segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

É insensato atribuir uma derrota eleitoral ao falhanço do povo

 

É natural que os vencedores das eleições legislativas tenham ficado hipercontentes e os que sofreram o amargo sabor da derrota, quando acalentavam a esperança quase certa da vitória, ainda que por curta margem, tenham ficado desapontados. Porém, ouvir Isabel Meireles a desabafar, questionada sobre o que falhou, dizendo que “o que falhou foi o povo português”, pois “os portugueses preferiram acreditar na falácia, na mentira e na inverdade do doutor António Costa” cria a sensação do desapontamento e do desnorte, o que, se fosse tomado à letra, significaria falta de charme democrático e constituiria o avesso da recomendação de Rio a Costa para que soubesse perder com dignidade.

É óbvio que é o povo que exprime pelo voto quem quer ao leme do país e isso sempre foi respeitado com maior ou menor bonomia. E Rui Rio até a manifestou, obviamente declarando que não fora este um dia feliz para o seu partido e até confessou não ter ele próprio argumentação para se manter à frente do partido. Claro, já me parece não ter estado tão bem ao responder em alemão a uma pergunta de jornalista que insistia em chover no molhado, sendo aí quase igual ao jornalista. De facto, os jornalistas parecem ter gosto mórbido em bater no ceguinho, mas o político tem de ter estômago e olho eleitoral.  

Não sei explicar o que motivou o volte-face do eleitorado, se é que o houve. Com efeito, o PS tirou partido do chumbo parlamentar do OE 2022 e manteve claramente as suas propostas de continuidade, referindo na campanha o essencial das suas linhas de programação e práxis. E, apesar do desgaste do Governo e dos erros de Costa e dos demais governantes, o maior partido da oposição não se perfilou coerentemente como alternativa sustentável, embora tenha debitado para o eleitorado a ideia de uma certa credibilidade. Enquanto António Costa prometia a correção de alguns desvios, incluindo a gordura governativa, Rio perdia-se na questão da prisão perpétua, no equívoco sobre o SNS e nas questões de governabilidade a partir de 31 de janeiro. Depois, entrou pelo rumo ínvio das “graçolas” e introduziu o debate com base no protagonismo animal, ao que outros partidos responderam à letra, mas como gato sobre brasas.

Recordo-me de que em 1987, após a aprovação de uma moção de censura ao governo minoritário de Cavaco Silva, da iniciativa do PRD, que o PS secundou, o PS começou a sua campanha eleitoral com a paródia governativa de Cavaco, um boneco a discursar fazendo propostas. Percebeu que o eleitorado não estava a apreciar a ironia e arrepiou caminho, mas tarde. Não terá sido por isso, mas o certo é que o PSD obteve a 1.ª maioria absoluta dum só partido e Cavaco surgiu como o Dom Sebastião da época. Foi a partir daí que o distrito de Viseu passou a ser designado por Cavaquistão.    

A par de tudo isto, partidos emergentes cresceram e galvanizaram franjas consideráveis de eleitores à direita, cansados das divisões internas de PSD e CDS e ávidos de expressarem – muito com pouca autoridade moral – o que pensam sobre alegados corpos estranhos na democracia, como a subsidiodependência, o acolhimento de imigrantes, a situação de favor a determinados grupos, a corrupção e o desprestígio das forças de segurança. Enfim, tanta pregação de pureza de sangue numa população tão miscigenada!  

A comunicação social parecia estar – e muitas vezes estava – apostada no derrube do governo e na suposta alternativa. E as sondagens multiplicavam-se e aproximaram tanto os dois maiores partidos que o anterior suposto vencedor passou a putativo derrotado.

Todos dizem que as sondagens valem o que valem, que não ganham eleições… Todavia, sabem que elas condicionam o eleitorado tal como as arremetidas da comunicação social e as declarações dos comentadores políticos. E as últimas eleições autárquicas serviram de ponto de referência para o alerta da última semana de campanha sobre resultados eleitorais. Assim, o partido que se presumia agora ser perdedor “remobilizou” os militantes e teve uma postura nova perante o eleitorado dando a perceber o que estaria possivelmente oculto por trás da panóplia animal e no programa do partido mais diretamente adversário.  

Quanto ao eleitorado, percebendo que uma governação à direita dificilmente prescindiria da comparticipação de forças radicais, não quis entregar à direita a governação do país, que mais do que ir aumentando salários e pensões paulatinamente e melhorar as estruturas físicas e humanas dos serviços públicos e do território, promoveria a alegada criação de riqueza para distribuir depois, procederia à procrastinação de aumento de salários e pensões, embora com maior volume se tudo corresse bem, e reduziria drasticamente os impostos, etc. E, porque as forças políticas que durante 6 anos tinham, com o PS de Costa, impedido a direita de ascender à governação, estavam agora a oferecer-lhe o poder executivo, o eleitorado decidiu mobilizar-se para o ato eleitoral aproveitando todas as janelas de oportunidade que a Comissão Nacional de Eleições, a Procuradoria-Geral da República, a Direcção-Geral de Saúde e o Governo criaram para facilitar o voto dentro dos parâmetros previstos na lei eleitoral. E a abstenção baixou consideravelmente.

Cabe referir que o próprio Chefe de Estado, na sua mensagem na véspera das eleições, farpou o Parlamento por não ter reformado o sistema político e não ter feito lei eleitoral que facilitasse o voto noutras condições e disse expressamente que era necessário alterar a lei eleitoral e reponderar o dia da reflexão, concebido para outros tempos. Foi, a meu, ver uma intervenção abusiva a ancorada na suposta diferença destas eleições em relação a outras. Não lhe cabe influenciar o eleitorado nem o Parlamento. E, se quer dirigir apelos aos deputados, deverá fazê-lo não pelos meios de comunicação social, mas através de mensagens escritas ao Parlamento.    

Entretanto, às 19 horas, José Rodrigues dos Santos apresentava as projeções da UCP sobre a abstenção entre 49% e 54%; e, às 20 horas, apresentava as projeções da mesma UCP que davam a vitória ao PS, mas dificilmente com maioria absoluta. E o entusiasmo do apresentador fê-lo dizer que a Católica nunca errara nas suas projeções. É certo que não errou de todo, mas outras projeções foram mais certeiras, nomeadamente as que davam ao PS um intervalo de 110 a 118 deputados, com a probabilidade da maioria absoluta, e a margem de abstenção de 42% a 44%, em vez dos 95 a 112 deputado e a abstenção de 49% a 54% da UCP.

Por fim, um reparo às possíveis expectativas do Presidente da República. Se pensava alterar o sentido da governação para mais ao centro, como referia o “Expresso” do dia 28, enganou-se; e, se queria a entrega da governação à direita, não o conseguiu. E fica para a história da presidência como o primeiro Chefe de Estado que, após eleições por via da dissolução do Parlamento, o deixou uma configuração mais problemática e obteve a governação para as mesmas mãos que anteriormente. Porém, conseguiu o pressuposto da estabilidade política, a maioria absoluta, provavelmente a que menos desejava, deixando de ter o protagonismo que sempre almejou.

O tempo e o povo encarregam-se de moderar as nossas ambições.

2022.01.31 – Louro de Carvalho

domingo, 30 de janeiro de 2022

O perfil do país que vota em eleições legislativas

 

Pela 17.ª vez em democracia, os portugueses foram chamados a eleger os deputados da Nação, obviamente contando as eleições para a Assembleia Constituinte a 25 de abril de 1975. Se nos ativermos apenas a eleições para a Assembleia da República (AR), será a 16.ª vez.

Estas eleições são diferentes porque, para lá do espectro do abstencionismo, que os últimos indicadores entredizem estar a diminuir, sobretudo se tivermos em conta o número de eleitores efetivamente residentes no território nacional e os recenseados no estrangeiro, decorrem num contexto de pandemia em que o número de confinados vem crescendo. É certo que o Governo abriu excecionalmente uma janela de voto presencial para eles, mas a situação não deixa de constituir um condicionamento do voto. São ainda alegadamente diferentes por serem as primeiras que decorrem duma rejeição parlamentar da proposta do Orçamento do Estado, acabou de o dizer o Presidente da República, o que não é totalmente exato porquanto, em 1979, o IV Governo Constitucional viu a sua proposta de Orçamento rejeitada. Porém, o Governo apresentou outra, que foi aprovada na AR, mas com a rejeição do documento das Opções do Plano. Era do Orçamento para 1979 que se tratava. No entanto, a AR não foi dissolvida de imediato; primeiro, Eanes negociou com os partidos com assento parlamentar a formação dum governo de iniciativa presidencial que assegurava a governação do país e preparava as eleições “intercalares”; e, só depois da tomada de posse e da aprovação, melhor da não rejeição, parlamentar desse governo é que dissolveu a AR e marcou eleições.

Provavelmente, se Marcelo não tivesse atirado aos deputados logo com a dissolução da AR e a tivesse protelado para que as eleições fossem na primavera, passado que estaria este pico da pandemia, que era previsível, estas eleições não seriam tão diferentes.  

