Um episódio do livro de Neemias (Ne
8,2-4a.5-6.8-10), em
tempo de miséria e desolação, com Jerusalém sem muralhas e sem portas, aquando
do regresso dos judeus exilados na Babilónia, mostra-nos este reconstrutor de
Sião e do seu culto a reunir todo o Povo a fim de este escutar a leitura da
Lei. Era preciso lembrar o compromisso fundamental que Israel assumira com
Deus, pois só assim seria viável preparar o futuro novo que Neemias sonhava
para o Povo de Deus.
E o texto releva a preponderância da Palavra de Deus na vida
da comunidade.
Vinca-se a convocação para escutar a Palavra de toda a comunidade
– homens, mulheres e crianças em idade de compreender –, pois a todos a Palavra
se dirige e interpela. A relevar o lugar da Palavra na vida, sobressai o
estrado de madeira feito adrede que põe o leitor em plano superior; e o Livro
da Lei é aberto de forma solene e todos se levantam em atitude de respeito e
veneração. É o exemplo da comunidade onde a Palavra de Deus está no centro e
tudo se conjuga em função do lugar especial que ela ocupa na vida das pessoas e
da comunidade. Depois, vem a descrição do rito: a assembleia aclama a Palavra;
os levitas leem clara e distintamente a Palavra e explicam-na ao povo, de modo
acessível, “de maneira que se pudesse compreender a leitura”; e, a seguir, o
Povo responde: confrontadas com a Palavra, as pessoas choram.
A atitude do Povo revela a comunidade que se deixa questionar
pela Palavra confrontando a vida com a Palavra proclamada, sentindo a urgência
da conversão e tomando consciência de que a Palavra é eficaz e provoca a
transformação da vida. E tudo termina em grande festa, pois o dia consagrado ao
Senhor é dia de alegria para a comunidade que se alimentou da Palavra.
Enfim, este passo de Neemias constitui um genuíno manual de
bela “celebração da Palavra”.
***
Por seu turno, Paulo (1Cor 12,12-30), preocupado porque, na Igreja de
Corinto, os carismas, geridos em benefício próprio, geravam divisão e desprezo
pelos que supostamente não possuíam dons especiais, para clarificar a mensagem,
utiliza a fábula do corpo e dos seus membros. O corpo formado pela comunidade
cristã é constituído por uma pluralidade diversificada de membros, cada um com a
sua tarefa. Não releva só a variedade dos membros, mas também que sejam
distintos, pois é a riqueza da diversidade que garante a sobrevivência do
conjunto. Mais: os membros precisam uns dos outros e preocupam-se uns com os
outros. Por isso, têm como apanágio a solidariedade entre si, que leva à unidade,
com a qual devem aliar-se o pluralismo carismático e a preocupação pelo bem
comum. E a originalidade paulina está em identificar este corpo comunitário com
Cristo: “porém, vós sois corpo de Cristo e seus membros” (“hymeîs
dé este sôma Khristoû kaì mélê ek mérous”: 1Cor 12,27). E nesta identificação com Cristo reside
a parte mais interpelante da parábola. Neste corpo tem de manifestar-se o
Cristo total, que não pode estar dividido, nem dar ao mundo um testemunho de
egoísmo e de desprezo pelos pobres e débeis.
O corpo de Cristo é a comunidade de irmãos que de Cristo
recebem a vida e a partilham, formando a pluralidade de membros, com diversas
funções e cujo estilo tem as marcas da solidariedade, participação e corresponsabilidade.
Não obstante, há hierarquia de crismas, no topo da qual figuram os atinentes à
Palavra, à Boa Nova: apóstolos, profetas, doutores. Com efeito, o corpo de
Cristo é a comunidade que nasce da Palavra criadora e vivificadora que Deus
dirige a cada pessoa e à comunidade, para seu alimento substancioso.
***
Também Lucas (Lc 1,1-4;4,14-21)
nos apresenta, neste III Domingo da
Palavra de Deus e III domingo do Tempo Comum no Ano C, dois trechos
diferentes.
O primeiro (Lc 1,1-4) é um
prólogo com recado aos crentes de língua grega, a quem Lucas dirige o Evangelho
para verificarem “a solidez da doutrina em que foram instruídos”. Com efeito,
desaparecidas as testemunhas oculares de Cristo, surgem as heresias e desvios
doutrinais que põem em risco a identidade cristã. Urge, pois, recordar aos
crentes as suas raízes e a solidez da doutrina recebida de Jesus pelo
testemunho da tradição apostólica. Por isso, o evangelista sublinha “os factos que se realizaram entre nós, como no-los transmitiram os que, desde o início, foram
testemunhas oculares e ministros da palavra” e diz escrever, depois de tudo
haver investigado, para que Teófilo (para lá duma eventual personalidade,
importa ter em conta a qualidade de “theóphilos”,
amigo de Deus) tenha “conhecimento seguro” do que lhe “foi ensinado”.
