segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Centrar a Palavra de Deus para proclamar o ano da Graça do Senhor

 

Um episódio do livro de Neemias (Ne 8,2-4a.5-6.8-10), em tempo de miséria e desolação, com Jerusalém sem muralhas e sem portas, aquando do regresso dos judeus exilados na Babilónia, mostra-nos este reconstrutor de Sião e do seu culto a reunir todo o Povo a fim de este escutar a leitura da Lei. Era preciso lembrar o compromisso fundamental que Israel assumira com Deus, pois só assim seria viável preparar o futuro novo que Neemias sonhava para o Povo de Deus.

E o texto releva a preponderância da Palavra de Deus na vida da comunidade.

Vinca-se a convocação para escutar a Palavra de toda a comunidade – homens, mulheres e crianças em idade de compreender –, pois a todos a Palavra se dirige e interpela. A relevar o lugar da Palavra na vida, sobressai o estrado de madeira feito adrede que põe o leitor em plano superior; e o Livro da Lei é aberto de forma solene e todos se levantam em atitude de respeito e veneração. É o exemplo da comunidade onde a Palavra de Deus está no centro e tudo se conjuga em função do lugar especial que ela ocupa na vida das pessoas e da comunidade. Depois, vem a descrição do rito: a assembleia aclama a Palavra; os levitas leem clara e distintamente a Palavra e explicam-na ao povo, de modo acessível, “de maneira que se pudesse compreender a leitura”; e, a seguir, o Povo responde: confrontadas com a Palavra, as pessoas choram.

A atitude do Povo revela a comunidade que se deixa questionar pela Palavra confrontando a vida com a Palavra proclamada, sentindo a urgência da conversão e tomando consciência de que a Palavra é eficaz e provoca a transformação da vida. E tudo termina em grande festa, pois o dia consagrado ao Senhor é dia de alegria para a comunidade que se alimentou da Palavra.

Enfim, este passo de Neemias constitui um genuíno manual de bela “celebração da Palavra”.

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Por seu turno, Paulo (1Cor 12,12-30), preocupado porque, na Igreja de Corinto, os carismas, geridos em benefício próprio, geravam divisão e desprezo pelos que supostamente não possuíam dons especiais, para clarificar a mensagem, utiliza a fábula do corpo e dos seus membros. O corpo formado pela comunidade cristã é constituído por uma pluralidade diversificada de membros, cada um com a sua tarefa. Não releva só a variedade dos membros, mas também que sejam distintos, pois é a riqueza da diversidade que garante a sobrevivência do conjunto. Mais: os membros precisam uns dos outros e preocupam-se uns com os outros. Por isso, têm como apanágio a solidariedade entre si, que leva à unidade, com a qual devem aliar-se o pluralismo carismático e a preocupação pelo bem comum. E a originalidade paulina está em identificar este corpo comunitário com Cristo: “porém, vós sois corpo de Cristo e seus membros(“hymeîs dé este sôma Khristoû kaì mélê ek mérous”: 1Cor 12,27). E nesta identificação com Cristo reside a parte mais interpelante da parábola. Neste corpo tem de manifestar-se o Cristo total, que não pode estar dividido, nem dar ao mundo um testemunho de egoísmo e de desprezo pelos pobres e débeis.

O corpo de Cristo é a comunidade de irmãos que de Cristo recebem a vida e a partilham, formando a pluralidade de membros, com diversas funções e cujo estilo tem as marcas da solidariedade, participação e corresponsabilidade. Não obstante, há hierarquia de crismas, no topo da qual figuram os atinentes à Palavra, à Boa Nova: apóstolos, profetas, doutores. Com efeito, o corpo de Cristo é a comunidade que nasce da Palavra criadora e vivificadora que Deus dirige a cada pessoa e à comunidade, para seu alimento substancioso.

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Também Lucas (Lc 1,1-4;4,14-21) nos apresenta, neste III Domingo da Palavra de Deus e III domingo do Tempo Comum no Ano C, dois trechos diferentes.

O primeiro (Lc 1,1-4) é um prólogo com recado aos crentes de língua grega, a quem Lucas dirige o Evangelho para verificarem “a solidez da doutrina em que foram instruídos”. Com efeito, desaparecidas as testemunhas oculares de Cristo, surgem as heresias e desvios doutrinais que põem em risco a identidade cristã. Urge, pois, recordar aos crentes as suas raízes e a solidez da doutrina recebida de Jesus pelo testemunho da tradição apostólica. Por isso, o evangelista sublinha “os factos que se realizaram entre nós, como no-los transmitiram os que, desde o início, foram testemunhas oculares e ministros da palavra” e diz escrever, depois de tudo haver investigado, para que Teófilo (para lá duma eventual personalidade, importa ter em conta a qualidade de “theóphilos”, amigo de Deus) tenha “conhecimento seguro” do que lhe “foi ensinado”.