Os observadores perguntam-se se o país que elege os deputados é mesmo de abstencionistas ou se as contas estão mal feitas, estando a metodologia da pesquisa distorcida. Mais se interrogam se a abstenção é distribuída igualmente por todo o território onde vive o eleitorado, ou seja, se é igual para o territorio nacional, que nas eleições de 2019 teve 45,5% de não votantes, e para os territórios que onde moram os emigrantes, o que faz ascender a abstenção para os 51,43%.      

Ora, não faz sentido tomar o comportamento eleitoral como um todo quando, por exemplo, em 2019 só 10,79% (percentagem pouco alterada desde 2009) dos emigrantes votaram ou quando mais de um milhão de “eleitores-fantasma” distorcem a abstenção em cerca de 10%, para a abstenção que fica nos 35,5% do território nacional ou para os 41,43% com os emigrantes.

Assim, os especialistas na áreas política e sociológica preconizam que se olhe para os valores da abstenção tendo em conta o contexto demográfico, territorial e cultural da sociedade portuguesa, país de emigração, de diáspora e transculturalmente unido. Nestes termos, os valores da abstenção devem ser lidos, não só em termos globais, mas também considerando a territorialidade, sabendo-se que parte significativa da população eleitora está no estrangeiro e que desta parte de eleitores (os emigrantes portugueses) apenas uma parte residual vota. Por exemplo, nas eleições legislativas de 2015 e 2019, a sua participação eleitoral rondou os 10%, mesmo quando se multiplicou este número de inscritos de 242 852 inscritos, em 2015, para 1 468 754 inscritos.

Por isso, as leituras interpretativas dos valores da abstenção eleitoral quanto a causas da mesma devem ser mais contidas ao encontrarem-se respostas na falta de interesse pelo voto por parte dos eleitores, pois isso não explica a totalmente a abstenção. As causas desta, segundo os especialistas, devem ser encontradas nos mecanismos de acesso ao voto por parte da fatia de eleitores que mais se abstém e na forma por que se abstém.

A este respeito, Paula do Espírito Santo, professora no ISCSP e investigadora nestas áreas observa que “o voto tem dimensões de territorialidade que o explicam e tornam desigual” e que, “vistas em valores globais, pode ser falivelmente mal interpretada com respostas e causas que encontram na desmobilização dos eleitores, como um todo, a resposta mais imediata e aparente”. Assim, na ótica da especialista, “as explicações superficiais sobre a relação entre desmobilização e abstenção continuarão a promover a incapacidade de se resolver este problema, simplesmente porque o problema da abstenção eleitoral que afeta a nossa democracia está mal diagnosticado”. E, ainda que se corrijam a leitura e a interpretação da abstenção, restará a dificuldade de saber como concitar o voto dos eleitores portugueses no estrangeiro, sendo este um dos problemas centrais a atacar para diminuir os resultados globais da abstenção e cuja resposta poderá passar pela estratégia de voto eletrónico alternativo, prático para os emigrantes, pensada e prevista legalmente, com a devida antecedência em relação aos próximos atos eleitorais.

Analisando a última década, os últimos 4 ciclos eleitorais de 2009 a 2019, a conclusão é lapidar: quanto maior o círculo, menor a abstenção. É no pequeno grupo dos círculos eleitorais que elege mais de 70% dos deputados que a abstenção é menor. É uma estreita e curta linha ao longo do litoral, de Braga a Setúbal, incluindo Santarém. É nos 5 círculos eleitorais que elegem 60% dos deputados – Aveiro, Braga, Lisboa, Porto e Setúbal – que a participação eleitoral é mais elevada, ficando a abstenção abaixo ou ligeiramente acima da média nacional. Logo a seguir, vêm Santarém, Coimbra e Leiria, que elegem 12%, com valores de abstenção semelhantes. Nos restantes, os que elegem menos deputados, excetuando Castelo Branco e Évora, que se aproximam deste grupo, a abstenção é muito mais elevada. Os Açores são, dos 20 círculos nacionais, aquele cuja abstenção ronda, desde 2009, os 60% – nas legislativas de 2019 chegou aos 63,5%. Bragança e Vila Real são, no mesmo período, os mais abstencionistas no continente seguidos por Viseu, Viana do Castelo, Guarda e Faro, cuja tendência de quebra eleitoral se vem a agravar. Braga e Porto são os únicos dois círculos onde na última década (aconteceu nas legislativas de 2009) a abstenção não passou a fasquia dos 35%.

Falando dos candidatos eleitos propostos pelos partidos em cada círculo eleitoral, verifica-se que, em média, só 17,5% dos partidos candidatos em cada círculo eleitoral consegue eleger deputados. Lisboa é o círculo que elege mais partidos para a AR: 45% conseguem entrar. Ao invés, Portalegre tem a mais baixa percentagem (6,25%) de captação de partidos. O cruzamento dos partidos eleitos, círculo a círculo, com as listas de candidaturas revela que, além de Lisboa, surge um grupo de 5 distritos que mais partidos acolhe: Porto, Santarém, Setúbal, Aveiro e Braga. Logo depois. surgem Faro, Leiria e Coimbra.

Este ano, Bragança é o círculo onde menos partidos se apresentam a votos (13); Lisboa (20), Porto (19), Setúbal (19) e Europa (19) são os que têm mais partidos nos boletins de voto. A maioria anda pelos 17 partidos. Évora, Viana do Castelo, Vila Real e Açores ficam abaixo com 15.

Os círculos eleitorais coincidem, no Continente com os 18 distritos (um por distrito). Nas Regiões Autónomas há um por região. Depois, há um círculo para os emigrantes residentes na Europa e outro para os emigrantes residentes fora da Europa. Os círculos eleitorais elegem os seguintes deputados em números: Aveiro, 16; Beja, 3, Braga, 19; Bragança, 3; Castelo Branco, 4; Coimbra, 9; Évora, 3; Faro, 9; Guarda, 3; Leiria,10; Lisboa, 48; Portalegre, 2; Porto, 40; Santarém, 9; Setúbal, 18; Viana do Castelo, 6; Vila Real, 5; Viseu, 8; Madeira, 6; Açores, 5; Europa, 2; e Fora da Europa, 2. Em 2019, Guarda e Viseu perderam um deputado cada em prol de Lisboa e Setúbal. Já dantes, Portalegre passara de três deputados para dois.

Uma outra questão que se levanta é do limiar de exclusão, ou seja, a taxa abaixo da qual um partido não consegue eleger um deputado, que é tanto maior quanto menos eleitores o círculo tiver. Assim, para eleger um deputado em Évora, é preciso obter 25% dos votos, quando em Lisboa podem bastar 2%. Do meu ponto de vista, havia que definir um número mínimo de deputados a eleger em cada círculo, não alterável consoante as oscilações do número de eleitores e, depois, distribuir os restantes até ao limite constitucional.   

Quanto ao montante que os partidos recebem pelos votos obtidos, é de referir que, neste ano, a verba a distribuir é maior porque o IAS (indexante dos apoios sociais) subiu dos 438,81 para os 443,2€. Ou seja, há 7 091 200€ para distribuir – mais 70 240 que dantes. Com efeito, apesar das limitações criadas para travar financiamentos duvidosos e ilegais, os partidos em cada ato eleitoral recebem uma subvenção pública que atenua os custos das campanhas eleitorais.

Só há que esperar pela publicação oficial dos resultados e solicitar a subvenção ao presidente da Assembleia da República. Porém, é necessário ter apresentado listas com 118 candidatos efetivos e ter elegido, pelo menos, um deputado ou ter obtido 50 mil votos.

É dividido 20% da verba em partes iguais por todos os que preencheram os critérios; e 80% é entregue em função da proporção dos votos recebidos. Simplificando, 50 mil votos dão cerca de 150 mil euros de subvenção. Com a atualização do IAS também subiu o limite máximo de despesas admissíveis por candidato, que são agora de 21 273,6€, e o valor máximo de donativos por pessoa singular subiu para os 26 592€.

O perfil de deputado, de 1976 a 2019, é predominantemente homem, advogado/jurista ou professor, com idade compreendida “entre os 43 e os 62 anos de idade e, regra geral, natural do distrito pelo qual é eleito”. A grande mudança, nos últimos anos, está na presença das mulheres que passou da participação média de cerca de 16% de deputadas para 36%. As habilitações literárias dos deputados ou deputadas são a licenciatura (70%), o mestrado (13%), o doutoramento (11%), o bacharelato (1%) e o ensino secundário (5%).

O perfil do deputado eleito identificado por Jorge Fraqueiro no doutoramento “O sistema político português. Renovação ou estagnação dos seus principais atores no período da democracia 1974-2012” e atualizado no pós-doutoramento com os dados de 2015 e 2019 não difere muito do que revelam as listas de candidatos às eleições legislativas de 2022. A grande diferença está no número de estudantes.

