A asserção é de Monsenhor Marcos Pavan, diretor
da Capela Musical Pontifícia, que defende, em entrevista à “Ecclesia” e
à “Rádio Renascença”, publicada no passado dia 24 de dezembro, véspera
do Natal, a importância da música na liturgia e na vida comunitária.
Começando por justificar a
entrada da música na sua vida, contou que, já na escola primária, em São Paulo,
Brasil, onde estudava desde os 7 anos de idade, integrava um grupo coral de crianças; depois, começou a tocar
piano e a aprender teoria musical; e, no ensino liceal, com os padres
beneditinos, conheceu o canto gregoriano, cujo encanto o motivou para o seu
estudo e que praticou integrado no ministério presbiteral.
Atribui à Providência a ida
para Roma. Foi estudar
Filosofia e Teologia no âmbito dos estudos seminarísticos após haver estudado
Direito no Brasil. Quando terminou os estudos, estando a especializar-se em
Direito Canónico e colaborando no departamento das celebrações litúrgicas do
Papa, mercê da muita experiência de canto, de canto gregoriano, em 1998, viram
em si um maestro capaz de colmatar a falta que se sentia no Coro da Capela
Sistina no atinente à preparação das crianças e pediram-lhe que ficasse pelo
menos para o Jubileu do Ano 2000. E, tendo-lhe pedido que continuasse, ficou
até 2020, quando o Papa Francisco, 23 anos depois, o nomeou maestro diretor do
coro.
Sobre a identidade própria da
música em geral e da especificidade música sacra e litúrgica, Marcos Pavan considera o Concílio Vaticano II como o farol para todos na atualização
da reforma litúrgica, observando que o canto próprio da Igreja de rito latino é
o gregoriano, vindo, logo a seguir, a polifonia sacra do século XVI, a que
temos, por exemplo, em Palestrina, Victoria... São modelos não são só para
imitar, mas para nos inspirarem em novas composições. No Vaticano, continua-se
com o gregoriano e a polifonia clássica. Mas estas duas formas têm o limite: são
em latim. Ora, nas celebrações, deve haver lugar privilegiado também para a
língua vernácula, podendo o gregoriano e a polifonia, pelas suas caraterísticas
espirituais e musicais, inspirar novas formas musicais para a atuação da
reforma litúrgica.
Ao invés da ideia, tantas
vezes subjacente, da justaposição da liturgia e da música e contrariando a ideia
de que o canto litúrgico só tem lugar se não impedir a liturgia, o maestro em
referência testemunha o entendimento conciliar da música na liturgia,
explicitando:
“A liturgia é
cantada. (…) Funda as raízes na liturgia da sinagoga. Penso que Nosso Senhor cantou
a oração de agradecimento, que depois vai desembocar na nossa oração
eucarística no prefácio. A nossa liturgia nasce como canto, porque todos os
povos antigos reconhecem o canto como uma forma privilegiada de, em primeiro
lugar, unificar a pessoa: emoção, sentimento, razão, corpo e espírito porque o
canto também envolve a participação cultural. O homem é uma unidade. Não é uma
dicotomia corpo e alma. E a liturgia católica nunca fez exceção.”.
A princípio, como diz Pavan, os
Padres da Igreja “tiveram medo de que com a música chegasse também alguma
influência pagã, mas cedo concluíram que “a música é parte integrante da
celebração”, pelo que “a primeira coisa é que se canta a liturgia”. Assim,
começando pelo celebrante, deviam cantar-se sobretudo as partes principais da
missa nas celebrações mais solenes; depois, deveria envolver-se no canto a
assembleia, o coro, os outros ministros, tendo cada um “o seu lugar e o seu
momento”. Enfim, a música deve envolver toda a comunidade, visto que “faz parte
da linguagem da liturgia, que é a linguagem do simbólico”, e ajuda na unidade,
na “unidade da pessoa humana, corpo e alma e na unidade com Deus, na liturgia”.
