sábado, 8 de janeiro de 2022

Autogestão monitorizada da pandemia

 

Surpreendente! Não percebo se é porque os especialistas, ante as incertezas científicas que pairam quanto à evolução da pandemia de covid-19, se é porque os decisores políticos não conseguem resistir à pressão dos agentes económicos e à vontade da população de não se reenclausurar, nos atiram agora com o espantalho da autogestão da pandemia a nosso cargo. Mais adiante vão especificando que é uma autogestão monitorizada…

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Na verdade, a pandemia deu azo a que algumas habilidades profissionais vissem reforçada a sua valorização pelas empresas e corporações, ficando mais em evidência a autogestão. Com efeito, na mudança para o trabalho remoto – ou mesmo híbrido –, todos se iam sentindo capazes de uma certa liderança, até quem não tinha pretensão de assumir tal faceta na vida profissional.

Não se trata de promoção empresarial ou corporativa, mas de o profissional se ter obrigado a assumir as rédeas da sua posição e do seu trabalho, isto é, de lidar com as suas demandas, entregas e até com os objetivos da empresa de forma responsável.

O trabalho mais descentralizado e o estímulo ao trabalho autónomo tornaram-se a via natural da produtividade do trabalho à distância para os trabalhadores e para a empresa, corporação ou serviço. E a autogestão entra como pré-requisito básico a todo profissional para as necessidades apresentadas nessa nova realidade.

Embora venha despontando nas empresas há algum tempo como uma habilidade valorizada, a autogestão nem sempre era posta em prática, basicamente por dois motivos: nem toda a organização dava margem a isso; e os trabalhadores não se sentiam à vontade com essa mudança de mentalidade operativa do dia para a noite. Porém, a situação pandémica catalisou o processo e virou a página para a evidência da autogestão e para o reconhecimento da sua necessidade em muitos ambientes.

Longe das equipas, líderes e gestores e num contexto novo em que vida profissional e pessoal se mesclam num mesmo espaço, coube aos profissionais, ainda que em suporte e orientação das corporações em que atuavam, a criação do seu próprio processo para garantir o seu desempenho e a produtividade da empresa, corporação ou serviço. O escalonamento de tempo, os assuntos de agenda e as prioridades compõe em grande parte a autogestão.

A autogestão faz do profissional o protagonista da sua carreira, pois ele assume-se efetivamente como o responsável por administrar as suas próprias ações, desenvolver um espírito de liderança e obter resultados. E essa perspetiva inclui a vida pessoal e familiar acabando por ser o ponto de partida para a autoconsciência. É a capacidade da pessoa para monitorar as suas emoções e pensamentos, significando que a autogestão está relacionada com a atitude particular de cada profissional estimulando a resiliência e a saúde emocional.

Desenvolver a autogestão implica: aprender a gerir o tempo e ter cuidado redobrado com a procrastinação; organizar as suas prioridades (há aplicativos facilitadores da gestão dos pedidos, respostas e demais assuntos em agenda por mês, semana, etc.); definir metas claras e possíveis; gerir os processos; elaborar planos de ação para tarefas e fazer o seu acompanhamento; praticar a capacidade de conviver com os outros; exercer a empatia; enfim, ser proativo, ou seja, não depender da delegação de atividades para trabalhar.

Este processo não é algo natural, nem simples. Precisa de ser ensinado e a sua adoção depende de contexto propício e de estímulo por parte da empresa, corporação ou serviço.

Assim, falar de autogestão em contexto de pandemia faz todo o sentido. Porém, hoje a questão é outra. Peritos e políticos voltaram a reunir-se no Infarmed para avaliar a evolução da situação pandémica. E, enquanto o Governo estuda a possibilidade de regime de exceção para que portugueses em isolamento possam votar, o Presidente da República (PR) aponta à “autogestão” por parte dos portugueses.

No balanço que fez da reunião, o PR começou por retirar algumas conclusões. E uma delas foi que os portugueses ouviram o apelo, se esforçaram e será benéfico que assumam a autogestão da pandemia, sugestão da especialista Raquel Duarte que o Governo tomará em conta. De facto, o elevado número de testes, 5 vezes mais que no ano passado, mostra que “a sociedade portuguesa está mais aberta em termos de funcionamento económico, social e escolar”.

Houve um “aumento significativo do número de casos que não têm correspondência no aumento de internamentos, UCI e mortes”. Face a tais resultados, o PR diz que “é impossível não agradecer aos portugueses que compreenderam uma a uma a mensagem dos poderes públicos” nestes 2 anos: “Sempre perceberam e atuaram em conformidade”.