Dos 1588 eleitos desde 1976, os que ficaram poucos anos na AR são muitos, mas há uma minoria de 475 deputados que foi ficando: uns por 12 anos, os restantes por 20, 30, quase 40 anos. Miranda Calha, Jerónimo de Sousa, Mota Amaral, José Magalhães, José Cesário, Jaime Gama, Arménio Santos, Jorge Lacão, Manuel Alegre, Pedro Pinto, Correia de Jesus, António Filipe e Ferro Rodrigues (por esta ordem) fazem parte do topo da elite de 475 deputados que foram permanecendo ao longo dos anos; uns 12 anos (36,8%); outros mais de 20, 30 anos (a maioria: 63,1%). Só dois vão a votos nestas eleições. Assim, 70% dos parlamentares estiveram, alguns ainda estão, na AR por 2 mandatos ou menos e 30% permaneceram, e ainda permanecem alguns, por 3 ou mais legislaturas.

Acresce dizer que na base da perda de deputados em alguns círculos decorre da rarefação populacional em alguns círculos, designadamente num interior cada vez mais desertificado e com povoados-fantasma. O grande número de óbitos e o pequeníssimo número de nascimentos dão o inverno demográfico. Por outro lado, a deslocação dos serviços e das empresas para o litoral e grandes centros gera as assimetrias geográficas e populacionais.

Todavia, é este o país que somos. E, mais que alterar as leis eleitorais ou até rever o sistema político, urge promover o crescimento económico criando riqueza, organizar o trabalho, qualificar a população, fortalecer o Estado Social e gerar conforto pessoal, familiar, profissional e social.

2022.01.30 – Louro de Carvalho

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

O fenómeno dos eleitores-fantasma é erupção nos cadernos eleitorais

 

Os atos eleitorais para os órgãos do poder político cuja instalação depende do sufrágio direto dos cidadãos têm como suporte dos sujeitos ativos da eleição os cadernos eleitorais por freguesia ou união de freguesias e, no estrangeiro, por áreas consulares.

Tendo em conta que só podem ser eleitores os cidadãos maiores de 18 anos, à partida o número de eleitores deveria ser mais baixo que o dos cidadãos residentes no país, adicionando-se-lhes o número de eleitores portugueses residentes no estrangeiro devidamente recenseados eleitoralmente. 

Sucede, entretanto, que a metodologia e o momento do censo da população residente e habitação e o do recenseamento eleitoral não são os mesmos, embora ambos sejam obrigatórios. O censo da população e da habitação ocorre no primeiro ano de cada década pelo preenchimento de formulário com supervisão de agentes de recenseamento ou pela Internet, ao passo que o recenseamento eleitoral ocorre automaticamente aquando da emissão do cartão de cidadão e de acordo com o local de residência declarado pelo cidadão requisitante. Não obstante, persiste nos autos de recenseamento eleitoral um número significativo de recenseados antes desta metodologia, sobretudo o efetuado pela apresentação de cidadãos eleitores cujo bilhete de identidade é vitalício.

O certo é que as disparidades entre população residente no território nacional, a que se podem adicionar os portugueses residentes no estrangeiro, e a população recenseada dotada de capacidade eleitoral ativa existem, com vantagem para a última. É o que os politólogos e os comentadores denominam de fenómeno dos eleitores-fantasma. E a não expurgação destes dos cadernos eleitorais pode falsear a determinação do número de deputados elegíveis em cada círculo eleitoral, hiperbolizar a percentagem de abstencionistas e desdizer em parte as sondagens e projeções eleitorais, bem como surpreender os candidatos aos lugares a eleger em cada círculo eleitoral.

Dantes, imputava-se a culpa aos mortos e à lentidão da informação dos respetivos óbitos às comissões de recenseamento, vulgo juntas de freguesia, por parte das Conservatórias do Registo Civil; hoje a causa é também outra e parece residir, além dos mortos, nos emigrantes que se desleixam na atualização da residência e, consequentemente, do recenseamento eleitoral ou nas autarquias que têm acesso a algumas verbas em função do número de leitores recenseados na sua área,              

Seja como for, o fenómeno dos eleitores-fantasma, erupção que é velha e se arrasta no tempo, com valores especialmente altos em meados da década de 1990, neste ano de 2022, ultrapassa o milhão, ou seja, atinge o número de 1 143 604.

Na década de 1990, o número de recenseados era superior à população em idade de voto em cerca de 20%. Desde então a percentagem baixou, mas permanece quase sempre na faixa dos 10%. Nestes termos, retirando aos valores da abstenção a desconformidade por sobrestimação, os 51,4% de 2019, por exemplo, seriam só 41,4%, os 44,1% de 2015 passariam a 34,1%, os 41,9% de 2011 representariam 31,9%. E, no tempo em que dos cadernos eleitorais raramente se eliminavam os mortos, a abstenção, por exemplo, em 1991, de 32,6%, teria passado para perto ou para baixo dos 22%; e os 39% da abstenção de 1999 teriam sido 29% ou ainda menos.

Os 1 143 604 eleitores-fantasma, calculados para 2022, se olharmos para os resultados eleitorais de 2019, representam quase tantos eleitores como os que permitiram a BE, PCP-PEV, CDS-PP e PAN eleger, em conjunto, 40 deputados.

Segundo João Tiago Machado, porta-voz da CNE, o que justifica mais de milhão de eleitores-fantasma “é o facto de só existirem 1,5 milhões de eleitores recenseados no estrangeiro” quando “a nossa população na diáspora é muito superior a um milhão e meio”. E isto significa que grande parte dos emigrantes continua a usar, para efeitos de recenseamento, a morada que tem cá, talvez por apego à terra de nascimento, desleixo ou distanciamento em relação ao recenseamento. De facto, sucede que, aquando dos censos populacional e da habitação, como ninguém está presente nalgumas moradas procuradas em Portugal ou não foi preenchido e devolvido o respetivo formulário na carta que lhes fora enviada, os presumíveis habitantes acabam por não aparecer nos registos dos censos porque não vivia ninguém naquelas casas, pois as pessoas moram fora do país.

João Tiago Machado opina que se deveria retirar das contas, para melhor leitura, essa margem “de modo que se tenha uma noção exata da realidade, um retrato mais fiel”.

Para Marina Costa Lobo, doutora em Ciência Política pela Universidade de Oxford, investigadora principal do Instituto de Ciências Sociais-UL, está em causa “a qualidade da nossa democracia e a perceção errada, falseada, do sentido cívico dos portugueses”; e, como a distribuição de lugares de deputados por círculo eleitoral depende do recenseamento eleitoral, esta discrepância impede “uma discussão séria sobre a reforma do sistema eleitoral”, pois, “o conhecimento dos eleitores por círculo eleitoral pode ser um equívoco”, sobretudo se os eleitores-fantasma estiverem distribuídos desproporcionalmente por círculo eleitoral.

André Freire, professor catedrático do ISCTE-IUL e investigador do CIES-IUL, diz que tal volume de eleitores-fantasma é preocupante por criar artificialmente “elevados níveis de abstenção”, levando a pensar em abstenção estruturalmente alta, quando na verdade o não é. Alvitra que, além do problema de credibilidade, pode suscitar o da validade dos referendos. E diz que o problema é grave, pois, como se alargou a cidadania portuguesa e toda a gente é automaticamente inscrita nos cadernos, este fenómeno vai aumentar. Aponta que “a falta de interesse” dos políticos em resolver a questão, ou seja, a inércia de manter status quo, estará na “atribuição dos mandatos autárquicos” mercê do rácio que é tido em conta: o número de inscritos e não o número de habitantes.

Os politólogos Luís Humberto Teixeira e José António Bourdain, coautores de vários estudos de investigação com sobre o problema, identificam duas potenciais razões principais: “pessoas que foram para o estrangeiro, ao longo de anos, e que nunca atualizaram o seu recenseamento”; e “os mortos” inscritos cujo número foi decrescendo com “o cruzamento de dados”.

A atualização extraordinária dos cadernos eleitorais, de 1997 e 1998, lançada pelo governo de Guterres, deixou de fora contas que foram verificadas em 2001: meio milhão de mortos; e entre 200 e 300 mil emigrantes ilegalmente inscritos. Rui Pereira, então Secretário de Estado da Administração Interna, falava de “óbitos por eliminar” e de “emigrantes efetivamente residentes no estrangeiro”, o que dava empolamento no recenseamento eleitoral.

