É
natural que os vencedores das eleições legislativas tenham ficado hipercontentes
e os que sofreram o amargo sabor da derrota, quando acalentavam a esperança
quase certa da vitória, ainda que por curta margem, tenham ficado desapontados.
Porém, ouvir Isabel Meireles a desabafar, questionada sobre o que falhou,
dizendo que “o que falhou foi o povo
português”, pois “os portugueses
preferiram acreditar na falácia, na mentira e na inverdade do doutor António
Costa” cria a sensação do desapontamento e do desnorte, o que, se fosse
tomado à letra, significaria falta de charme democrático e constituiria o
avesso da recomendação de Rio a Costa para que soubesse perder com dignidade.
É
óbvio que é o povo que exprime pelo voto quem quer ao leme do país e isso
sempre foi respeitado com maior ou menor bonomia. E Rui Rio até a manifestou,
obviamente declarando que não fora este um dia feliz para o seu partido e até
confessou não ter ele próprio argumentação para se manter à frente do partido. Claro,
já me parece não ter estado tão bem ao responder em alemão a uma pergunta de
jornalista que insistia em chover no molhado, sendo aí quase igual ao jornalista.
De facto, os jornalistas parecem ter gosto mórbido em bater no ceguinho, mas o
político tem de ter estômago e olho eleitoral.
Não
sei explicar o que motivou o volte-face
do eleitorado, se é que o houve. Com efeito, o PS tirou partido do chumbo parlamentar
do OE 2022 e manteve claramente as suas propostas de continuidade, referindo na
campanha o essencial das suas linhas de programação e práxis. E, apesar do
desgaste do Governo e dos erros de Costa e dos demais governantes, o maior
partido da oposição não se perfilou coerentemente como alternativa sustentável,
embora tenha debitado para o eleitorado a ideia de uma certa credibilidade. Enquanto
António Costa prometia a correção de alguns desvios, incluindo a gordura governativa,
Rio perdia-se na questão da prisão perpétua, no equívoco sobre o SNS e nas
questões de governabilidade a partir de 31 de janeiro. Depois, entrou pelo rumo
ínvio das “graçolas” e introduziu o debate com base no protagonismo animal, ao
que outros partidos responderam à letra, mas como gato sobre brasas.
Recordo-me
de que em 1987, após a aprovação de uma moção de censura ao governo minoritário
de Cavaco Silva, da iniciativa do PRD, que o PS secundou, o PS começou a sua campanha
eleitoral com a paródia governativa de Cavaco, um boneco a discursar fazendo
propostas. Percebeu que o eleitorado não estava a apreciar a ironia e arrepiou caminho,
mas tarde. Não terá sido por isso, mas o certo é que o PSD obteve a 1.ª maioria
absoluta dum só partido e Cavaco surgiu como o Dom Sebastião da época. Foi a
partir daí que o distrito de Viseu passou a ser designado por Cavaquistão.
A
par de tudo isto, partidos emergentes cresceram e galvanizaram franjas consideráveis
de eleitores à direita, cansados das divisões internas de PSD e CDS e ávidos de
expressarem – muito com pouca autoridade moral – o que pensam sobre alegados
corpos estranhos na democracia, como a subsidiodependência, o acolhimento de
imigrantes, a situação de favor a determinados grupos, a corrupção e o
desprestígio das forças de segurança. Enfim, tanta pregação de pureza de sangue
numa população tão miscigenada!
A
comunicação social parecia estar – e muitas vezes estava – apostada no derrube
do governo e na suposta alternativa. E as sondagens multiplicavam-se e aproximaram
tanto os dois maiores partidos que o anterior suposto vencedor passou a
putativo derrotado.
Todos
dizem que as sondagens valem o que valem, que não ganham eleições… Todavia,
sabem que elas condicionam o eleitorado tal como as arremetidas da comunicação social
e as declarações dos comentadores políticos. E as últimas eleições autárquicas
serviram de ponto de referência para o alerta da última semana de campanha
sobre resultados eleitorais. Assim, o partido que se presumia agora ser
perdedor “remobilizou” os militantes e teve uma postura nova perante o eleitorado
dando a perceber o que estaria possivelmente oculto por trás da panóplia animal
e no programa do partido mais diretamente adversário.
Quanto
ao eleitorado, percebendo que uma governação à direita dificilmente prescindiria
da comparticipação de forças radicais, não quis entregar à direita a governação
do país, que mais do que ir aumentando salários e pensões paulatinamente e
melhorar as estruturas físicas e humanas dos serviços públicos e do território,
promoveria a alegada criação de riqueza para distribuir depois, procederia à
procrastinação de aumento de salários e pensões, embora com maior volume se
tudo corresse bem, e reduziria drasticamente os impostos, etc. E, porque as
forças políticas que durante 6 anos tinham, com o PS de Costa, impedido a
direita de ascender à governação, estavam agora a oferecer-lhe o poder
executivo, o eleitorado decidiu mobilizar-se para o ato eleitoral aproveitando
todas as janelas de oportunidade que a Comissão Nacional de Eleições, a Procuradoria-Geral
da República, a Direcção-Geral de Saúde e o Governo criaram para facilitar o
voto dentro dos parâmetros previstos na lei eleitoral. E a abstenção baixou
consideravelmente.
Cabe
referir que o próprio Chefe de Estado, na sua mensagem na véspera das eleições,
farpou o Parlamento por não ter reformado o sistema político e não ter feito
lei eleitoral que facilitasse o voto noutras condições e disse expressamente
que era necessário alterar a lei eleitoral e reponderar o dia da reflexão,
concebido para outros tempos. Foi, a meu, ver uma intervenção abusiva a ancorada
na suposta diferença destas eleições em relação a outras. Não lhe cabe influenciar
o eleitorado nem o Parlamento. E, se quer dirigir apelos aos deputados, deverá
fazê-lo não pelos meios de comunicação social, mas através de mensagens
escritas ao Parlamento.
Entretanto,
às 19 horas, José Rodrigues dos Santos apresentava as projeções da UCP sobre a
abstenção entre 49% e 54%; e, às 20 horas, apresentava as projeções da mesma
UCP que davam a vitória ao PS, mas dificilmente com maioria absoluta. E o entusiasmo
do apresentador fê-lo dizer que a Católica nunca errara nas suas projeções. É certo
que não errou de todo, mas outras projeções foram mais certeiras, nomeadamente as
que davam ao PS um intervalo de 110 a 118 deputados, com a probabilidade da
maioria absoluta, e a margem de abstenção de 42% a 44%, em vez dos 95 a 112
deputado e a abstenção de 49% a 54% da UCP.
Por
fim, um reparo às possíveis expectativas do Presidente da República. Se pensava
alterar o sentido da governação para mais ao centro, como referia o “Expresso” do dia 28, enganou-se; e, se
queria a entrega da governação à direita, não o conseguiu. E fica para a
história da presidência como o primeiro Chefe de Estado que, após eleições por
via da dissolução do Parlamento, o deixou uma configuração mais problemática e obteve
a governação para as mesmas mãos que anteriormente. Porém, conseguiu o pressuposto
da estabilidade política, a maioria absoluta, provavelmente a que menos
desejava, deixando de ter o protagonismo que sempre almejou.
O
tempo e o povo encarregam-se de moderar as nossas ambições.
2022.01.31 – Louro de Carvalho