Sobre a possibilidade de estarem muitos milhares de portugueses em isolamento no dia das eleições legislativas, o PR diz que os poderes públicos estão a tentar encontrar uma solução para reduzir o número de pessoas que possam estar em isolamento, nomeadamente a possibilidade de suspensão do isolamento para o exercício de voto, opção sobre a qual o Executivo pediu parecer ao Conselho Consultivo da PGR. Também a DGS está a estudar o período de isolamento e da sua definição depende também o número de cidadãos que poderão exercer o voto. Depois, admitiu que se está a ponderar “se é possível ou não, constitucionalmente, e em tempo útil haver retoque legislativo que também ajude a enfrentar esta situação”.

Após a reunião com os especialistas, em declarações aos jornalistas, Marcelo enfatizou que, apesar de Portugal ser, a par da Suécia, a sociedade mais aberta, isso não teve reflexo no aumento de hospitalizações e de internamentos em unidades de cuidados intensivos. Por isso, foi acolhida a sugestão de Raquel Duarte de que se parta para uma “autogestão sanitária, monitorizada e obedecendo a regras das autoridades de saúde”.

Também os partidos se fizeram ouvir na comunicação social.

Por exemplo, o socialdemocrata Ricardo Batista Leite afirmou que o PSD estará “sempre do lado da solução” e disponível para rever regras para permitir que “centenas de milhares” de pessoas em isolamento possam ir votar a 30 de janeiro. Segundo o deputado, há três hipóteses em cima da mesa. Uma é criação dum regime de exceção para garantir que as pessoas em isolamento possam ir votar. A proposta de criação deste regime foi enviada pelo Governo ao Conselho Consultivo da PGR, aguardando novidades. Se isso for para a frente, caberá às autarquias organizarem-se responder a esta situação, tendo de acautelar que os cidadãos em isolamento não se “misturam” com os cidadãos em geral nas mesas de voto. Outra opção, menos provável, passa por a DGS rever as normas de isolamento, nomeadamente para vacinados; e outra passa por Assembleia da República (AR) legislar nesse sentido – opção que está a ser excluída pelo Presidente da Assembleia da República, que entende que a AR não está em plenos poderes para o fazer por estar limitada à Comissão Permanente. De resto, o PSD apela ao pragmatismo e insta o Ministério da Saúde a apresentar um “plano de emergência para responder aos doentes não covid, que são a maior parte da população doente”.

O secretário-geral-adjunto do PS, José Luís Carneiro, alertou para o expectável “aumento expressivo” dos contágios por covid-19 até ao final da próxima semana, mas sem efeitos na capacidade de resposta dos hospitais, garantindo que o Governo está a fazer tudo para garantir o direito de voto aos portugueses e permitir a criação dum regime de “exceção” para que as pessoas em isolamento possam votar. Na verdade, a vacinação “tem permitido que consigamos chegar a este ponto em que estamos confrontados com uma variante muito mais transmissível, com menor número de óbitos e recurso a unidades hospitalares”, sustentou José Luís Carneiro, considerando que o país está a “58% do nível de alerta” dos cuidados intensivos e lembrando que as medidas de contenção de Natal e Ano Novo e o aumento da testagem foram “eficazes”, ao limitar o número de contactos e detetar casos de infeção na última semana, pelo que apelou à responsabilidade dos portugueses. Mais disse que o Governo, ao ter pedido à DGS que avalie e reveja os termos do isolamento e do confinamento profilático e ao ter enviado à PGR a proposta de criação desse regime de exceção, tem como objetivo “compatibilizar o exercício do direito constitucional de votar” e a “salvaguarda da saúde pública”.  

Rui Rocha, membro da comissão executiva da IL, defendeu que o país está a entrar numa nova fase da pandemia, que exige novas respostas, a começar por “menos medidas de contenção” e mais apelos à “autorresponsabilização”. Há muitas infeções, mas “os internamentos e os internamentos em unidades de Cuidados Intensivos mantêm-se estáveis”. A variante Omicron é “prevalecente”, mas a severidade da doença é “muito mais baixa” que a da Delta, pelo que Rocha concorda com o PR e o Secretário de Estado Adjunto e da Saúde que apontaram para a entrada em fase endémica. Porém, a IL adverte que é essencial divulgar mais informação sobre o perfil dos doentes internados, responder à pressão dos serviços da 1.ª linha, como a Saúde 24 e as Urgências, e rever as regras de isolamento, bem como evitar que as escolas voltem a fechar, face ao esperado aumento do número de pessoas em isolamento nas próximas semanas.

Mariana Silva, do PEV, concorda com a sugestão dos especialistas de abertura de escolas, sendo “necessário abrir as escolas rapidamente” e reforçar os transportes públicos. E o seu partido mostrou-se disponível para encontrar uma solução para os portugueses votarem em segurança.