Em 2009, os dois politólogos referidos perceberam que, por exemplo, “Viana do Castelo e Madeira têm um deputado a mais e Porto e Setúbal um a menos”. Luís Mendes, então secretário-geral da Administração Interna, reconhecia haver 107 mil mortos que “não podiam ser descarregados” dos cadernos. Jorge Miguéis, diretor da área de administração eleitoral da DGAI (Direção-Geral da Administração Interna), que lembrava então os “200 mil nomes indevidos apagados dos cadernos e 600 mil eleitores tirados da clandestinidade”, avisava que o problema dos emigrantes “só poderia ser resolvido num Estado orwelliano, autoritário, onde se controlasse se as pessoas vivem ou não o tempo todo em Portugal”. Bourdain estimava que, nas legislativas de 2005 e 2009, só falando de mortos, havia um milhão de eleitores-fantasma. Em 2013, cerca de 10% dos cidadãos inscritos nos cadernos eleitorais de todo o país não votaram por terem morrido (a maioria) ou por terem emigrado. Em 2014, a DGAI admitia que a abstenção nas eleições europeias estava errada, sendo de 60% e não de 65%. Desta vez não eram os mortos a causa do problema, mas os emigrantes. Em 2015, Ireneu Barreto, representante da República na Madeira, avisava que a leitura da abstenção na região não podia ser linear: havia “cerca de 40 mil votantes-fantasma nos cadernos eleitorais”. E, em 2019, segundo a TSF, Vila Real, Açores e Bragança eram os círculos com mais fantasmas; Beja, Lisboa, Faro e Santarém estavam no polo oposto. A explicação era a de 2014: os emigrantes.

Bourdain, 10 anos antes, referia o não interesse das autarquias na limpeza dos cadernos porque recebem dinheiro do OE consoante o número de inscritos, pelo que algumas (do interior), “se apagassem os mortos, ficavam sem dinheiro nenhum”. E deviam ter sido apagados, pois foi esse o objetivo da atualização dos cadernos a partir de 1997 e da restante legislação até 2018.

Ora, se a inscrição nos cadernos eleitorais é automática e a limpeza dos falecidos também o é através do cruzamento de informação entre a base de dados do Recenseamento Eleitoral e os serviços dos Registos e Notariado e se ainda há falhas quanto à eliminação de mortos, é porque ainda há processos manuais e/ou porque há inércia nalguns serviços.

Em fevereiro de 2020, havia 1925 eleitores com mais de 105 anos. E, nessa altura, 167 já estavam confirmados como óbitos, 89 “inconclusivos” e 26 já tinham feito prova de vida. A explicação está conexa com a existência de muitos bilhetes de identidade vitalícios e porque, sobretudo em 1975-1976, houve pessoas que se inscreveram nas comissões recenseadoras sem terem documento de identificação, apresentando só assentos de nascimento (Até 2008 os cidadãos inscreviam-se apresentando-se à comissão de recenseamento da sua área de residência; e, se mudavam de residência, apresentavam-se à nova comissão, que notificava a anterior para descarga do seu registo de eleitor). E a falta desse documento impede que a Administração Eleitoral e os Registos e Notariado possam fazer uma identificação unívoca de cada vez que há a comunicação de óbito.

Para João Cancela e Marta Vicente (autores de “Abstenção e Participação Eleitoral em Portugal), a alteração de 2008, que induziu a “inscrição automática de indivíduos não recenseados”, para lá do aumento de novas inscrições, provocou o aumento da fidedignidade dos dados e da sua correspondência à realidade demográfica e geográfica do país. Porém, em 2011, analisando as disparidades entre eleitores indicados pela CNE e os contabilizados pelo INE, facilmente se depreendeu que o número de inscritos nos cadernos eleitorais superava largamente o número de residentes em idade de voto, disparidade não superada nas eleições legislativas de 2019. Marina Costa Lobo infere que os Censos 2021 mostram que nenhuma das reformas impediu que chegássemos a 2022 com mais do milhão de eleitores a mais.

Falando de números, é de registar os seguintes dados: há, para estas eleições, um total de 10 821 244 eleitores contra 10 344 802 pessoas constantes nos Censos 2021, isto é, uma diferença de 476 442; daquele número de eleitores, 926 312 estão recenseados no círculo eleitoral europeu e 595 478 estão recenseados no do resto do mundo, o que soma 1 521 790; calculando a diferença entre o número total de eleitores recenseados e os recenseados no estrangeiro, verifica-se uma diferença de 9 299 454, o que vem contrastar com o número de eleitores recenseados residentes em Portugal (8 155 850). Por outro lado, os Censos 2021 indicam a existência de 1 633 653 menores de 18 anos e de 555 299 de estrangeiros sem direito a voto, o que soma 2 188 952, número que, subtraído ao total de registados no Censos 2021, obtém a diferença de 8 155 850, que é o número de eleitores efetivamente residentes em Portugal, de que resulta o número de eleitores-fantasma em 1 143 604. Acresce referir que há 226 056 jovens, em território nacional, que podem votar pela primeira vez e que estão registados, no estrangeiro, 36 249 novos eleitores.

E é com estes números e a dita erupção sistémica, inda não expurgada, que os partidos se apresentam o eleitorado e o eleitorado escolherá os seus representantes no Parlamento, de que emanará o Governo a empossar pelo Presidente da República. É neste contexto numérico e no contexto de pandemia que somos instados a exercer o direito e a cumprir o dever cívico de votar.

2022.01.28 – Louro de Carvalho

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

A indescritível crueldade da Shoah não pode ser esquecida

 

 

No final da Audiência Geral de quarta-feira, dia 26, o Papa recordou o “Dia Internacional da Memória”, que é celebrado neste dia 27 – 76.º aniversário da libertação do campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau, símbolo da Shoah que destruiu a vida de milhões de pessoas e famílias de diferentes nacionalidades e religiões –, e apelou às famílias e educadores no sentido de promoverem nas novas gerações “a consciência do horror desta página escura da história”.

Silabando fortemente as palavras, a querer marcar na mente e no coração das novas gerações, em que os males do racismo e do antissemitismo retornam novamente, a dor para todas as vítimas do Holocausto, Francisco frisou que “essa crueldade indescritível não se deve mais se repetir”.

O Pontífice dirigiu-se a todos, mas em especial aos educadores e famílias, para que promovam a consciência do horror desta página escura da história, “para que se construa um futuro em que a dignidade humana não mais seja espezinhada” – um alerta a manter viva a atenção para esse facto horrível, também no futuro, não ser ofuscado quando as últimas testemunhas já não existirem.

O apelo ficou ilustrado num abraço no final da audiência, quando o Papa, sentado numa cadeira ao pé da escadaria da Sala Paulo VI, cumprimentou Lídia Maksymowicz, polaca de origem bielorrussa, que foi para Auschwitz – Campo de concentração de Birkenau aos 3 anos com a mãe, perdida e depois encontrada já adulta na Rússia. Este foi o segundo encontro entre o Papa e Lídia, testemunha das atrocidades dos campos de concentração e das experiências do doutor Josef Mengele. Com efeito, a 26 de maio de 2021, no final da Audiência Geral no pátio de São Dâmaso, Lídia saudou Francisco, que se baixou para beijar o número tatuado no seu braço, após 77 anos, do horror vivido: “70072”. O beijo do Santo Padre fortaleceu-a e reconciliou-a com o mundo, como referiu então ao Vatican News logo após aquela audiência. E, neste dia 26, o Papa acariciou a tatuagem no braço de Lídia, a qual lhe trouxe presentes, de entre os quais o livro sobre a sua vida “A menina que não sabia odiar”, recém-impresso por Solferino, e uma fotografia impressa em tela dum encontro com São João Paulo II, de quem a sobrevivente disse ser muito devota.

Também no ano passado, lembrando na oração do Angelus “esta terrível tragédia”, o Papa dissera que “a indiferença não é admissível e a memória é um dever” e convidara os fiéis a rezar, “dizendo cada um em seu coração: nunca mais”.

Aquele “nunca mais”, embora silenciado em prol dum silêncio mais eloquente que qualquer frase ou discurso, transpareceu dos gestos do Papa na peregrinação de dor ao abismo de Auschwitz-Birkenau, durante a viagem de 2016 à Polónia. Entre orações diante do muro das execuções ou na cela onde São Maximiliano Kolbe passou os últimos momentos de vida, entre abraços com os sobreviventes e caminhada com a cabeça baixa entre os memoriais de mármore, nenhuma palavra saiu da boca do Pontífice. Apenas estava na sua alma a oração que deixou escrita em espanhol no Livro de Honra do campo de extermínio:

Senhor, tem piedade do seu povo. Senhor, perdão por tanta crueldade!

***

No Dia da Memória das Vítimas do Holocausto, recorda-se uma história de salvação: a duma paróquia romana que salvou 15 meninas judias. Efetivamente, na igreja de Santa Maria ai Monti, a poucos passos do Coliseu, um grupo de meninas foi escondido graças às irmãs e ao pároco durante as rondas nazistas de 1943.

Passavam o dia a desenhar refugiadas num túnel estreito e escuro sob o campanário daquela igreja e distraíam-se do constante rumor das botas dos soldados sobre os paralelepípedos, no mês de outubro de 1943, um longo período de terror que transformou Roma em floresta onde os predadores alemães arrancaram das suas casas vítimas inocentes. Aquelas meninas desenhavam sobretudo rostos de suas mães e pais para o terror ou o tempo não turvarem a sua memória, os das bonecas perdidas na fuga e o rosto da Rainha Esther a segurar um kallá, o pão da oferta. Escreviam os seus nomes e sobrenomes, Matilde, Clélia, Carla, Anna, Aida.

