O coro
das oposições de minudência, à falta de melhor tema em agenda, encheu as
pantalhas da comunicação social porque deputado de determinado partido político
com assento parlamentar teve a sua presença assinalada numa sessão plenária da
Assembleia da República (AR)
estando naquele horizonte temporal bem longe de Lisboa e obviamente do Palácio
de São Bento. Também foi badalado o facto de o mesmo senhor Deputado e
secretário-geral do seu partido político ter assinado a folha de presenças numa
sessão de trabalho de comissão parlamentar, se ter ausentado de imediato e não
ter regressado à respetiva sessão.
Antes de
mais e para evitar equívocos de entendimento sobre a ética e a legalidade destes
comportamentos, devo dizer que são comportamentos absolutamente reprováveis. No
entanto, os nossos reputados vêm incorrendo em erros bem mais graves e cobertos
pela lei, como já tem sido denunciado e mais adiante se reiterará. E é só por
isso que falo de minudências e mesmo de hipotética falta de agenda política ou
então de erro na hierarquização das prioridades. Por outro lado, pode e deve
assinalar-se neste derramamento de tinta ou de saliva um ato de hipocrisia e
arremesso político. Muitos falham em matéria procedimental. E o deputado ou
deputada totalmente inocente – é desejável que aja – que atire a primeira
pedra!
***
Em
termos da intervenção cidadã, os membros dum órgão colegial devem primar pela
assiduidade e pontualidade. Assim, os membros duma associação, sociedade, grémio,
cooperativa, fundação ou clube devem participar nas sessões de assembleia
geral, sendo que as suas faltas, entradas com atraso ou abandonos precoces têm
implicações apenas ao nível da discussão das matérias e na votação quando a ela
há lugar. O mesmo não digo das sessões do órgão diretivo ou do órgão de
fiscalização em que os respetivos elementos representam o coletivo alargado.
Quanto
às assembleias de freguesia, juntas de freguesia e assembleias municipais e
câmaras municipais, a situação é diversa. E as consequências de quebra de
assiduidade e/ou de pontualidade deveriam ser mais gravosas do que efetivamente
o são (perda
do quantitativo atribuído em senha de presença e eventualmente perda de mandato). Na verdade, os titulares de
órgãos autárquicos são representantes das populações que os elegem, sendo que a
sua responsabilidade no órgão ou órgãos que integram não é meramente pessoal,
mas sobretudo vicária. Por isso, deviam os seus desvios procedimentais ter uma
penalização corrente congruente com essa qualidade de representantes (de
associado, sócio, agremiado ou equivalente),
de acordo com o previsto ou a prever no respetivo regimento. E, no caso dos
deputados à Assembleia da República, câmaras municipais (presidente
e vereadores em regime de permanência)
e presidentes de juntas de freguesia, que têm um vencimento compatível com o
cargo que desempenham e cuja responsabilidade é pessoal na certa (de
boa consciência),
mas também e sobretudo política (em função da comunidade
que representam).
No
entanto, deputados à AR e titulares de autarquia em regime de permanência
usufruem mensalmente duma verba a título de despesas de representação paga
juntamente com o vencimento. E os deputados à AR são pagos com uma verba
adicional (senhas de presença) por cada sessão plenária ou de comissão em que
participam – e isto sem falar das despesas de deslocação e ajudas de custo por
deslocação para o e do circulo político por que foram eleitos e onde pretendem
fazer o chamado trabalho político, como se o trabalho no Parlamento não fosse
um trabalho eminentemente político.
Pode
dizer-se que os deputados, dado o peso financeiro do alojamento em Lisboa terão
dificuldades em sobreviver com a remuneração parlamentar. Há formas de resolver
o problema: aumento do vencimento-base do deputado; desempenho rotativo dos
diversos cargos ao menos por parte dos deputados repetentes (Os
grupos parlamentares não têm os assessores políticos e técnicos?), com exceção dos que vêm a
seguir, para acabar com a distinção entre deputados de primeira e deputados de
segunda; abolição das gratificações suplementares de alguns deputados com
exceção do presidente e dos vice-presidentes da AR, bem como dos líderes dos
respetivos grupos parlamentares pelas funções de liderança e representação do
Parlamento; alojamento em edifícios do Estado com o mínimo de condições para
que os deputados possam viver condignamente na capital e trabalhar com
assiduidade e pontualidade – ou cada partido se responsabilizar pelo alojamento
dos seus deputados –, faltando apenas por motivos de força maior ou trabalho
político extraparlamentar de todo inadiável, com falta registada e justificada
por motivos comprovados. De certeza que a credibilidade parlamentar seria
readquirida ou reforçada, ou seja, os cidadãos eleitores rever-se-iam mais
fácil e orgulhosamente nos seus eleitos e confiariam que eles estavam dedicados
incondicionalmente ao serviço do bem comum.
