Surpreendente! Não percebo se é porque os
especialistas, ante as incertezas científicas que pairam quanto à evolução da
pandemia de covid-19, se é porque os decisores políticos não conseguem resistir
à pressão dos agentes económicos e à vontade da população de não se
reenclausurar, nos atiram agora com o espantalho da autogestão da pandemia a
nosso cargo. Mais adiante vão especificando que é uma autogestão monitorizada…
***
Na verdade, a pandemia deu azo a que algumas habilidades profissionais vissem reforçada a
sua valorização pelas empresas e corporações, ficando mais em evidência a
autogestão. Com
efeito, na mudança para o trabalho remoto – ou mesmo híbrido –, todos se
iam sentindo capazes de uma certa liderança, até quem não tinha pretensão de
assumir tal faceta na vida profissional.
Não se trata
de promoção empresarial ou corporativa, mas de o profissional se ter obrigado a
assumir as rédeas da sua posição e do seu trabalho, isto é, de lidar com as suas
demandas, entregas e até com os objetivos da empresa de forma responsável.
O trabalho mais
descentralizado e o estímulo ao trabalho autónomo tornaram-se a via natural da
produtividade do trabalho à distância para os trabalhadores e para a empresa,
corporação ou serviço. E a autogestão entra como pré-requisito básico a todo
profissional para as necessidades apresentadas nessa nova realidade.
Embora venha
despontando nas empresas há algum tempo como uma habilidade valorizada, a autogestão nem
sempre era posta em prática, basicamente por dois motivos: nem toda a
organização dava margem a isso; e os trabalhadores não se sentiam à vontade com
essa mudança de mentalidade operativa do dia para a noite. Porém, a situação
pandémica catalisou o processo e virou a página para a evidência da autogestão
e para o reconhecimento da sua necessidade em muitos ambientes.
Longe das
equipas, líderes e gestores e num contexto novo em que vida profissional e
pessoal se mesclam num mesmo espaço, coube aos profissionais, ainda que em
suporte e orientação das corporações em que atuavam, a criação do seu próprio
processo para garantir o seu desempenho e a produtividade da empresa,
corporação ou serviço. O escalonamento de tempo, os assuntos de agenda e as prioridades
compõe em grande parte a autogestão.
A autogestão
faz do profissional o protagonista da sua carreira, pois ele assume-se
efetivamente como o responsável por administrar as suas próprias ações,
desenvolver um espírito de liderança e obter resultados. E essa perspetiva
inclui a vida pessoal e familiar acabando por ser o ponto de partida para a
autoconsciência. É a capacidade da pessoa para monitorar as suas emoções e
pensamentos, significando que a autogestão está relacionada com a atitude
particular de cada profissional estimulando a resiliência e a saúde emocional.
Desenvolver
a autogestão implica: aprender a gerir o tempo e ter cuidado redobrado com a
procrastinação; organizar as suas prioridades (há aplicativos facilitadores da
gestão dos pedidos, respostas e demais assuntos em agenda por mês, semana,
etc.); definir metas claras e possíveis;
gerir os processos; elaborar planos de ação para tarefas e fazer o seu
acompanhamento; praticar a capacidade de conviver com os outros; exercer a empatia;
enfim, ser proativo, ou seja, não depender da delegação de atividades para
trabalhar.
Este processo
não é algo natural, nem simples. Precisa de ser ensinado e a sua adoção depende
de contexto propício e de estímulo por parte da empresa, corporação ou serviço.
Assim, falar
de autogestão em contexto de pandemia faz todo o sentido. Porém, hoje a questão
é outra. Peritos e
políticos voltaram a reunir-se no Infarmed para avaliar a evolução da situação
pandémica. E, enquanto o Governo estuda a possibilidade de regime de exceção
para que portugueses em isolamento possam votar, o Presidente da República (PR) aponta à “autogestão” por parte
dos portugueses.
No balanço
que fez da reunião, o PR começou por retirar algumas conclusões. E uma delas
foi que os portugueses ouviram o apelo, se esforçaram e será benéfico que
assumam a autogestão da pandemia, sugestão da especialista Raquel Duarte que o
Governo tomará em conta. De facto, o elevado número de testes, 5 vezes mais que
no ano passado, mostra que “a sociedade portuguesa está mais aberta em termos
de funcionamento económico, social e escolar”.
Houve um
“aumento significativo do número de casos que não têm correspondência no
aumento de internamentos, UCI e mortes”. Face a tais resultados, o PR diz que
“é impossível não agradecer aos portugueses que compreenderam uma a uma a
mensagem dos poderes públicos” nestes 2 anos: “Sempre perceberam e atuaram em
conformidade”.
