a insigne deputada que “se enganou” (?) e registou a presença de correligionário ausente reagiu abespinhadamente e apodou os críticos de “virgens ofendidas”. E, de facto, nós, os cidadãos eleitores, somos virgens ofendidas e donzéis ofendidos porque elegemos os nossos representantes, pagamos-lhes, confiamos neles, mas eles, muitas vezes, não defendem os nossos legítimos interesses, traem a nossa confiança e brincam nas nossas costas e às vezes na nossa cara. Nos, ao contrário, sujeitamo-nos às leis, impostos, taxas e taxinhas (pagamos tudo: só falta porem-nos um contador no gargalo para pagarmos o ar que respiramos); somos mal pagos económica e socialmente no trabalho, na doença, no desemprego e na aposentação/reforma; levamos com a justiça lenta, pesada e ineficaz; aturamos a segurança pública sem autoridade e timorata, criticada por prepotência, racismo e xenofobia; e assistimos a Forças Armadas valorosas, mas exíguas, reduzidas à insignificância pelo poder político e opinião pública adrede mobilizada.
O presidente do partido em causa e o respetivo líder parlamentar censuraram o caso, mas rapidamente o consideraram resolvido. Por seu turno, o Presidente da AR mostrou-se agastado com estes comportamentos, que desprestigiam em si a prestação parlamentar, mas, ao mesmo tempo, confessa não ter poder disciplinar sobre os deputados, poder que só tem em relação aos funcionários do Parlamento. E disse que não é preciso alterar os procedimentos técnicos, mas os comportamentos de cada um.
Sendo assim – e parece que é, pois, ao Presidente cabe a justificação das faltas dos deputados e muitas competências relacionadas ou com a condução dos trabalhos ou com a representação da Assembleia e eventualmente o Estado –, há que legislar no sentido de morigerar quer o estatuto dos deputados, quer os procedimentos dos mesmos, de modo a dignificar a ação parlamentar, bem como alterar o regimento da AR, com vista a estabelecer sanções a quem evidencie comportamentos indesejáveis em relação ao hemiciclo e às comissões e grupos de trabalho.
É óbvio que a separação de poderes ou, melhor, dos órgãos do poder soberano implica a existência de controlo interno sobre os procedimentos, o que parece faltar no Parlamento (o que não tem nada a ver com a exigível liberdade e irresponsabilidade do deputado por suas declarações e opiniões) e escrutínio externo da parte de outros órgãos. Assim, o Parlamento fiscaliza a atividade do Governo através de requerimentos a ele dirigidos e aos seus membros e pela aprovação ou não do programa do Governo e de moções de censura e de confiança; o Presidente da República (PR) acompanha a atividade governativa através da informação que o Primeiro-Ministro lhe fornece e promulgando ou vetando os seus decretos-lei e decretos regulamentares ou submetendo-os à apreciação do Tribunal Constitucional (TC) para aferir da constitucionalidade ou da legalidade; o PR acompanha a atividade parlamentar dirigindo mensagens à AR e promulgando os seus decretos para valerem como lei ou vetando-os ou, ainda, submetendo-os à apreciação do TC para aferir da sua constitucionalidade ou da sua legalidade e pode dissolver o Parlamento; o TC acompanha a atividade do Parlamento e do Governo fiscalizando a constitucionalidade e a legalidade das normas por eles aprovadas e acompanha a atividade do PR declarando a sua incapacidade temporária ou definitiva para o exercício de funções; e o Parlamento acompanha a atividade presidencial autorizando-lhe as deslocações para fora do país, podendo destituí-lo em caso de incumprimento. Porém, o Parlamento não dispõe dum controlo interno dos procedimentos dos deputados a quem nem exige documentos comprovativos de despesas e de justificação de faltas; e o poder judiciário, que pode escrutinar todos os outros órgãos de soberania sob determinadas condições, não dispõe de mecanismos de controlo externo (por parte dos outros órgãos do poder político), tendo mesmo sido difícil exercer o direito de crítica, a que responde habitualmente em termos corporativos.
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Expostas estas considerações nesta mal alinhavada prosa, conclui-se que o Presidente da AR tem razão em censurar os comportamentos desviantes dos deputados, mas não a tem quando assenta em que não é preciso alterar os procedimentos técnicos, pois, se eles permitem a fraude ou a insuficiência, têm de ser revistos. Por outro lado, falta, como foi indicado, apurar a legislação atinente a esta matéria e o regimento da AR, bem como alterar o sistema de relações entre o Estado e os grandes grupos empresariais, acabando com a promiscuidade e com a lesão do interesse público.
Por fim, enquanto não há mudanças no sistema, é urgente que os nossos representantes a quem pagamos para trabalharem em nosso nome – PR, Governo, AR, Tribunais – tenham decentes comportamentos revestidos do necessário rigor, transparência e contenção. E não venham dizer que estão de consciência tranquila – o clichê habitual dos indiciados de ilícito disciplinar ou criminal ou de atentados à ética, nem nos venham tapar o sol com a peneira de que a ética republicana está na lei. Coitada da ética que aceite ser encurralada na lei!
2018.11.14 – Louro de Carvalho


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