segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

É insensato atribuir uma derrota eleitoral ao falhanço do povo

 

É natural que os vencedores das eleições legislativas tenham ficado hipercontentes e os que sofreram o amargo sabor da derrota, quando acalentavam a esperança quase certa da vitória, ainda que por curta margem, tenham ficado desapontados. Porém, ouvir Isabel Meireles a desabafar, questionada sobre o que falhou, dizendo que “o que falhou foi o povo português”, pois “os portugueses preferiram acreditar na falácia, na mentira e na inverdade do doutor António Costa” cria a sensação do desapontamento e do desnorte, o que, se fosse tomado à letra, significaria falta de charme democrático e constituiria o avesso da recomendação de Rio a Costa para que soubesse perder com dignidade.

É óbvio que é o povo que exprime pelo voto quem quer ao leme do país e isso sempre foi respeitado com maior ou menor bonomia. E Rui Rio até a manifestou, obviamente declarando que não fora este um dia feliz para o seu partido e até confessou não ter ele próprio argumentação para se manter à frente do partido. Claro, já me parece não ter estado tão bem ao responder em alemão a uma pergunta de jornalista que insistia em chover no molhado, sendo aí quase igual ao jornalista. De facto, os jornalistas parecem ter gosto mórbido em bater no ceguinho, mas o político tem de ter estômago e olho eleitoral.  

Não sei explicar o que motivou o volte-face do eleitorado, se é que o houve. Com efeito, o PS tirou partido do chumbo parlamentar do OE 2022 e manteve claramente as suas propostas de continuidade, referindo na campanha o essencial das suas linhas de programação e práxis. E, apesar do desgaste do Governo e dos erros de Costa e dos demais governantes, o maior partido da oposição não se perfilou coerentemente como alternativa sustentável, embora tenha debitado para o eleitorado a ideia de uma certa credibilidade. Enquanto António Costa prometia a correção de alguns desvios, incluindo a gordura governativa, Rio perdia-se na questão da prisão perpétua, no equívoco sobre o SNS e nas questões de governabilidade a partir de 31 de janeiro. Depois, entrou pelo rumo ínvio das “graçolas” e introduziu o debate com base no protagonismo animal, ao que outros partidos responderam à letra, mas como gato sobre brasas.

Recordo-me de que em 1987, após a aprovação de uma moção de censura ao governo minoritário de Cavaco Silva, da iniciativa do PRD, que o PS secundou, o PS começou a sua campanha eleitoral com a paródia governativa de Cavaco, um boneco a discursar fazendo propostas. Percebeu que o eleitorado não estava a apreciar a ironia e arrepiou caminho, mas tarde. Não terá sido por isso, mas o certo é que o PSD obteve a 1.ª maioria absoluta dum só partido e Cavaco surgiu como o Dom Sebastião da época. Foi a partir daí que o distrito de Viseu passou a ser designado por Cavaquistão.    

A par de tudo isto, partidos emergentes cresceram e galvanizaram franjas consideráveis de eleitores à direita, cansados das divisões internas de PSD e CDS e ávidos de expressarem – muito com pouca autoridade moral – o que pensam sobre alegados corpos estranhos na democracia, como a subsidiodependência, o acolhimento de imigrantes, a situação de favor a determinados grupos, a corrupção e o desprestígio das forças de segurança. Enfim, tanta pregação de pureza de sangue numa população tão miscigenada!  

A comunicação social parecia estar – e muitas vezes estava – apostada no derrube do governo e na suposta alternativa. E as sondagens multiplicavam-se e aproximaram tanto os dois maiores partidos que o anterior suposto vencedor passou a putativo derrotado.

Todos dizem que as sondagens valem o que valem, que não ganham eleições… Todavia, sabem que elas condicionam o eleitorado tal como as arremetidas da comunicação social e as declarações dos comentadores políticos. E as últimas eleições autárquicas serviram de ponto de referência para o alerta da última semana de campanha sobre resultados eleitorais. Assim, o partido que se presumia agora ser perdedor “remobilizou” os militantes e teve uma postura nova perante o eleitorado dando a perceber o que estaria possivelmente oculto por trás da panóplia animal e no programa do partido mais diretamente adversário.  

Quanto ao eleitorado, percebendo que uma governação à direita dificilmente prescindiria da comparticipação de forças radicais, não quis entregar à direita a governação do país, que mais do que ir aumentando salários e pensões paulatinamente e melhorar as estruturas físicas e humanas dos serviços públicos e do território, promoveria a alegada criação de riqueza para distribuir depois, procederia à procrastinação de aumento de salários e pensões, embora com maior volume se tudo corresse bem, e reduziria drasticamente os impostos, etc. E, porque as forças políticas que durante 6 anos tinham, com o PS de Costa, impedido a direita de ascender à governação, estavam agora a oferecer-lhe o poder executivo, o eleitorado decidiu mobilizar-se para o ato eleitoral aproveitando todas as janelas de oportunidade que a Comissão Nacional de Eleições, a Procuradoria-Geral da República, a Direcção-Geral de Saúde e o Governo criaram para facilitar o voto dentro dos parâmetros previstos na lei eleitoral. E a abstenção baixou consideravelmente.

Cabe referir que o próprio Chefe de Estado, na sua mensagem na véspera das eleições, farpou o Parlamento por não ter reformado o sistema político e não ter feito lei eleitoral que facilitasse o voto noutras condições e disse expressamente que era necessário alterar a lei eleitoral e reponderar o dia da reflexão, concebido para outros tempos. Foi, a meu, ver uma intervenção abusiva a ancorada na suposta diferença destas eleições em relação a outras. Não lhe cabe influenciar o eleitorado nem o Parlamento. E, se quer dirigir apelos aos deputados, deverá fazê-lo não pelos meios de comunicação social, mas através de mensagens escritas ao Parlamento.    

Entretanto, às 19 horas, José Rodrigues dos Santos apresentava as projeções da UCP sobre a abstenção entre 49% e 54%; e, às 20 horas, apresentava as projeções da mesma UCP que davam a vitória ao PS, mas dificilmente com maioria absoluta. E o entusiasmo do apresentador fê-lo dizer que a Católica nunca errara nas suas projeções. É certo que não errou de todo, mas outras projeções foram mais certeiras, nomeadamente as que davam ao PS um intervalo de 110 a 118 deputados, com a probabilidade da maioria absoluta, e a margem de abstenção de 42% a 44%, em vez dos 95 a 112 deputado e a abstenção de 49% a 54% da UCP.

Por fim, um reparo às possíveis expectativas do Presidente da República. Se pensava alterar o sentido da governação para mais ao centro, como referia o “Expresso” do dia 28, enganou-se; e, se queria a entrega da governação à direita, não o conseguiu. E fica para a história da presidência como o primeiro Chefe de Estado que, após eleições por via da dissolução do Parlamento, o deixou uma configuração mais problemática e obteve a governação para as mesmas mãos que anteriormente. Porém, conseguiu o pressuposto da estabilidade política, a maioria absoluta, provavelmente a que menos desejava, deixando de ter o protagonismo que sempre almejou.

O tempo e o povo encarregam-se de moderar as nossas ambições.

2022.01.31 – Louro de Carvalho

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