Sobre a
possibilidade de estarem muitos milhares de portugueses em isolamento no dia
das eleições legislativas, o PR
diz que os poderes públicos estão a tentar encontrar uma solução para reduzir o
número de pessoas que possam estar em isolamento, nomeadamente a possibilidade
de suspensão do isolamento para o exercício de voto, opção sobre a qual o
Executivo pediu parecer ao Conselho Consultivo da PGR. Também a DGS está
a estudar o período de isolamento e da sua definição depende também o número de
cidadãos que poderão exercer o voto. Depois, admitiu que se está a ponderar “se
é possível ou não, constitucionalmente, e em tempo útil haver retoque
legislativo que também ajude a enfrentar esta situação”.
Após a
reunião com os especialistas, em declarações aos jornalistas, Marcelo enfatizou
que, apesar de Portugal ser, a par da Suécia, a sociedade mais aberta, isso não
teve reflexo no aumento de hospitalizações e de internamentos em unidades de
cuidados intensivos. Por isso, foi acolhida a sugestão de Raquel Duarte de que
se parta para uma “autogestão sanitária, monitorizada e obedecendo a regras das
autoridades de saúde”.
Também os
partidos se fizeram ouvir na comunicação social.
Por exemplo, o socialdemocrata
Ricardo Batista Leite afirmou que o PSD estará “sempre do lado da solução” e
disponível para rever regras para permitir que “centenas de milhares” de
pessoas em isolamento possam ir votar a 30 de janeiro. Segundo o deputado, há três hipóteses em cima
da mesa. Uma é criação dum regime de exceção para garantir que as pessoas em
isolamento possam ir votar. A proposta de criação deste regime foi enviada pelo
Governo ao Conselho Consultivo da PGR, aguardando novidades. Se isso for
para a frente, caberá às autarquias organizarem-se responder a esta situação,
tendo de acautelar que os cidadãos em isolamento não se “misturam” com os
cidadãos em geral nas mesas de voto. Outra opção, menos provável, passa por a
DGS rever as normas de isolamento, nomeadamente para vacinados; e outra passa
por Assembleia da República (AR) legislar
nesse sentido – opção que está a ser excluída pelo Presidente da Assembleia da
República, que entende que a AR não está em plenos poderes para o fazer por
estar limitada à Comissão Permanente. De resto, o PSD apela ao pragmatismo e
insta o Ministério da Saúde a apresentar um “plano de emergência para responder
aos doentes não covid, que são a maior parte da população doente”.
O
secretário-geral-adjunto do PS, José Luís Carneiro, alertou para o expectável
“aumento expressivo” dos contágios por covid-19 até ao final da próxima semana,
mas sem efeitos na capacidade de resposta dos hospitais, garantindo que o
Governo está a fazer tudo para garantir o direito de voto aos portugueses e
permitir a criação dum regime de “exceção” para que as pessoas em isolamento
possam votar. Na verdade, a vacinação “tem
permitido que consigamos chegar a este ponto em que estamos confrontados com
uma variante muito mais transmissível, com menor número de óbitos e recurso a
unidades hospitalares”, sustentou José Luís Carneiro, considerando que o país está a “58% do nível de alerta”
dos cuidados intensivos e lembrando que as medidas de contenção de Natal e Ano
Novo e o aumento da testagem foram “eficazes”, ao limitar o número de contactos
e detetar casos de infeção na última semana, pelo que apelou à responsabilidade
dos portugueses. Mais disse que o Governo, ao ter pedido à DGS que avalie e
reveja os termos do isolamento e do confinamento profilático e ao ter enviado à
PGR a proposta de criação desse regime de exceção, tem como objetivo
“compatibilizar o exercício do direito constitucional de votar” e a
“salvaguarda da saúde pública”.
Rui Rocha,
membro da comissão executiva da IL, defendeu que o país está a entrar numa nova
fase da pandemia, que exige novas respostas, a começar por “menos medidas de
contenção” e mais apelos à “autorresponsabilização”. Há muitas infeções, mas “os internamentos e
os internamentos em unidades de Cuidados Intensivos mantêm-se estáveis”. A
variante Omicron é “prevalecente”, mas a severidade da doença é “muito mais
baixa” que a da Delta, pelo que Rocha concorda com o PR e o Secretário de
Estado Adjunto e da Saúde que apontaram para a entrada em fase endémica. Porém,
a IL adverte que é essencial divulgar mais informação sobre o perfil dos
doentes internados, responder à pressão dos serviços da 1.ª linha, como a Saúde
24 e as Urgências, e rever as regras de isolamento, bem como evitar que as
escolas voltem a fechar, face ao esperado aumento do número de pessoas em
isolamento nas próximas semanas.
Mariana
Silva, do PEV, concorda com a sugestão dos especialistas de abertura de
escolas, sendo “necessário abrir as
escolas rapidamente” e reforçar os transportes públicos. E o seu partido
mostrou-se disponível para encontrar uma solução para os portugueses votarem em
segurança.