O segundo trecho (Lc 4,14-21) apresenta o início da pregação de Jesus, que Lucas situa em Nazaré em
cenário de culto sinagogal, ao sábado, constituído por orações e leituras da
Lei e dos Profetas, com o respetivo comentário, sendo os leitores/comentadores
membros instruídos da comunidade ou visitantes conhecidos pelo seu saber na
explicação da Palavra.
Também em Lucas, como em Neemias e em Paulo, a Palavra é
central e está no topo da hierarquia do culto, dos carismas e das preocupações
transcendentais da comunidade que interpelam a vida.
Jesus, apresentando-Se como o Messias, usa palavras do
profeta Isaías. Assim, o centro do relato lucano, que parece a proclamação dum
trecho do Tritoisaías (cf
Is 61,1-2) que descreve
como o Messias concretizará a sua missão, desloca-se para a asserção clara e
convicta de Jesus de que a profecia atingiu o hoje do seu cumprimento, o que
desiludiu os conterrâneos, como se verá.
Lucas, com o objetivo de recordar aos crentes das comunidades
de língua grega as suas raízes e a sua referência a Jesus, apresenta o programa
que Jesus quer realizar no meio dos homens como desígnio de libertação de todo os
oprimidos, seja qual for o tipo de opressão.
O ponto de partida é um texto do profeta anónimo que, em
Jerusalém, consola os exilados, como um ungido de Deus, que possui o Espírito
de Deus e cuja missão é bradar a boa nova de que a libertação chegou ao coração
e à vida de todos os cativos do sofrimento, opressão, injustiça, medo e
desânimo. Mais: Jesus faz a atualização da profecia e proclama que ela está a
cumprir-se na ação de Jesus: “cumpriu-se
hoje mesmo esta passagem da Escritura que acabais de ouvir” (“hóti
sêmeron peplêrôtai hê graphê haútê en toîs ôsìn hymôn”: Lc 4,21). Na sequência, Lucas descreve a atividade
de Jesus na Galileia com o anúncio, em palavras e gestos, da boa nova dirigida
preferencialmente aos pobres e marginalizados (leprosos, doentes, publicanos, mulheres, crianças…), garantindo que chegou o fim das
escravidões e o tempo novo da vida e da liberdade. Por outro lado, anuncia o
caminho futuro da Igreja e as condições da fidelidade a Cristo. A comunidade crente
toma consciência, por este texto, de que a sua missão é a de Cristo e consiste
em levar a boa nova aos mais pobres, débeis e marginalizados do mundo. Ungida
pelo Espírito para esta missão, a Igreja segue Jesus.
Contudo, apesar de terem todos os olhos fixos em Jesus, não
acolheram a Palavra que escutaram. A seu ver, o Nazareno não podia ser o
Messias, pois era filho do carpinteiro e truncou o texto bíblico que,
juntamente com a proclamação de “um ano da Graça do Senhor”, proclamava “o dia da
vingança da parte do nosso Deus”. Nisto, o messianismo assumido por Jesus, faz
a necessária rutura como o messianismo anunciado pelos profetas. Com efeito,
estando a Palavra de Deus no centro da vida – e essa Palavra é Jesus, apesar de
não ser aceite na sua terra –, cai por terra a vingança de Deus e reina na sua
inteireza o eterno ano da Graça, Misericórdia e perdão.
***
Também neste III Domingo da Palavra de Deus, o Papa
comentou, na homilia da Missa a que presidiu na Basílica de São Pedro, os
susoditos trechos de Neemias e de Lucas, onde vê dois gestos paralelos: Esdras
põe em lugar elevado o livro da Lei, abre-o e proclama-o a todo o povo; Jesus, na
sinagoga, abre o rolo da Escritura e, diante de todos, lê uma passagem de
Isaías. Estas cenas mostram que, no centro da vida do povo de Deus e do caminho
da fé, não estamos nós com as nossas palavras, mas Deus está connosco pela sua
Palavra (insisto: de
graça, não de vingança).
De facto, em
Cristo, sua Palavra eterna, o Pai “escolheu-nos antes da fundação do mundo” (Ef 1, 4). Pela Palavra, criou o universo: “Ele ordenou e tudo foi criado” (Sl 33,9). Desde os tempos antigos, falou-nos pelos profetas (cf Heb 1,1); e, na plenitude do tempo (cf Gl 4,4), enviou-nos a sua própria Palavra, o Filho unigénito. Por isso, Jesus
anuncia: “Cumpriu-se hoje esta passagem
da Escritura”. A Palavra de Deus – diz o Papa – já não é promessa, mas
realizou-se em Jesus, fez-Se carne e, por obra do Espírito Santo, vem habitar
em nós, para satisfazer os nossos anseios e curar as nossas feridas. Assim, Francisco
exorta a que tenhamos os olhos fixos em Jesus, como as pessoas na sinagoga, mas
que acolhamos a Palavra, meditando dois seus aspetos que estão
interligados: “a Palavra desvenda Deus e a Palavra
leva-nos ao homem”.