A música é, em certa medida, insubstituível, não porque não haja liturgia sem
música, – não se pode dizer que ela é da essência da liturgia no sentido de dizer
que se não há música não há liturgia, mas porque nada substitui a música, que dá
redobrado vigor ao culto e exprime o mistério e o sagrado de forma peculiar.
Em relação ao impacto da
pandemia nas celebrações comunitárias, observa que o impacto no Vaticano foi
enorme, tendo sido a Itália o
país que primeiro sofreu os problemas da pandemia na Europa. O coro que dirige é
composto de adultos e meninos, formando estes a secção de vozes brancas. Ora,
as escolas fecharam de um dia para o outro em março de 2020, pelo que “os
ensaios de canto não podiam ser feitos”. Como todas as demais, as celebrações
do Santo Padre foram suspensas; e, aquando da sua retoma na Basílica de São
Pedro, o coro vinha só com oito cantores adultos separados dois metros um do
outro (a distância
de segurança).
A propósito da retoma do
trabalho normal e das celebrações enquanto sinal de esperança para as
comunidades, Pavan sustenta que é muito difícil, aliás
impossível, “ser cristão
sozinho”. E frisando que os eremitas “têm uma vocação particular de viver essa
comunhão na solidão”, entende que até eles “estão em contacto com a Igreja”. E
quem não tem essa vocação sente falta da comunidade, pois “não é possível viver
sem comunidade cristã”. Mais, na verdade, como garante, “não existe coisa mais
triste que é uma comunidade que não canta”. E isto não sucede apenas em Igreja,
mas em qualquer ramo da vida em convivência em qualquer tempo e lugar. De facto,
um país tem o hino nacional, a escola os seus cantos e a Igreja a liturgia
cantada. Por isso, o maestro espera que as pessoas, tendo sentido essa falta (“é muito
triste ter de ficar isolado dos irmãos durante tanto tempo”), se deem conta, na volta, “de como é importante
participar, cantando, preparando bem a liturgia”.
Sobre o facto de Portugal
ter o prazer de ouvir na celebração vaticana do dia de Natal o Adeste
fideles, o Hino Português, atribuído ao rei D. João IV, obra
que marca uma memória e assinala o Natal, o diretor da Capela
Musical Pontifícia refere que “o Adeste fideles está no inconsciente de todos aqui
no Ocidente” como “sinónimo de Natal”. E aproveita para dizer que “temos de
evitar os extremos”. De facto, querer “mudar tudo e começar ex novo”
não é evolução, mas é corte radical. E ficaremos sem saber onde afundar as
raízes que temos. Ora, para a planta crescer verde e frondosa, “as raízes
também têm de ser sãs”. Assim, temos de tirar da plantação o que é daninho e prejudica
o crescimento da planta e as suas flores e frutos. Não se podem manter as
tradições só porque sim. E Pavan explica:
“Com equilíbrio
e muito bom senso, temos de manter o que temos de melhor na tradição,
apresentá-lo nos momentos certos. No momento certo da missa, no momento certo
do ano litúrgico. A partir daí, também apresentar coisas novas. Logicamente que,
quando a polifonia apareceu, era uma novidade. Não podemos ser fechados às
novidades. Agora: ela apareceu fazendo polifonia sobre o quê? Sobre os temas
gregorianos. É dessa continuidade que vem tanta qualidade. Começar do zero não
existe. É preciso conhecer a tradição, valorizar a tradição e a partir disso
partir para o novo.”.
À observação de que, no Vaticano,
não há violas e jambé, quiçá
por não interessarem à liturgia, frisa que, para o Concílio, o primeiro lugar é o do órgão de tubos. Porém,
sublinhando que “a liturgia tem de ser encarnada na comunidade”, aponta a
diocese brasileira donde provém, na periferia de São Paulo, com três milhões de
pessoas e sem nenhum órgão de tubos. “Algumas igrejas têm órgão eletrónico e todas
as outras usam violão e outras coisas”. Nem sempre a questão é de escolha, mas
de necessidade. Todavia, a Liturgia do Papa é outra coisa. Tem outros meios, outra
tradição e tem de ser exemplar. Mas isso não significa excluir nada. Um violão
bem tocado pode ser bonito e lembrar outros instrumentos. O rei David tocava
lira. “O órgão de tubos mal tocado também é insuportável” – acentua. Ora, se a
pessoa está preparada, sabe música, tem bom gosto, quer fazer música e a faz
com amor, bem feita, e se se prepara – porque não há de ser acolhida a sua cooperação?