Porém, o
espetáculo da República assemelha-se, com honrosas exceções, a uma panóplia de
predadores dos partidos e do Estado para a locupletação pessoal e dos amigos a
que se alia a promiscuidade entre os grandes interesses privados e os negócios
do Estado – salta-se de empresa para o Governo e Parlamento e vice-versa,
encomendam-se pareceres jurídicos e económicos a grandes grupos para futuras
leis em que se deixam subtis alçapões para os grandes poderem escapar com
eficácia –, sendo que, regra geral, são lesados os interesses do Estado. Com
efeito, o estatuto de deputado está subvertido a nível das remunerações, como
se verificou, e a nível dos procedimentos, já que são habitualmente as mesmas
caras que se veem a usar da palavra no plenário, a menos que seja para defender
causas contra as quais se estava na oposição e que têm de ser retomadas na situação,
o que passa a ser defendido por deputados de segunda ou de última plana (Os
deputados são 230!).
E, se formos a pesquisar o volume de intervenções de cada um dos deputados,
ficamos com a sensação de que a maior parte não tem intervenção, limitando-se à
presença e a participar nas votações. De resto, lê-se o jornal, boceja-se,
dorme-se, sai-se para fumar ou tomar café, pintam-se as unhas, pesquisa-se no
computador para fins políticos, profissionais e pessoais (alguns
de dúbia validade),
falta-se, chega-se atrasado, fazem-se grandes clareiras humanas nos cadeirais
do hemiciclo… Uns têm protagonismo excessivo; outros têm crasso apagamento
suspeitando-se de que muitos nem sabem o que estão a votar.
***
Atentando
no aludido caso do início desta prosa – um só caso porque os dois procedimentos
enunciados aconteceram em redor do mesmo deputado –, devo dizer que assinar uma
folha de presença e abandonar a sessão sem regresso me parece mais contrário à
ética do que alguém registar a presença de quem não está, se tal sucede por
engano ou inépcia informática.
A
primeira vertente não podia ter acontecido sob pena de a prestação
“parlamentar” vir a ser “para lamentar” e deve ser rotundamente censurada. Quanto
à segunda, devo dizer que, se efetivamente houve engano e alguém utilizou o
computador do deputado ausente para colher informação pertinente, facto de que
alegadamente terá resultado uma automática marcação de presença, o utilizador
fortuito deveria ser rápido a comunicar o caso a quem de direito para que a presença
viesse a ser anulada. Também não é plausível que informação política pertinente
seja exclusiva de um deputado por mais altamente que ele esteja colocado no
partido; e, se o é, não poderá ser utilizada de imediato. E, ainda, logo que o
caso foi denunciado, o líder parlamentar respetivo deveria ter mandado inquirir
o que se passou e o utilizador fortuito do computador deveria adiantar-se a dar
explicações públicas logo que a comunicação social badalou o facto.
Porém, a
insigne deputada que “se enganou” (?) e registou a presença de correligionário
ausente reagiu abespinhadamente e apodou os críticos de “virgens ofendidas”. E,
de facto, nós, os cidadãos eleitores, somos virgens ofendidas e donzéis
ofendidos porque elegemos os nossos representantes, pagamos-lhes, confiamos
neles, mas eles, muitas vezes, não defendem os nossos legítimos interesses,
traem a nossa confiança e brincam nas nossas costas e às vezes na nossa cara.
Nos, ao contrário, sujeitamo-nos às leis, impostos, taxas e taxinhas (pagamos
tudo: só falta porem-nos um contador no gargalo para pagarmos o ar que respiramos); somos mal pagos económica e
socialmente no trabalho, na doença, no desemprego e na aposentação/reforma;
levamos com a justiça lenta, pesada e ineficaz; aturamos a segurança pública
sem autoridade e timorata, criticada por prepotência, racismo e xenofobia; e
assistimos a Forças Armadas valorosas, mas exíguas, reduzidas à insignificância
pelo poder político e opinião pública adrede mobilizada.