A Palavra
desvenda Deus. Jesus, ao comentar aquela passagem do profeta Isaías,
anuncia uma opção: libertar os pobres e os oprimidos. É este o rosto de Deus
libertador a cuidar da nossa pobreza e a zelar o nosso destino. Não é patrão nem
observador frio (muito
menos juiz vingativo), mas
o Deus-connosco que Se apaixona pela nossa vida a ponto de chorar as nossas
lágrimas: é o Deus presente, o Deus da proximidade, comprometido com a nossa
dor. Quer aliviar-nos dos pesos que nos esmagam e sustentar os nossos passos
incertos. E fá-lo pela Palavra, com que reacende a esperança por entre as
cinzas dos nossos medos para O encontrarmos dia a dia cada vez mais.
Depois, a
Palavra leva-nos ao homem. Com efeito, levando-nos a Deus, leva-nos ao
homem. De facto, descobrindo que Deus é amor compassivo, “vencemos a tentação
de nos fecharmos numa sacra religiosidade, que se reduz a um culto exterior”,
que não transforma a vida. Ora, a Palavra, livrando-nos de tal religiosidade
idolátrica, “impele-nos a sair de nós mesmos”, para irmos ao encontro dos irmãos,
animados unicamente pela serena força do amor libertador de Deus.
Diz o
Pontífice que é isto que nos revela Jesus em Nazaré: Ele é enviado para ir ao
encontro dos pobres e libertá-los; não veio para outorgar um elenco de normas
nem oficiar numa cerimónia religiosa, mas desceu às vielas do mundo ao encontro
da humanidade ferida, para “acariciar os rostos macerados pelo sofrimento,
curar os corações dilacerados, libertar-nos das correntes que nos agrilhoam a
alma”, revelando-nos que o mais agradável a Deus é o cuidado do próximo.
E Francisco
chama a atenção para as tentações da rigidez que sobrevêm na Igreja, que são
uma perversão. Ao invés da rigidez, a Palavra de Deus transforma-nos penetrando
na alma como uma espada (cf Heb 4,12) e, se consola, desvendando-nos o
rosto de Deus, também nos sobressalta, devido às nossas contradições, e põe em
crise as nossas justificações que fazem depender o que nos corre mal, duma
coisa diferente e dos outros. Por outro lado, o Papa escalpeliza o mal que se
faz invocando indevidamente a Palavra de Deus, como por exemplo, além das
guerras, as mortes que sucedem no mar porque as autoridades não deixam
desembarcar as pessoas. Por isso, é preciso interiorizar que a Palavra de Deus nos
convida a sair às claras, não nos escondendo atrás da complexidade dos
problemas, da incapacidade de fazer o que se deve ou do lamaçal da indiferença,
e nos impele a agir unindo o culto a Deus e o cuidado do homem. Com efeito, a Escritura,
segundo o Santo Padre, não é “para nos entreter, para nos mimar numa
espiritualidade angélica, mas para sairmos ao encontro dos outros e
debruçar-nos sobre as suas feridas”.
O “Cumpriu-se hoje
esta passagem da Escritura” mostra que a Palavra, que Se fez carne, “quer
tornar-Se carne hoje, no tempo que vivemos, não num futuro ideal”, sendo “a acústica
exigida de nós para bem ressoar a Palavra do Senhor” o “hoje”, ou seja, “as
circunstâncias da nossa vida quotidiana e as necessidades do nosso próximo”,
pelo que a Igreja – e nós em Igreja – tem de ser dócil à Palavra, propensa a
ouvir os outros e empenhada em estender a mão para aliviar os irmãos do que os
oprime, para desfazer os nós dos medos, libertar os mais frágeis das prisões da
pobreza, do cansaço interior e da tristeza que apaga a vida.
Por fim, o
Pontífice referiu a instituição
de alguns irmãos e irmãs nos ministérios de Leitor e de Catequista que
ocorreu na celebração, porque chamados à importante tarefa de servir o
Evangelho de Jesus, anunciá-lo para que chegue a todos a sua consolação, alegria
e libertação, frisando que “esta é também a missão de cada um de nós: ser
arautos credíveis, profetas da Palavra no mundo”. Por conseguinte, exorta a que
nos apaixonemos pela Sagrada Escritura, nos deixemos interpelar profundamente
pela Palavra, que desvenda a novidade de Deus e nos leva a amar incansavelmente
os outros, para o que urge voltar a pôr a Palavra de Deus no centro da pastoral
e da vida da Igreja, para a rezarmos e a praticarmos de olhos postos em Deus e
com a mira no cuidado dos irmãos.
***
Se a Palavra
está no centro da vida, das preocupações e da ação do crente e da Igreja, não
tardamos a proclamar o perene “ano da Graça do Senhor” (“kêrýxai
eniautòn Kyríou dektón”), cuja Justiça não descansa enquanto não realizar a plena comunhão dos
homens com Deus e entre si.
2022.01.23 – Louro de Carvalho
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