sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

A regionalização entrou no debate eleitoral pejada de equívocos

 

Surge no debate eleitoral por iniciativa do partido do Governo cessante e mantém-se de vez em quando timidamente como um dos parentes mais pobres dos temas eleitorais. Em boa verdade, ninguém diz a sério que regionalização quer ou se é preciso rever a lei-quadro que está em vigor e que mapa de regionalização se quer para o país. Sabe-se que, em geral, os partidos com assento parlamentar divergem sobre a data para um eventual referendo sobre a regionalização e sobre os mapas de regiões administrativas a instituir, embora concordem todos com a necessidade de uma maior descentralização.

Anunciam-se quase três anos de debate que esclareça tudo, no fim dos quais se procederá a um referendo, que os comunistas entendem que é possível fazer em finais de 2023. 

O tema foi objeto duma conferência intitulada “Regionalização: agora ou nunca”, organizada pelo “Diário de Notícias”, “Jornal de Notícias” e “TSF”, que decorreu no dia 12 de janeiro no Cinema São Jorge, em Lisboa e onde representantes dos partidos com assento parlamentar se pronunciaram sobre a regionalização, após o Primeiro-Ministro se ter mostrado favorável à organização dum referendo em 2024, vindo o Presidente da República dizer que será positiva para o país, que é um tema complexo e que é preciso que não se trate de um fogacho eleitoral, mas que o debate se faça depois das eleições.

O PSD diz apoiar um diálogo para “consensualizar essa ideia da regionalização”, com base num calendário “não muito demorado”, mas põe como condição necessária para a implantação das regiões administrativas que essa não envolva aumento de despesa pública. E o PS quer terminar a descentralização em curso nas áreas da educação, saúde e segurança social.

No âmbito da conferência, José Luís Carneiro, secretário-geral adjunto do PS, considerou que, desde a posse do Governo de Costa em 2015, se tem assistido ao “mais amplo movimento de descentralização que é conhecido desde 1976”. Ilustrou a sua asserção com o processo de descentralização de competências em curso e com a eleição dos presidentes e um vice-presidente das CCDR (Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regionais) pelos autarcas e frisou:

Sejamos capazes de consolidar esse caminho e, em 2024, realizar o referendo. É esse o compromisso que temos e assumimos em relação à regionalização: (…) regionalização, sim, com ponderação, com consolidação de opções.”.

Arlindo Cunha, membro da Direção do Conselho Estratégico Nacional do PSD e ex-ministro de Cavaco Silva e de Durão Barroso, vincou “haver finalmente, ao fim de tantos desencontros, algum consenso político essencial” sobre a regionalização, sustentando que esta deve “avançar em três patamares, com calendários que se intercetam”. Além da transferência de funções do Estado central para as autarquias locais em curso – e que acusou de “errática”, apelando a que se estabeleça um “calendário estabilizado”, com um “orçamento consistente e estável” –, o socialdemocrata defendeu também a necessidade dum “plano de medidas de desconcentração no atual quadro organizativo do Estado” e o estabelecimento do “plano de criação das regiões administrativas com autarquias regionais”. E sublinhou:

O PSD propõe que se avance desde já com um debate estruturado e calendarizado. (…) Deveremos consensualizar essa ideia da regionalização, fazer esse debate estruturado, com base nesse calendário – que não tem de ser muito demorado – e avançar para o referendo só depois de fazermos este debate e termos este consenso básico entre as principais forças políticas.”.

A coordenadora do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, observou que “nenhum processo de regionalização que não seja capaz de combater a desigualdade e o privilégio poderá trazer avanço e combater o atraso” de Portugal. E considerou que “o Bloco defende um processo participado, aberto e democrático com vista à regionalização”, pelo que aos acordos do bloco central para distribuição de lugares nas CCDR, propõe “a clareza da democracia através da eleição direta dos representantes do povo”. Porém, advertiu que a regionalização terá de suscitar a exigência que puxa pelo país: “a democracia aproxima o povo, o investimento nos serviços públicos, o combate à desigualdade”.

Pelo PCP, João Oliveira, líder da sua bancada parlamentar, defendeu que deve ser iniciada uma “consulta às assembleias municipais”, para que escolham entre dois mapas para as futuras regiões administrativas – ou 5 regiões cuja área é equivalente à das atuais CCDR, ou 8 regiões tal como foram submetidas a referendo em 1998 – sendo que, uma vez terminada essa consulta, “a Assembleia da República deve assumir a responsabilidade de criação da lei das regiões administrativas e a proposta de convocação de um referendo”. E perspetivou:

Desencadeando o processo já no início de 2022, e cumprindo todos esses passos, parece-nos que o calendário que propomos aponta a possibilidade de se concluir todo o processo com a criação em concreto das regiões administrativas no final de 2023, com a eleição dos respetivos órgãos”.

O ex-dirigente do CDS José Ribeiro e Castro vincou ser o partido a “favor da subsidiariedade e da descentralização”, mas opôs-se à regionalização nos moldes propostos, considerando que quem passa dos atuais 18 distritos para 5 regiões “não descentraliza coisa nenhuma”, apenas “litoraliza” e “centraliza, e em que medida!”.

Inês de Sousa Real, porta-voz do PAN, defendeu que o “processo de regionalização deve ser participado, trabalhado antecipadamente”, de forma que as regiões saiam beneficiadas, afirmando que o partido não acompanhará “soluções que se traduzem em mais despesas para o Estado caso o processo não venha a ser feito de forma adequada”.