Aida, cuja assinatura permanece nas paredes com elegante caligrafia: “Aida Sermoneta. Moro na sombra destes arcos.” – arcos em que se veem, embora desbotados pela humidade, peixes e frases em hebraico, dedicatórias à “Roma santa e popular”. Talvez as meninas quisessem, com o atrito do carvão nas paredes, cobrir gritos, tiros, portas batidas.

A menor das 15 meninas tinha 4 anos de idade. Salvaram-se escondidas num espaço de 6 metros de comprimento e 2 metros de largura no ponto mais alto daquela igreja do século XVI. Ali passavam horas agonizantes, que se transformavam em dias. Entre as paredes e os arcos moviam-se como sombras para escapar a soldados e delatores. Ajudadas pelas irmãs e pelo Padre Guido Ciuffa, pároco à época, escaparam do rastreamento e morte nos campos de concentração onde perderam a vida os seus parentes, que tiveram a coragem de confiá-las às Filhas da Caridade no então Convento das Neófitas. Misturadas com as estudantes e noviças, ao primeiro sinal de perigo, eram levadas à paróquia por uma porta interna de comunicação.

Hoje aquela porta é uma parede de betão na Sala da Catequese. O padre Francesco Pesce, o pároco de Santa Maria ai Monti há 12 anos e muito apreciado em toda a vizinhança, um emblema duma Roma capaz de fazer dialogar etnias e religiões, costuma explicar às crianças o que aconteceu ali e principalmente “o que não deve mais acontecer”. E disse ao Vatican News, que “esta porta é simbólica, é uma passagem do desespero para a esperança, do mal para o bem”.  De lá as meninas corriam para a sacristia na direção doutra porta, disfarçada pelo Padre Guido com tapeçarias, vestes, mantos de Nossa Senhora. Era o ponto de junção para subir a escada escura em espiral, com 95 degraus, que levava a um plano sobre a abside, 30 metros acima do solo. Mais acima, estavam os sinos ou o céu, a única via de fuga. Porém, nos momentos de perigo, era a única via de salvação. Agora, o chão range por causa das carcaças de pombos mortos; a respiração encurta; e os olhos só se acostumam à escuridão após alguns minutos, quando janelas do tamanho de tijolos deixam entrar alguma luz. Algumas meninas subiam e desciam a torre, sozinhas, revezando-se, para recolherem alimentos e roupas e levá-los às colegas, que esperavam na cúpula de betão que cobria a abside.

No entender do Padre Pesce, a história de Santa Maria ai Monti não é só a história duma Igreja comprometida na resistência à fúria nazi, mas uma história de fraternidade escrita entre as linhas do que Francisco chamou de “a página mais negra” da humanidade. E o pároco explicita:

Aqui tocamos o auge da dor, mas também o auge do amor (…) Toda a vizinhança ajudava, não apenas cristãos católicos, mas também irmãos de outras religiões que se mantiveram em silêncio e continuaram a obra de caridade. Nisso eu vejo uma antecipação da Fratelli tutti..

Todos no bairro sabiam que havia 15 meninas judias escondidas na paróquia, mas todos faziam escudo para protegê-las. Não cederam a ameaças ou promessas de recompensas, não quiseram compartilhar nem as informações necessárias para organizar as ajudas – muito arriscado com soldados a patrulhar continuamente o bairro e com delatores e espiões infiltrados nas missas a escutar e observar para depois venderem a vida de outros.

As meninas, que pura e simplesmente tiveram que desaparecer, foram todas salvas. E, quando adultas e tornadas esposas, mães e avós, continuaram a visitar a paróquia. Uma delas continuou a visitar a paróquia até há alguns anos, indo ao refúgio até onde as pernas permitiam. E, quando ficou idosa, parava ante a porta da sacristia e chorava de joelhos, tal como fazia há 80 anos.

***

Edith Bruck, a escritora de 90 anos que sobreviveu a Auschwitz, lembra a sua indescritível experiência dos campos de concentração, ressaltando como, por muito tempo e ainda hoje, muitos não reconhecem a Shoah, pelo que pede aos jornalistas que escrevam sobre o tema e contem também o que de bom acontece todos os dias no mundo.

Esta húngara naturalizada italiana tinha 13 anos quando foi deportada para Auschwitz e, depois, para outros 6 campos de concentração. O último, Bergen-Belsen, foi o da sua libertação em abril de 1945, após um ano de prisão, junto com a sua família, mas só voltando consigo uma irmã.

Regressou à Hungria, em maio, ao completar 14 anos. Porém, a pobreza e o luto impediram-na de ficar em casa. Foi para a Tchecoslováquia, depois para Israel – dois países onde buscou nova vida, de serenidade. Posteriormente, em 1954, foi parar a Roma, Itália, onde reside. Foi nessa mesma casa romana que o Papa a foi visitar de surpresa há pouco menos de um ano. Desde então não foi interrompido o abraço, as lágrimas e o diálogo. Como escritora e poeta, o seu amor pela escrita, que a acompanha há décadas, leva-a a continuar a escrever “enquanto estiver viva”.

Sobre o facto de muitos se perguntarem como foi possível desviar o olhar ante o que sucedia nos campos de concentração, sustenta que tudo era conhecido sobretudo da parte dos estadunidenses e dos alemães. Muitos judeus foram para a América, onde lhes disseram que era impossível estar a acontecer isso. Alguns fingiam não acreditar por interesse político ou bélico. Os estadunidenses poderiam ter bombardeado antes a ferrovia que levava a Auschwitz. Os judeus continuaram a ser deportados, mesmo em fevereiro de 1945, para Bergen-Belsen. A negação começou após a guerra.

Dos campos de concentração atuais diz que “são terríveis”, mas os confunde com os nazistas. Não obstante, critica a mesma indiferença, porque “os homens não aprenderam com os seus erros”.

Quanto à presença na Itália, há algumas semanas, de pessoas vestidas de deportados para dizer não ao passe verde, sustenta que se trata de “uma obscenidade”, um circo ante milhões de mortos, e mostra-se indignada como ao ver manifestações com bandeiras nazistas na Itália. Ao mesmo tempo, apela a que não se esqueça o que está escrito na Constituição Italiana e alerta para o avanço do antissemitismo em toda a Europa, aliás como o fez a Presidente da Comissão Europeia. Pode não afetar a todos, mas diz respeito à humanidade, aos excluídos, aos últimos. E hoje não podemos dizer que não sabemos, pois hoje tudo se vê ouve, dada índole da aldeia global que habitamos.

Acha incorreto reduzir a números os dados sobre as vítimas da covid-19, porque se trata de seres humanos e “o homem é um mundo, não é um número”. São vidas humanas que estão em causa.

Aquando da sua deportação, havia música. A esse respeito, diz que achava que só conhecia as canções nazistas, contra os judeus. É certo que muitas pessoas “compuseram orquestras” nos campos, mas só para os alemães. Para judeus, a música era gritar e chorar, silêncio, morte e tiros.

Apesar de se falarem tantas línguas nos campos, observa que os judeus húngaros foram os últimos a ser deportados e que se entendiam, mas não conversavam, pois não havia tempo para falar, nem pela solidariedade. Na verdade, “o que importava era apenas não perder a vida”. Com um frio enlouquecedor e uma fome cegante, não havia nada a dizer a não ser cuidar de si mesmo e ali era difícil pensar em amizade.

Refere que, no pós-guerra, os judeus não foram bem recebidos, não foram ouvidos. Foram tratados como “restos de vida, trapos”. Por isso, “estava explodindo de palavras”. E explicita:

Comecei a escrever em inglês, depois na Itália aprendi italiano e voltei a escrever aquele livro iniciado na Hungria em 1946. Então publiquei o primeiro texto em 1959 e não parei mais. Acredito que farei isso até so fim dos meus dias, pois continuarei a frequentar as escolas.”.

Considera que os jovens precisam de saber e querem saber, mas há pouca comunicação na família; e, de facto, nenhum país lidou com este grande discurso, senão em parte, pelo que estão a avançar o racismo e o antissemitismo – enorme responsabilidade para toda a Europa.

Julga importantíssimo o diálogo intergeracional e a nota que os idosos, muitas vezes excluídos do diálogo por não produzirem, ficam perdidos nas residências e morrem, tornando-se a sociedade “egoísta e estéril de coração, uma verdadeira tragédia”. E, falando da essência do diálogo, observa que “ainda não aprendemos a escutar de verdade” e que a escuta é o mais importante. Porfia que “os jovens são mais maduros do que imaginamos” e aponta que “falamos de bullying e violência, mas não da curiosidade deles”, não sendo nós capazes de falar com eles. Para tanto, “devemos aprender a ouvir”. E, tendo, no ano passado, visto mais escuta, provavelmente mercê da ansiedade resultante da pandemia, confessa ter-se multiplicado na escrita e na concessão de entrevistas.