Todavia, nunca a música deve ser “uma coisa improvisada na comunidade”.
Contra a ideia de a animação
na liturgia ficar para o fim, o diretor da Capela Musical Pontifícia assegura que “a preparação da liturgia entra no coração
da comunidade cristã”, garantindo o Vaticano II que “a Eucaristia é o cume, o
ápice e a fonte da vida cristã” e que, “nesse ápice e fonte estão a liturgia e
a música litúrgica”, de modo que esta não ocupe “um lugar secundário”, mas “um
lugar central”. Por conseguinte, continua o entrevistado, os bispos e os padres
“têm que se preocupar também com a formação musical dos seus fiéis”. Daí a
relevância das escolas diocesanas de música sacra.
Torna-se evidente, segundo o ilustre maestro, que “a preparação é essencial”,
pois, se não se põe a ler quem não sabe ler ou gagueja, também, por uma questão
de bom senso, não se põe a cantar quem não sabe cantar. Porém, numa comunidade
que tem muito boa vontade, mas não há quem faça melhor, a coisa fica resolvida
por enquanto. Não obstante, é possível melhorar e educar e a música “também é
uma forma de educar”. E fá-lo “não só do ponto de vista cristão, mas também
humano”, pelo esforço e disciplina. E conclui:
“Tanto assim é
que a música faz parte da educação desde a cultura e educação clássica, no
Trivium [forma de educação da Antiguidade Clássica com gregos e romanos] havia
música. A música educa o ser humano. [Daí que] também nas comunidades cristãs
deveria haver uma atenção à preparação dos agentes da música.”.
***
Em
suma, na liturgia, a música surge não como algo secundário e meramente
ornamental, mas como algo insubstituível, não no sentido de ser imprescindível
para que haja liturgia, mas no de que nada lhe será equivalente. Com efeito, a
música dá mais energia e ardor à ação litúrgica, eleva as almas, intensifica a oração
(Quem
canta reza duas vezes – dizia Santo Agostinho), sinaliza o mistério, exprime vida, cimenta o sentir
comunitário, manifesta estupefação e põe o corpo em consonância com a alma, dando
expressividade ao homem todo.
Tanto
assim é que os grandes músicos reagiam ao mistério da consagração do pão e do
vinho no Corpo e Sangue de Cristo pela música de órgão sem letra (mais
tarde o terno de cornetas ou clarins, com ou sem instrumentos de percussão) – o que a liturgia coeva
suprimiu para dar lugar ao silêncio, não sei se com vantagem, pelo menos nas celebrações
mais festivas. E o canto deve ser o simples cantochão ou gregoriano com raízes
na tradição judaica salmódica, com ou sem floreados, e a polifonia, bem como a agregação
dos cantares das diversas culturas regionais e locais.
Quanto
ao instrumental, aliás como nas partes cantáveis, devem ter-se em conta, onde é
possível, a primazia d órgão de tubos e os instrumentos disponibilizados pela
modernidade e pelas culturas regionais e locais.
Porém,
uma coisa é certa: o canto não é um apêndice ornamental a tolerar na liturgia,
nem algo a executar com a maior brevidade possível, mas algo a servir o
desenvolvimento da inspiração e expressão da fé e a manifestar o sentir da
comunidade com o Ressuscitado.
A
música é o resultado da poesia, por vezes indizível, que o Criador instila no
homem, no crente, pelo que tem um fundamento histórico, antropológico e
divinal. Eleva a pessoa que se exprime a solo ante Deus e é um solene testemunho
e um forte elo comunitário.
Por
isso, rezamos, cantamos, dançamos ao som do órgão, da flauta, do tímpano, do
atabale – em salmo, hino e cântico, com unção ou com júbilo.
2022.01.08 – Louro de Carvalho
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