O segundo trecho (Lc 4,14-21) apresenta o início da pregação de Jesus, que Lucas situa em Nazaré em cenário de culto sinagogal, ao sábado, constituído por orações e leituras da Lei e dos Profetas, com o respetivo comentário, sendo os leitores/comentadores membros instruídos da comunidade ou visitantes conhecidos pelo seu saber na explicação da Palavra.

Também em Lucas, como em Neemias e em Paulo, a Palavra é central e está no topo da hierarquia do culto, dos carismas e das preocupações transcendentais da comunidade que interpelam a vida.

Jesus, apresentando-Se como o Messias, usa palavras do profeta Isaías. Assim, o centro do relato lucano, que parece a proclamação dum trecho do Tritoisaías (cf Is 61,1-2) que descreve como o Messias concretizará a sua missão, desloca-se para a asserção clara e convicta de Jesus de que a profecia atingiu o hoje do seu cumprimento, o que desiludiu os conterrâneos, como se verá.

Lucas, com o objetivo de recordar aos crentes das comunidades de língua grega as suas raízes e a sua referência a Jesus, apresenta o programa que Jesus quer realizar no meio dos homens como desígnio de libertação de todo os oprimidos, seja qual for o tipo de opressão.

O ponto de partida é um texto do profeta anónimo que, em Jerusalém, consola os exilados, como um ungido de Deus, que possui o Espírito de Deus e cuja missão é bradar a boa nova de que a libertação chegou ao coração e à vida de todos os cativos do sofrimento, opressão, injustiça, medo e desânimo. Mais: Jesus faz a atualização da profecia e proclama que ela está a cumprir-se na ação de Jesus: “cumpriu-se hoje mesmo esta passagem da Escritura que acabais de ouvir(“hóti sêmeron peplêrôtai hê graphê haútê en toîs ôsìn hymôn”: Lc 4,21). Na sequência, Lucas descreve a atividade de Jesus na Galileia com o anúncio, em palavras e gestos, da boa nova dirigida preferencialmente aos pobres e marginalizados (leprosos, doentes, publicanos, mulheres, crianças…), garantindo que chegou o fim das escravidões e o tempo novo da vida e da liberdade. Por outro lado, anuncia o caminho futuro da Igreja e as condições da fidelidade a Cristo. A comunidade crente toma consciência, por este texto, de que a sua missão é a de Cristo e consiste em levar a boa nova aos mais pobres, débeis e marginalizados do mundo. Ungida pelo Espírito para esta missão, a Igreja segue Jesus.

Contudo, apesar de terem todos os olhos fixos em Jesus, não acolheram a Palavra que escutaram. A seu ver, o Nazareno não podia ser o Messias, pois era filho do carpinteiro e truncou o texto bíblico que, juntamente com a proclamação de “um ano da Graça do Senhor”, proclamava “o dia da vingança da parte do nosso Deus”. Nisto, o messianismo assumido por Jesus, faz a necessária rutura como o messianismo anunciado pelos profetas. Com efeito, estando a Palavra de Deus no centro da vida – e essa Palavra é Jesus, apesar de não ser aceite na sua terra –, cai por terra a vingança de Deus e reina na sua inteireza o eterno ano da Graça, Misericórdia e perdão.

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Também neste III Domingo da Palavra de Deus, o Papa comentou, na homilia da Missa a que presidiu na Basílica de São Pedro, os susoditos trechos de Neemias e de Lucas, onde vê dois gestos paralelos: Esdras põe em lugar elevado o livro da Lei, abre-o e proclama-o a todo o povo; Jesus, na sinagoga, abre o rolo da Escritura e, diante de todos, lê uma passagem de Isaías. Estas cenas mostram que, no centro da vida do povo de Deus e do caminho da fé, não estamos nós com as nossas palavras, mas Deus está connosco pela sua Palavra (insisto: de graça, não de vingança).

De facto, em Cristo, sua Palavra eterna, o Pai “escolheu-nos antes da fundação do mundo” (Ef 1, 4). Pela Palavra, criou o universo: “Ele ordenou e tudo foi criado” (Sl 33,9). Desde os tempos antigos, falou-nos pelos profetas (cf Heb 1,1); e, na plenitude do tempo (cf Gl 4,4), enviou-nos a sua própria Palavra, o Filho unigénito. Por isso, Jesus anuncia: “Cumpriu-se hoje esta passagem da Escritura”. A Palavra de Deus – diz o Papa – já não é promessa, mas realizou-se em Jesus, fez-Se carne e, por obra do Espírito Santo, vem habitar em nós, para satisfazer os nossos anseios e curar as nossas feridas. Assim, Francisco exorta a que tenhamos os olhos fixos em Jesus, como as pessoas na sinagoga, mas que acolhamos a Palavra, meditando dois seus aspetos que estão interligados: “a Palavra desvenda Deus e a Palavra leva-nos ao homem.