Valoriza imenso o gesto de Francisco a ter visitado em casa para a ouvir e de algumas vezes lhe ligar para falarem por telefone. Observa que outros Papas foram pedir perdão na Sinagoga, mas sublinha que o facto de Francisco ter ido a sua casa “teve um grande eco”. Pensa que “é o gesto mais bonito, esse perdão da minha casa se espalhou por todo o mundo”.

Por fim, releva que tem vontade de dizer que os jornalistas têm de contar as coisas positivas, não só as más. Na verdade, nos livros também fala sobre as luzes daquele ano de prisão e, quando vai às escolas, fala das sombras, da luz, da esperança, para as crianças não ficarem com informação truncada. Com efeito, há muitas pessoas que fazem o bem e isso deve ser contado e exaltado.  

***

O Holocausto foi uma vergonha trágica, não deve ser esquecido nem pode repetir-se.

2022.01.27 – Louro de Carvalho

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

A introdução de animais na campanha eleitoral é pirosa e desviante

 

Quando o legislador constituinte estabeleceu que as eleições deveriam ser precedidas dum tempo concreto de campanha de esclarecimento e propaganda política, sem obstar a que antes houvesse um tempo mais alargado de informação sobre o estado do país e do seu futuro, não estaria a pensar que o palco dos políticos fosse invadido por animais, mesmo que de estimação. Também não me parece que o legislador ordinário, naquele voto necessário da maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções para aprovação duma lei orgânica, admitisse tal cenário.

É certo que os partidos são livres de dizer e proclamar o que entendem, mas o exercício dessa liberdade traz consequências e estas, no caso vertente, são nefastas do meu ponto de vista.  

Não acompanho a tirada do criador de marcas Carlos Coelho, que acha muito positivo, em artigo do DN, que os líderes dos dois maiores partidos que disputam as próximas eleições tenham lançado mão de animais de estimação para de algum modo os acompanharem nos seus périplos pelo território do eleitorado, no pressuposto de terem “percebido que para cativar eleitorado, mais do que as propostas políticas (…) é preciso conhecer os homens que estão por detrás delas”.

A consequência primeira de tal postura não será o desagrado ou a perda de eleitores nas respetivas causas, mas banaliza a política, de que tantos estão desinteressados e andam afastados, e miseribiliza o Estado, que tem sido o fator de sobrevivência para tantos e que deve, pelo menos, manter a sua feição teleológica e reguladora e intervir sempre que necessário, mormente em situações de emergência e calamidade ou de extremas depressão e pobreza das populações. Além disso, o Estado e os políticos deixam se constituir em referencial ético que deve subjazer à génese das leis e regulamentos, às medidas administrativas de nível superior e à administração da justiça.

Para mostrar quem são os humanos que estão por trás dos políticos que se apresentam ao eleitorado, não é preciso recorrer a animais como ícones, muito menos torná-los atores políticos, independentemente da personalidade que deles seja dono. Ademais, os líderes acima referidos de forma subentendida são mais do que conhecidos pelo povo e não podem, sob risco de hipocrisia, assumir publicamente um tipo de personalidade diferente da que os carateriza. É certo que eles são rosto de organizações políticas, mas não deixam de ser quem são. E, se não importa apenas ser, mas também parecer, nunca o parecer pode ser diferente do ser.

Nós sabemos que ambos os sobreditos líderes são igualmente autoritários e dialogantes, defensores das suas verdades e irónicos, zelosos da sua ideia de interesse nacional, desejosos de alcançar a maioria absoluta no Parlamento (parece que não atingível nas atuais circunstâncias), ambos capazes de assegurar a governação, embora um esteja desgastado e outro sem experiência governativa, e – porque não? – ambos candidatos à superior distribuição e gestão dos fundos europeus, agora tidos por tão abundantes. Por isso, não lhes vale a pena ocultarem-se por trás dos seus animais de estimação, assumi-los como protagonistas ou usá-los como mascotes.

Assim, não concordo com o dito de que “Rio passou de contabilista a humorista e o gato transformou-o em político”. Com efeito, nem o dito líder era contabilista, nem faz carreira de humorista, antes se revela um político em ascensão. E, se uma ou outra graçola pode dar jeito para descongestionar uma tensão política discursiva ou de ação, não pode aceitar-se que a política, as suas campanhas e o seu exercício se tornem no “panem et circenses” do Império Romano. O mesmo serve para o seu principal contendor, que bem escusava de apresentar os seus cães ou cadelas, que não o livram do estigma do desgaste governamental, de que apenas se livrará se o eleitorado vier a acreditar no seu programa eleitoral e na sua capacidade de nova governação.

É certo que outros líderes partidários como os do Livre e do Chega também apresentaram os seus animais, aliás o PAN é useiro e vezeiro nisso por integrar o seu ideário político. Porém, a não ser no caso do PAN, cujo respeito abrande todas as espécies humanas, menos os micróbios, a dinâmica animal não constitui uma significativa mais-valia, não passando dum recurso piroso, a não ser que se julgue útil em política o caso das cadelas que João Rendeiro deixou em Portugal quando fugiu à justiça e de que disse ter muita pena, aliás como da mulher.  

Alega-se que algumas das ideias programáticas são muito técnicas e devem ser debatidas em espaços concretos. Com efeito, falar de PIB, revisão constitucional, orçamento do Estado para a maioria dos portugueses não quer dizer nada. E, embora importantes para o país, não concitam o voto dos eleitores. Ora, cabe aos partidos explicar aos eleitores as marcas dos seus programas eleitorais que enunciam aos quatro ventos, mesmo as mais complexas. Se um partido não é capaz de explicar o seu ideário ao povo, como pode ser considerado capaz de governar ou de intervir no Parlamento? Estaremos a dar razão àqueles que dizem que a maior arte dos ministros não conhece os assuntos da pasta que sobraça ou que a maior parte dos deputados não percebe o que está a votar, limitando-se a seguir acriticamente as indicações do chefe?   

O que está em causa nos votos são as ideologias mais à direita ou mais à esquerda, bem como as práticas de que somos ou fomos testemunhas. Porém, se inquiríssemos as pessoas, elas teriam dificuldade em dizer o que é mais dum lado ou doutro e que os líderes nacionais elas acreditam que podem levar o país por diante, seja pretendendo dar continuidade às políticas que existem, seja entendendo dever alterá-las. Ao invés, se não tiverem memória curta, hão de lembrar-se de como se destruiu a nossa agricultura, a nossa ferrovia, muita da nossa indústria; como se entrou no euro sem a devida preparação das empresas e das famílias; de como se privatizaram ou venderam ao desbarato setores estratégicos nacionais; de como os funcionários do Estado foram destratados; de como os portugueses sofreram aumentos brutais de impostos e taxas ou tiveram cortes enormes em subsídios; e de como os serviços públicos se degradaram.         

Tenho a ideia de que a primeira parte da campanha, apesar de alguns mimos desagradáveis entre adversários, estava a contribuir para o esclarecimento dos eleitores. Porém, cedo os protagonistas se cansaram da positividade do discurso e pensaram, em nome da ecologia, apostar na exposição dos animais, em substituição das famílias, tendo sido André Ventura o primeiro a mostrar o seu coelhinho, a que se foram seguindo outros no certame da fauna em que parecem querer transformar o ato eleitoral. Diz Carlos Coelho que “isto aproxima as pessoas e podem vir os intelectuais dizer que a campanha baixou de nível porque baixou para os gatinhos”, mas, na sua ótica, “é este tipo de coisas que levam as pessoas a importarem-se com o que se está a passar”.

Diz o criador de marcas que as pessoas, para decidirem em quem votar, “precisam de fazer uma reflexão” e que “gostavam de mudar mas não sabem para quem”. E é certo que “não vão ler os programas dos partidos”. Contudo, eu não creio que seja o painel de animais que a campanha deu a conhecer que induz uma séria reflexão e uma escolha consciente. Por isso, é importante que os partidos expliquem, esmiúcem os pontos-chave dos seus programas. Obviamente é bom que sejam simpáticos e até ofereçam recordações para que os eleitores pensem neles, mas não vejo os partidos a distribuir gatos, cães e coelhos pelos eleitores. Seria muito caro e, em termos de ética política, muito pior a emenda que o soneto.      

Sustenta o articulista que “é preciso entender que há a política da escola, a alta política, as pessoas que se interessam e estudam e a elite que pode governar o país e que deve discutir as medidas que podem aplicar e a melhor forma de o fazer”. Bom, cá temos o país dos inteligentes e dos dotados e dos que pouco percebem da coisa pública. Estou farto de comentadores, jornalistas e políticos que fazem dos portugueses imbecis: “para as pessoas perceberem lá em casa”; “o povo não entende”; “estamos aqui a discutir não tendo em conta as pessoas lá em casa”; etc. Quase todas as pessoas entendem estas coisas desde que lhas digam e expliquem. O que falta, por vezes, aos comunicadores é a capacidade de descomplexar os temas. Também o médico, o advogado ou o engenheiro, para lá do alto saber académico, são capazes de explicar aos clientes o que fazem.   