***
Entretanto,
Joana Petiz, em artigo no DN, fala de
“desconfinamento eleitoral”. De facto, o mote do Governo e dos partidos é a
aposta na campanha eleitoral, com os médicos a afinar pelo lamiré da endemia e a
reconhecer que o pico de casos covid exige atenção, mas não cuidados
extremos, já que a vacinação superior a 90% protege a população de casos graves
e de rutura nos serviços de saúde, o que devia ser prioritário na tomada de
decisões. Não obstante, o Governo preconiza semirreabertura com cautelas reforçadas
para alguns. Os pais, que em 2020 exigiam o fecho de escolas, agora não
perdoariam novo prolongamento das férias escolares, pois a estada em casa de
crianças e adolescentes com atraso na aprendizagem condiciona a vida de muitos
pais. Contudo, até dia 14, mantém-se obrigatório o teletrabalho o fecho de
bares e discotecas e bares, a partir de cuja reabertura será obrigatório o
teste negativo exceto para os frequentadores de estabelecimentos noturnos que
têm a o reforço da vacina de há 14 dias. E os alunos voltam à escola, mas os pais
podem continuar a trabalhar a partir de casa; ir a restaurantes e esplanadas,
passear na praia ou passar os fins de semana fora, bastando o certificado de
vacinação.
Depois, vem a campanha eleitoral para convencer o povo a
exercer o direito e a cumprir o dever de votar. E, para se garantir o
cumprimento de tal dever, pondera-se a interrupção do isolamento obrigatório no
dia das eleições, mesmo para quem tem covid. Cria-se a ideia da legitimidade da
disseminação do vírus, não para o aumento da riqueza, nem para a sobrevivência
de áreas de atividade, nem pela sanidade mental da população, mas pelo voto. Isto,
quando, em caso de plena saúde, nem metade vai às urnas para eleger o PR (abstenção de 60,8%% nas últimas presidenciais), as
autarquias (46,4%), os
representantes na Europa (69,3%) ou o
parlamento nacional (51,4%).
Até é desejável que entendamos a importância da escolha,
nos reaproximemos da política e aumentemos em muito os níveis de participação e
de exigência para com as instituições que nos representam. Porém, não se
compreende nem aceita que o país com décadas de anémico crescimento continue
ver restringida a atividade e impedido o trabalho, arriscando-se a mais atraso,
pobreza e dependência.
***
É certo que
estamos num tempo de forte incerteza, mas não se admite que as decisões
sanitárias que enformam as decisões políticas levem ao funcionamento da informação
ao estilo do acordeão cujo fole ora diminui ora aumenta, conforme a
expressividade que o acordeonista queira dar à música. As medidas a tomar em
qualquer momento devem ser devidamente doseadas e os números da pandemia todos
postos na pantalha pública, sem falhas nem excessos, na certeza do aumento dos
casos com o volume da testagem, sem drama, e na conveniência de isolar o número
de mortos por covid dos que morrem por outras comorbidades.
Quanto a
eleições, não percebo porque só agora alguns constitucionalistas vêm à ribalta pôr
em causa o direito de voto dos obrigatoriamente confinados. Já houve mais dois atos
eleitorais em tempo de pandemia e, embora se discuta a importância de cada uma,
para todas se releva o dever e o direito do voto. Se o confinado não pode ir à
mesa de voto, têm os agentes eleitorais de ir à beira do confinado com as cautelas
de preservação do contágio e do sigilo do voto. É simples, não?!
O Governo
pediu parecer ao Conselho Consultivo da PGR sobre a matéria, que será dado a
tempo e em conformidade. Mas esta não é via de dirimição dum conflito da
constitucionalidade. Ademais, é a AR que tem a reserva de competência legislativa
em matéria de restrição de liberdades, direitos e garantias. Está dissolvida,
mas em caso de urgência pode ser convocada para assumir temporariamente funções,
quando mais não seja para autorizar o Governo a legislar sobre matéria de
reconhecida urgência.
Assim, em
meu entender, fica mal aos especialistas e aos decisores políticos chutarem
para canto a responsabilização em tempos de pandemia confiando-a à autogestão
dos portugueses, ainda que monitorizada. Foi o que, afinal, sucedeu nas festas
do Sporting e em muitos outros ajuntamentos tão criticados à época. Que pena
terá Eduardo Cabrita por não ser Ministro da Administração Interna agora em
tempos de autogestão da pandemia monitorizada, com base na cultura dos
portugueses! Não gozem com a nossa cidadania paciente. Tenham a coragem de
decidir e expor a orientações claras e suscitar ações o menos mórbidas possível.
O país merece e precisa!
2022.01.07 – Louro de Carvalho
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