A Palavra desvenda Deus. Jesus, ao comentar aquela passagem do profeta Isaías, anuncia uma opção: libertar os pobres e os oprimidos. É este o rosto de Deus libertador a cuidar da nossa pobreza e a zelar o nosso destino. Não é patrão nem observador frio (muito menos juiz vingativo), mas o Deus-connosco que Se apaixona pela nossa vida a ponto de chorar as nossas lágrimas: é o Deus presente, o Deus da proximidade, comprometido com a nossa dor. Quer aliviar-nos dos pesos que nos esmagam e sustentar os nossos passos incertos. E fá-lo pela Palavra, com que reacende a esperança por entre as cinzas dos nossos medos para O encontrarmos dia a dia cada vez mais.

Depois, a Palavra leva-nos ao homem. Com efeito, levando-nos a Deus, leva-nos ao homem. De facto, descobrindo que Deus é amor compassivo, “vencemos a tentação de nos fecharmos numa sacra religiosidade, que se reduz a um culto exterior”, que não transforma a vida. Ora, a Palavra, livrando-nos de tal religiosidade idolátrica, “impele-nos a sair de nós mesmos”, para irmos ao encontro dos irmãos, animados unicamente pela serena força do amor libertador de Deus.

Diz o Pontífice que é isto que nos revela Jesus em Nazaré: Ele é enviado para ir ao encontro dos pobres e libertá-los; não veio para outorgar um elenco de normas nem oficiar numa cerimónia religiosa, mas desceu às vielas do mundo ao encontro da humanidade ferida, para “acariciar os rostos macerados pelo sofrimento, curar os corações dilacerados, libertar-nos das correntes que nos agrilhoam a alma”, revelando-nos que o mais agradável a Deus é o cuidado do próximo.

E Francisco chama a atenção para as tentações da rigidez que sobrevêm na Igreja, que são uma perversão. Ao invés da rigidez, a Palavra de Deus transforma-nos penetrando na alma como uma espada (cf Heb 4,12) e, se consola, desvendando-nos o rosto de Deus, também nos sobressalta, devido às nossas contradições, e põe em crise as nossas justificações que fazem depender o que nos corre mal, duma coisa diferente e dos outros. Por outro lado, o Papa escalpeliza o mal que se faz invocando indevidamente a Palavra de Deus, como por exemplo, além das guerras, as mortes que sucedem no mar porque as autoridades não deixam desembarcar as pessoas. Por isso, é preciso interiorizar que a Palavra de Deus nos convida a sair às claras, não nos escondendo atrás da complexidade dos problemas, da incapacidade de fazer o que se deve ou do lamaçal da indiferença, e nos impele a agir unindo o culto a Deus e o cuidado do homem. Com efeito, a Escritura, segundo o Santo Padre, não é “para nos entreter, para nos mimar numa espiritualidade angélica, mas para sairmos ao encontro dos outros e debruçar-nos sobre as suas feridas”.

O “Cumpriu-se hoje esta passagem da Escritura” mostra que a Palavra, que Se fez carne, “quer tornar-Se carne hoje, no tempo que vivemos, não num futuro ideal”, sendo “a acústica exigida de nós para bem ressoar a Palavra do Senhor” o “hoje”, ou seja, “as circunstâncias da nossa vida quotidiana e as necessidades do nosso próximo”, pelo que a Igreja – e nós em Igreja – tem de ser dócil à Palavra, propensa a ouvir os outros e empenhada em estender a mão para aliviar os irmãos do que os oprime, para desfazer os nós dos medos, libertar os mais frágeis das prisões da pobreza, do cansaço interior e da tristeza que apaga a vida.

Por fim, o Pontífice referiu a instituição de alguns irmãos e irmãs nos ministérios de Leitor e de Catequista que ocorreu na celebração, porque chamados à importante tarefa de servir o Evangelho de Jesus, anunciá-lo para que chegue a todos a sua consolação, alegria e libertação, frisando que “esta é também a missão de cada um de nós: ser arautos credíveis, profetas da Palavra no mundo”. Por conseguinte, exorta a que nos apaixonemos pela Sagrada Escritura, nos deixemos interpelar profundamente pela Palavra, que desvenda a novidade de Deus e nos leva a amar incansavelmente os outros, para o que urge voltar a pôr a Palavra de Deus no centro da pastoral e da vida da Igreja, para a rezarmos e a praticarmos de olhos postos em Deus e com a mira no cuidado dos irmãos.

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Se a Palavra está no centro da vida, das preocupações e da ação do crente e da Igreja, não tardamos a proclamar o perene “ano da Graça do Senhor” (“kêrýxai eniautòn Kyríou dektón”), cuja Justiça não descansa enquanto não realizar a plena comunhão dos homens com Deus e entre si.   

2022.01.23 – Louro de Carvalho

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