Temos até “uma classe média mais informada que gosta de ouvir as ideias, embora não as goste de discutir muito”, diz Carlos Coelho, mas temos “uma massa de pessoas que vota por fé ou por desilusão” e quem decide efetivamente são todos os outros.

Por isso, no entender do articulista, os líderes não puseram na mesa ideias extraordinárias e entenderam que a campanha é relação com as pessoas, a capacidade de comunicar e atrair as pessoas para a política e desintelectualizar a política sempre que for preciso. Por este motivo é que as sondagens dão aproximações. Ora, apesar de isto ser verdade, não é a vertente da fauna exposta que dá valia à campanha. Tudo o que seja tirar a atenção das pessoas e dos problemas para as coisas e animais é desviante e não deve ser bem-vindo. É a liberdade que assiste às pessoas e organizações, mas é também a liberdade de crítica que nos assiste a todos.  

Nem é razoável dizer que “não foi a capacidade intelectual extrema que fez do Dr. Mário Soares um ícone”, mas a capacidade de “saber falar para a elite, para a burguesia e para o povo”. Talvez este, como outros de boa memória, tenha feito o que não se faz hoje: aliar a capacidade intelectual à empatia, estar com as pessoas, explicar-lhes o que se pensa, partir os programas em pedacinhos, embora fiquem muitas coisas por dizer ou explicar e até mostrar, não raro, algum mau humor.    

Por mim, ao certame animal prefiro uma campanha séria, elevada e esclarecedora. Se “a qualidade intrínseca das coisas não é suficiente”, também “a qualidade percebida” sem qualidade intrínseca é oca. Os políticos devem ter a capacidade de fazer a ponte entre o que os cidadãos já entendem de política e o contexto político de descapitalização política, para os atraírem à política. E fazê-lo com gatinhos ou cães pode ser folclórico, mas não suscita mais participação política, tal como o excesso de humor ou o humor mal enquadrado não garantem eficácia política.

Precisamos de política à séria e não de fatores de desvio ou de feição pirosa.

2022.01.26 – Louro de Carvalho

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

O que propõem os partidos em matéria laboral

 

A legislação laboral foi um dos principais fatores da rejeição parlamentar da proposta do OE 2022, pelo que assume peculiar relevo nos programas eleitorais dos partidos para a governação a partir de 30 de janeiro. Por exemplo, há quem pretenda o aumento do salário mínimo mensal nacional, agora denominado retribuição mínima mensal garantida (RMMG), para 1000€, como há quem o queira substituir por valor definido município a município. Enquanto uns querem travar os despedimentos, outros querem reduzir a sua complexidade.

***

A evolução da RMMG divide constantemente as forças políticas e agora não é diferente.

O PS quer a trajetória da RMMG definida por acordo de médio prazo  na Concertação Social, “evoluindo em cada ano em função da dinâmica do emprego e do crescimento económico” para atingir pelo menos 900€ em 2026. Já o PSD, sem fixar meta numérica, sustenta que a discussão deve fazer-se com os parceiros sociais, em linha com a inflação e os ganhos de produtividade.

BE entende que, na legislatura, a RMMG deve ser atualizada ao “ritmo anual de, pelo menos, 10%”, para “diminuir a diferença em relação ao salário mínimo de Espanha”, agora situado em 965mensais (a 14 meses). Já a CDU quer a subida, já este ano, para 800€, embora tenha sido atualizada (em janeiro) para 705€, e propõe novo aumento para 850€ “a curto prazo”.

Por seu turno, o PAN propõe o seu aumento gradual acima da inflação e da variação do salário médio do ano anterior, “fixando-o, pelo menos, em 905€ no fim da legislatura” (mais 5€ que o PS).

O Livre acha que a RMMG deveria atingir os 1000€ até ao fim da legislatura (mais 100 que o PS).

Iniciativa Liberal (IL) quer substituir a RMMG pelo salário mínimo municipal, que passaria a ser aprovado em Assembleia Municipal por sugestão do executivo camarário.

***

combate à precariedade é outro dos temas em destaque nas propostas partidárias.

Após a Agenda do Trabalho Digno ter recebido “luz verde” em Conselho de Ministros antes da rejeição da proposta de OE 2022, o PS quer aprová-la na Assembleia da República (AR) até julho. Do pacote constam várias medidas de combate à precariedade, como a melhoria da regulação do trabalho temporário, a criminalização do trabalho não declarado, o reforço dos poderes da ACT (Autoridade para as Condições do Trabalho) e a regulação do trabalho nas plataformas digitais, criando-se a presunção de laboralidade adequada. Implementará a contribuição adicional por rotatividade excessiva, taxa constante no Código do Trabalho (CT), mas não saída do papel por falta de decreto regulamentar. E quer aprofundar as exigências dos estágios profissionais apoiados no reforço dos critérios de aprovação de candidaturas e ligação com a empregabilidade direta dos jovens por parte das empresas e dos níveis das bolsas praticadas, e melhorando a regulação dos estágios não apoiados. Já o PSD “defende o aprofundamento da fiscalização e o combate à utilização injustificada de formas precárias e segmentadas de trabalho”, sem especificar pormenores. E aposta firme nos incentivos à inserção dos jovens e desempregados no mercado de trabalho.

BE defende a aprovação de nova lei de combate ao trabalho temporário e ao falso outsourcing, pela limitação dos fundamentos, duração do trabalho temporário para o máximo de 6 meses, obrigação de vinculação à empresa no fim de meio ano, aplicação das regras da convenção coletiva aos trabalhadores em outsourcing, possibilidade de quem está nessa situação ser representado pelas organizações da empresa, proibição de empresa que extinga posto de trabalho contratar para funções equivalentes alguém em outsourcing e proibição da externalização de funções relativas ao seu objeto social central. Quer fixar a obrigação de celebrar contratos com as plataformas digitais, havendo presunção de contrato, sem intermediários, e a revogação do alargamento do período experimental a jovens à procura do 1.º emprego e desempregados de longa duração. E sugere a restrição de utilização de contratos a prazo às situações de substituição temporária e de pico ou sazonalidade de atividade e a eliminação das exceções que azam a sucessão de contratos a termo. Ademais, quer a “limitação da utilização abusiva de estágios apoiados” pelo IEFP, criando a obrigação de as empresas integrarem, pelo menos, um em cada 3 estagiários e o reforço da fiscalização de falsos estágios e utilização de estágios sucessivos para ocupar funções permanentes na empresa. Já a CDU promete combater a precariedade garantindo que “a um posto de trabalho permanente corresponda um contrato de trabalho efetivo”.

PAN quer reforçar o número de efetivos da ACT, “assegurando uma fiscalização e intervenção mais eficaz que impeça o recurso à contratação de trabalhadores com vínculo precário para o desempenho de funções permanentes, bem como o não cumprimento da promoção da igualdade remuneratória entre homens e mulheres por trabalho igual ou de igual valor. E quer reforçar os incentivos à conversão de estágios em contratos sem termo, pelo cofinanciamento, nos primeiros 6 meses, dos contratos permanentes.

O Livre quer reforçar da capacidade da ACT para “erradicar os estágios não remunerados ou pagos abaixo do salário mínimo”, eliminar os “falsos contratos de trabalho no Estado com o nome de Contratos de Inserção do IEFP e limitar a subcontratação no Estado a situações justificadas e que garantam que os trabalhadores subcontratados gozam de condições contratuais comparáveis à Administração Pública”. E defende a erradicação dos falsos recibos verdes falsos estágios, a regulação do recurso ao trabalho temporário, a restrição dos contratos a prazo a funções comprovadamente temporárias e o combate ao recurso abusivo ao estatuto de bolseiro.

IL defende o combate à segmentação do mercado de trabalho, “entre contratos a termo e contratos de prestações de serviços, por um lado, e contratos sem termo, por outro”.

Chega quer incentivos às empresas que contratem sem termo certo jovens ou jovens que tenham emigrado há, pelo menos, 2 anos para combater a precariedade laboral e o abuso de estágios.

***

A expressão “mais tempo para viver”, do PAN, está, de algum modo, na maioria dos programas eleitorais, quando a conciliação da vida profissional, pessoal e familiar tem conquistado terreno.

Os socialistas prometem “um amplo debate nacional e na Concertação Social sobre novas formas de gestão e equilíbrio dos tempos de trabalho, incluindo ponderar a aplicabilidade de experiências como a semana de 4 dias em diferentes setores e o uso de modelos híbridos de trabalho presencial e teletrabalho, com base na negociação coletiva. O BE abre a porta à semana de 4 dias, ideia testada noutros países, mas com as confederações patronais a avisar que não tem pernas para andar entre nós, pelo menos, nos próximos anos. Sobre o tempo de trabalho, defende ainda a redução do horário de trabalho para 35 horas, a reposição do pagamento integral das horas extra, a limitação e regulação da figura da isenção de horário e da generalização da laboração contínua e a devolução dos 3 dias de férias cortados anteriormente (quer restabelecer os 25 dias de férias por ano). Promete o reconhecimento de mais direitos a quem trabalha por turnos, nomeadamente com a definição de pausas e tempos de descanso e fins de semana, a redução dos tempos de trabalho e a majoração dos dias de férias. E a CDU propõe a redução da semana de trabalho para 35 horas, “sem perda de remuneração nem de outros direitos”, a consagração de 25 dias úteis de férias para todos os trabalhadores e garantia dos direitos no trabalho por turnos.