O
presidente do partido em causa e o respetivo líder parlamentar censuraram o
caso, mas rapidamente o consideraram resolvido. Por seu turno, o Presidente da
AR mostrou-se agastado com estes comportamentos, que desprestigiam em si a
prestação parlamentar, mas, ao mesmo tempo, confessa não ter poder disciplinar
sobre os deputados, poder que só tem em relação aos funcionários do Parlamento.
E disse que não é preciso alterar os procedimentos técnicos, mas os
comportamentos de cada um.
Sendo
assim – e parece que é, pois, ao Presidente cabe a justificação das faltas dos
deputados e muitas competências relacionadas ou com a condução dos trabalhos ou
com a representação da Assembleia e eventualmente o Estado –, há que legislar
no sentido de morigerar quer o estatuto dos deputados, quer os procedimentos
dos mesmos, de modo a dignificar a ação parlamentar, bem como alterar o
regimento da AR, com vista a estabelecer sanções a quem evidencie
comportamentos indesejáveis em relação ao hemiciclo e às comissões e grupos de
trabalho.
É óbvio
que a separação de poderes ou, melhor, dos órgãos do poder soberano implica a
existência de controlo interno sobre os procedimentos, o que parece faltar no
Parlamento (o que não tem nada a ver com a exigível liberdade e
irresponsabilidade do deputado por suas declarações e opiniões) e escrutínio externo da parte
de outros órgãos. Assim, o Parlamento fiscaliza a atividade do Governo através
de requerimentos a ele dirigidos e aos seus membros e pela aprovação ou não do
programa do Governo e de moções de censura e de confiança; o Presidente da
República (PR)
acompanha a atividade governativa através da informação que o Primeiro-Ministro
lhe fornece e promulgando ou vetando os seus decretos-lei e decretos regulamentares
ou submetendo-os à apreciação do Tribunal Constitucional (TC) para aferir da constitucionalidade
ou da legalidade; o PR acompanha a atividade parlamentar dirigindo mensagens à
AR e promulgando os seus decretos para valerem como lei ou vetando-os ou,
ainda, submetendo-os à apreciação do TC para aferir da sua constitucionalidade
ou da sua legalidade e pode dissolver o Parlamento; o TC acompanha a atividade
do Parlamento e do Governo fiscalizando a constitucionalidade e a legalidade
das normas por eles aprovadas e acompanha a atividade do PR declarando a sua
incapacidade temporária ou definitiva para o exercício de funções; e o
Parlamento acompanha a atividade presidencial autorizando-lhe as deslocações
para fora do país, podendo destituí-lo em caso de incumprimento. Porém, o Parlamento
não dispõe dum controlo interno dos procedimentos dos deputados a quem nem
exige documentos comprovativos de despesas e de justificação de faltas; e o
poder judiciário, que pode escrutinar todos os outros órgãos de soberania sob determinadas
condições, não dispõe de mecanismos de controlo externo (por
parte dos outros órgãos do poder político),
tendo mesmo sido difícil exercer o direito de crítica, a que responde habitualmente
em termos corporativos.
***
Expostas
estas considerações nesta mal alinhavada prosa, conclui-se que o Presidente da
AR tem razão em censurar os comportamentos desviantes dos deputados, mas não a
tem quando assenta em que não é preciso alterar os procedimentos técnicos, pois,
se eles permitem a fraude ou a insuficiência, têm de ser revistos. Por outro
lado, falta, como foi indicado, apurar a legislação atinente a esta matéria e o
regimento da AR, bem como alterar o sistema de relações entre o Estado e os
grandes grupos empresariais, acabando com a promiscuidade e com a lesão do interesse
público.
Por fim,
enquanto não há mudanças no sistema, é urgente que os nossos representantes a
quem pagamos para trabalharem em nosso nome – PR, Governo, AR, Tribunais –
tenham decentes comportamentos revestidos do necessário rigor, transparência e
contenção. E não venham dizer que estão de consciência tranquila – o clichê
habitual dos indiciados de ilícito disciplinar ou criminal ou de atentados à
ética, nem nos venham tapar o sol com a peneira de que a ética republicana está
na lei. Coitada da ética que aceite ser encurralada na lei!
2018.11.14 – Louro
de Carvalho
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