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Entretanto, Joana Petiz, em artigo no DN, fala de “desconfinamento eleitoral”. De facto, o mote do Governo e dos partidos é a aposta na campanha eleitoral, com os médicos a afinar pelo lamiré da endemia e a reconhecer que o pico de casos covid exige atenção, mas não cuidados extremos, já que a vacinação superior a 90% protege a população de casos graves e de rutura nos serviços de saúde, o que devia ser prioritário na tomada de decisões. Não obstante, o Governo preconiza semirreabertura com cautelas reforçadas para alguns. Os pais, que em 2020 exigiam o fecho de escolas, agora não perdoariam novo prolongamento das férias escolares, pois a estada em casa de crianças e adolescentes com atraso na aprendizagem condiciona a vida de muitos pais. Contudo, até dia 14, mantém-se obrigatório o teletrabalho o fecho de bares e discotecas e bares, a partir de cuja reabertura será obrigatório o teste negativo exceto para os frequentadores de estabelecimentos noturnos que têm a o reforço da vacina de há 14 dias. E os alunos voltam à escola, mas os pais podem continuar a trabalhar a partir de casa; ir a restaurantes e esplanadas, passear na praia ou passar os fins de semana fora, bastando o certificado de vacinação.

Depois, vem a campanha eleitoral para convencer o povo a exercer o direito e a cumprir o dever de votar. E, para se garantir o cumprimento de tal dever, pondera-se a interrupção do isolamento obrigatório no dia das eleições, mesmo para quem tem covid. Cria-se a ideia da legitimidade da disseminação do vírus, não para o aumento da riqueza, nem para a sobrevivência de áreas de atividade, nem pela sanidade mental da população, mas pelo voto. Isto, quando, em caso de plena saúde, nem metade vai às urnas para eleger o PR (abstenção de 60,8%% nas últimas presidenciais), as autarquias (46,4%), os representantes na Europa (69,3%) ou o parlamento nacional (51,4%).

Até é desejável que entendamos a importância da escolha, nos reaproximemos da política e aumentemos em muito os níveis de participação e de exigência para com as instituições que nos representam. Porém, não se compreende nem aceita que o país com décadas de anémico crescimento continue ver restringida a atividade e impedido o trabalho, arriscando-se a mais atraso, pobreza e dependência.

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É certo que estamos num tempo de forte incerteza, mas não se admite que as decisões sanitárias que enformam as decisões políticas levem ao funcionamento da informação ao estilo do acordeão cujo fole ora diminui ora aumenta, conforme a expressividade que o acordeonista queira dar à música. As medidas a tomar em qualquer momento devem ser devidamente doseadas e os números da pandemia todos postos na pantalha pública, sem falhas nem excessos, na certeza do aumento dos casos com o volume da testagem, sem drama, e na conveniência de isolar o número de mortos por covid dos que morrem por outras comorbidades.

Quanto a eleições, não percebo porque só agora alguns constitucionalistas vêm à ribalta pôr em causa o direito de voto dos obrigatoriamente confinados. Já houve mais dois atos eleitorais em tempo de pandemia e, embora se discuta a importância de cada uma, para todas se releva o dever e o direito do voto. Se o confinado não pode ir à mesa de voto, têm os agentes eleitorais de ir à beira do confinado com as cautelas de preservação do contágio e do sigilo do voto. É simples, não?!

O Governo pediu parecer ao Conselho Consultivo da PGR sobre a matéria, que será dado a tempo e em conformidade. Mas esta não é via de dirimição dum conflito da constitucionalidade. Ademais, é a AR que tem a reserva de competência legislativa em matéria de restrição de liberdades, direitos e garantias. Está dissolvida, mas em caso de urgência pode ser convocada para assumir temporariamente funções, quando mais não seja para autorizar o Governo a legislar sobre matéria de reconhecida urgência.

Assim, em meu entender, fica mal aos especialistas e aos decisores políticos chutarem para canto a responsabilização em tempos de pandemia confiando-a à autogestão dos portugueses, ainda que monitorizada. Foi o que, afinal, sucedeu nas festas do Sporting e em muitos outros ajuntamentos tão criticados à época. Que pena terá Eduardo Cabrita por não ser Ministro da Administração Interna agora em tempos de autogestão da pandemia monitorizada, com base na cultura dos portugueses! Não gozem com a nossa cidadania paciente. Tenham a coragem de decidir e expor a orientações claras e suscitar ações o menos mórbidas possível. O país merece e precisa!

2022.01.07 – Louro de Carvalho

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