O líder do Chega, André Ventura, assumiu-se “frontalmente contra qualquer forma de regionalização que não passe por um referendo” e “frontalmente a favor de todos os modelos de desconcentração de subsidiariedade ou mesmo de desconexão de competências que permitam descentralizar o território”, concordando com Ribeiro e Castro de que, com 5 regiões, não se vai “descentralizar o território”, mas antes “litoralizá-lo ainda mais”.

O presidente da Iniciativa Liberal, João Cotrim Figueiredo, sublinhou que “os liberais gostam da descentralização” e não da “concentração de poderes”, mas afirmou que só aceitará um referendo sobre a regionalização caso fique claro “que poderes e competências vão ter efetivamente as regiões”, como serão financiadas e qual o mapa a apresentar aos portugueses.

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É curioso ver como políticos que estavam contra a regionalização descobriram as suas virtualidades 45 anos depois de ela estar inscrita na Constituição e políticos que dizem acreditar nela e tiveram a possibilidade de a debater e implantar a empurraram com a barriga para a frente, pensando referendá-la no cinquentenário da revolução abrilina.

Não sei se é para acreditar em quem diz querer a regionalização desde que não se aumente a despesa pública. Ora, se criamos novas assembleias e novos executivos, é óbvio que se aumenta a despesa pública – os executivos têm de governar a tempo inteiro e para as assembleias têm de, pelo menos, de se desembolsar verbas em senhas de presença e deslocações, a menos que se esvazie totalmente o país das direções-gerais e institutos públicos ou se crie a regionalização com base no mecenato pondo as empresas a pagar a regionalização. No primeiro caso, deixamos de olhar o país como um todo; no segundo, o poder político regional não será independente do poder económico. Aliás, por um lado, é necessário purificar o poder central da captura de que tem sido objeto pelo poder económico e pelos interesses instalados e, por outro, fazer com que a médio prazo a economia do país e a política financeira e fiscal venha a compensar as despesas decorrentes da regionalização. A criação das CCDR e das direções regionais não transferiu pessoal dos organismos centrais para as sedes regionais. Além disso, muitas vezes, CCDR e direções regionais respondiam às solicitações locais dizendo que “este assunto transcende-nos” e não raro havia duplicação de competências e decisões contraditórias.

Portanto, na implantação das regiões, deve ficar bem claro quais as competências das freguesias, dos municípios, das regiões administrativas e do poder central (há competências de que este não pode abrir mão), bem como a forma de articular as necessárias interdependência e cooperação.

Não vale a pena, tendo a sério no horizonte a regionalização, continuar com a descentralização em curso. Com efeito, as competências transferidas do poder central ou a transferir têm-no sido para os municípios e para as CCDR, sendo estas organismos desconcentrados do poder central e não verdadeiros órgãos regionais. Ora, com a regionalização, as competências transferíveis que ainda estão no poder central passarão para os órgãos das regiões administrativas (assembleia regional e governo regional). E as que tiverem sido transferidas para os municípios ser-lhes-ão retiradas, na lógica do “quem dá e torna a tirar ao inferno vai parar” ou continuam nos municípios, a maior parte dos quais não tem escala?

Ademais, falar da eleição dos presidentes da CCDR e de um dos dois vice-presidentes de cada uma é brincar com os eleitores, ora porque a eleição resultou do jogo entre PS e PSD, ora porque foi feita a partir dos autarcas, não a partir do eleitorado da área geográfica da respetiva CCDR, ora porque não foi eleito diretamente nem existe um órgão colegial deliberativo.  

E que dizer dos conhecidos mapas de regionalização? Oito regiões em que o interior e o litoral ficam separados darão, na certa, regiões de primeira (mais ricas e com maior peso político) e regiões de segunda (mais pobres e quase sem voz). Esse mapa foi rejeitado e com razão: não resolve o problema do atraso do país, pois fomentaria o aumento das desigualdades, não corrigiria as assimetrias e retalharia demasiado o pequeno retângulo. Já o mapa das 5 regiões correspondentes às NUTs II do Continente, que não foi referendado, estaria estribado em longa experiência de gestão e poderia através, da cooperação das instituições e da permeabilidade de recursos, ajudar a corrigir as assimetrias regionais e minorar as desigualdades, bastando que se criassem conselhos consultivos sub-regionais e cuja audição fosse obrigatória por parte do governo regional.

Por fim, é de colocar a questão: Creem ou não creem na regionalização? Se creem, não parem; se não creem, não arranjem desculpas esfarrapadas. E não vale sugerir revisão pontual da Constituição a obrigatoriedade do referendo. Quem é que o mandou incluir sem necessidade? Pôr e tirar não é sério!

Na certa, a regionalização poderá fazer o país andar para a frente e robustecê-lo a nível político, económico, desde que os conselheiros do investimento não estigmatizem determinadas zonas como de não interesse para investir, a nível social e cultural e a nível da preservação do ambiente e valorização do território. Porém, a regionalização só por si não resolve tudo: precisa da humanização e da proximidade que não se pode exigir do poder central, inebriado pelo macrocefalismo da capital e da sua afeição atávica ao centralismo.

2022.01.13 – Louro de Carvalho

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