Sob o lema “mais tempo para viver”, o PAN reporá o valor do trabalho suplementar, estabelecerá o horário semanal de 35 horas para todos os trabalhadores, fixará o período de férias de 25 dias úteis (30 dias úteis para pessoas com incapacidade superior a 60%), aos quais pode acrescer um dia útil por cada 5 anos acima dos 50, e consagrar o dia Carnaval como feriado obrigatório. E, como o BE e a CDU, reforçará os direitos dos trabalhadores em regime de trabalho noturno e por turnos.

Já o Livre quer aumentar o tempo disponível para todos, com a implementação imediata das 35 horas semanais e dos 25 dias de férias, com progressão até 2030 para 30 horas semanais e 30 dias de férias anuais. Tal garante “maior distribuição do trabalho”. Sugere não aumentar a idade legal de acesso à pensão de velhice e permitir a redução do horário de trabalho em função da idade do trabalhador sem perda de rendimento (em alternativa à reforma). E defende a flexibilidade dos horários, para efetiva e saudável articulação entre as esferas laboral e pessoal.

Sobre o tempo de trabalho, a IL defende o restabelecimento do banco de horas individual, eliminada na revisão de 2019 do CT. Quer que seja ressuscitado para ser aplicado por acordo entre empregado e empregador, “podendo o horário normal de trabalho ser aumentado até duas horas por dias, 50 por semana e 150 por ano”.

***

É de ver ainda as propostas dos partidos para os trabalhadores independentes, embora poucas.

O PS quer alargar a contratação coletiva a trabalhadores independentes, mas economicamente dependentes, e aos trabalhadores em outsourcing (o que já integra a Agenda do Trabalho Digno). E o PSD propõe a redução para metade do prazo de garantia do subsídio por cessação de atividade, “a fim de abranger os trabalhadores independentes que cessem de forma involuntária o contrato de prestação de serviços com a entidade contratante”, em estado de emergência ou de calamidade.

Os bloquistas defendem a regularização dos falsos recibos verdes, “com metas concretas para obrigar à celebração de contrato a dezenas de milhares de trabalhadores, utilizando a Ação Especial de Reconhecimento do Contrato de Trabalho e com a inclusão de um critério de exclusão de empresas com falsos recibos verdes em qualquer contrato com o Estado”.

Livre quer uma retribuição horária mínima garantida de 10€ para estes portugueses, além de um novo estatuto de proteção do trabalho independente pela Segurança Social, ajustar a tabela de retenção para os trabalhadores independentes e reforçar a sua capacidade de negociação coletiva.

IL quer aumentar o limite de isenção de IVA aos trabalhadores independentes, passando o teto a 20.000€, maior simplicidade fiscal e redução dos custos de cumprimento de obrigações fiscais.

***

Há ainda outras propostas para o nosso mercado de trabalho.

Por exemplo, o PS clarificará na lei as condições de exercício dos diretos sindicais nas empresas, ponderará com os parceiros sociais mecanismos de reforço da prevenção de conflitos laborais, em especial na negociação coletiva, discutirá na Concertação Social estímulos à participação de empresas e trabalhadores em associações e reavaliará a utilização do fundo de compensação do trabalho para melhorar o enquadramento e impacto nas relações laborais. E o PSD dissuadirá as formas de assédio no local de trabalho como condicionantes da liberdade e ofensivas da dignidade da pessoa, apostará na formação profissional ao longo da vida, valorizará a Concertação e limitará a intervenção do Estado nos processos de negociação coletiva.

O BE quer relançar a contratação coletiva e o sistema coletivo de relações laborais, insistindo no fim da caducidade unilateral dos instrumentos de regulação coletiva de trabalho, na reposição do tratamento mais favorável ao trabalhador e no alargamento dos mecanismos de arbitragem. Exige o fim da herança da troika, com a reposição do valor das compensações por despedimento e regras anteriores àquele período. Quer travar todos os despedimentos, exceto os levados a cabo por justa causa, em empresas com resultados positivos no ano anterior. Defende a revogação da norma que impõe que o recebimento da compensação do trabalhador vale como presunção de que aceita o despedimento e não pode contestar a sua licitude. E quer reconhecer no CT trabalho doméstico assalariado e trabalho profissional associados aos cuidados, consagrando aí o subsídio de alimentação para todos os trabalhadores do privado, e definir leques salariais de referência, nos setores público e privado, para combate às desigualdades salariais, sendo as empresas que ultrapassem esse leque excluídas de qualquer apoio público e benefício fiscal, bem como da possibilidade de participar em arrematações e concursos públicos.

Também a CDU quer acabar com as normas gravosas do CT, isto é, pôr fim à caducidade da contratação coletiva e repor o princípio do tratamento mais favorável. E quer, na Administração Pública, a revogação do sistema de avaliação de desempenho (o SIADAP), a revisão da Tabela Remuneratória Única e a reposição do poder de compra perdido pelos funcionários públicos, medidas reivindicadas pelos sindicatos e sem resposta ao longo dos anos.

Já o PAN quer aumentar a compensação por despedimento e revogar a presunção de aceitação de despedimento coletivo, mercê da aceitação da compensação paga pelo empregador, e propõe a salvaguarda da privacidade dos trabalhadores, “não permitindo que a entidade patronal tenha acesso ao conteúdo de e-mails, nomeadamente de cariz pessoal, remetidos ou recebidos através de computador disponibilizado pelo empregador”.

O Livre, no capítulo dos salários, propõe fixar um rácio máximo de desigualdade remuneratória em cada empresa, organização ou setor, indexar os salários à inflação e limitar os bónus e prémios atribuídos a acionistas, “promovendo a sua distribuição a todos os trabalhadores”. Defende a reativação da negociação coletiva e o alargamento do leque de matérias a negociar. Quanto ao teletrabalho, entende que deve ser alargado o direito aos trabalhadores com filhos ou dependentes até aos 12 anos, trabalhadoras grávidas, trabalhadores a quem seja atribuído o estatuto de cuidador não principal, trabalhadores com doença crónica ou com grau de incapacidade igual ou superior a 60% e trabalhadores-estudantes. Quer a clarificação do pagamento, por parte do empregador, dum valor mínimo para despesas correntes, indexado ao valor do salário mínimo nacional e o pagamento do subsídio de almoço. Quer um sistema público de formação pós-laboral, que permita a empresas e trabalhadores ganharem novas competências, um programa de apoio à digitalização e otimização das empresas, acompanhado dum programa de recursos humanos a médio prazo. E sugere a taxação das empresas que despeçam ou extingam postos de trabalho por introdução de automação, revertendo o valor para um fundo específico, na Segurança Social, de reconversão profissional dos trabalhadores afetados ou “para constituir uma das fontes de financiamento do Rendimento Básico Incondicional”.

E a IL quer apor no recibo de vencimento os custos suportados pelo entidade empregador a nível de Segurança Social, de modo a demonstrar o salário real. A pensar no futuro, quer promover os nómadas digitais e o trabalho remoto, o que passa pela revisão das regras recém-aprovadas pela AR, e reduzir a complexidade administrativa dos processos de despedimento individual.

***

É de referir que partidos com representação parlamentar omissos em algum ou alguns dos itens acima desenvolvidos não têm propostas eleitorais programáticas sobre a respetiva matéria. E, quando há posições sobre um determinado item da parte de PS e de PSD, elas são colocadas em confronto, porque tudo prevê que a liderança de governo se dispute entre esses dois partidos.

Por fim, é de assinalar que os principais projetos partidários em matéria laboral parecem pugnar, a seu modo, pelo trabalho digno, embora uns se mostrem claramente mais pelos trabalhadores e outros deixem entrever especial apreço pela empresa e pelo capital.   

É da empresa que se espera a riqueza, quer pela produção, quer pela transformação, circulação e distribuição, mas a empresa não subsiste sem o trabalho equilibrado e o trabalhador dignificado. Não vale a pena apostar no regime de baixos salários, que são inimigos da produtividade e da competitividade e geram a economia de pobreza. A solução passa necessariamente pela baixa dos custos de produção (água, eletricidade e telecomunicações caras como as temos são insuportáveis), pela qualificação de empresários, gestores e trabalhadores e obviamente pela responsabilização de cada um segundo a sua condição – qualificação que induzirá capacidade de organização e planeamento, gestão e avaliação, capacidade de investimento, mesmo com risco calculado, culto da função social da empresa e liderança racional e afetiva.

2022.01.25 – Louro de Carvalho