sábado, 8 de janeiro de 2022

Não existe coisa mais triste que uma comunidade que não canta

 

A asserção é de Monsenhor Marcos Pavan, diretor da Capela Musical Pontifícia, que defende, em entrevista à “Ecclesia” e à “Rádio Renascença”, publicada no passado dia 24 de dezembro, véspera do Natal, a importância da música na liturgia e na vida comunitária.

Começando por justificar a entrada da música na sua vida, contou que, já na escola primária, em São Paulo, Brasil, onde estudava desde os 7 anos de idade, integrava um grupo coral de crianças; depois, começou a tocar piano e a aprender teoria musical; e, no ensino liceal, com os padres beneditinos, conheceu o canto gregoriano, cujo encanto o motivou para o seu estudo e que praticou integrado no ministério presbiteral.

Atribui à Providência a ida para Roma. Foi estudar Filosofia e Teologia no âmbito dos estudos seminarísticos após haver estudado Direito no Brasil. Quando terminou os estudos, estando a especializar-se em Direito Canónico e colaborando no departamento das celebrações litúrgicas do Papa, mercê da muita experiência de canto, de canto gregoriano, em 1998, viram em si um maestro capaz de colmatar a falta que se sentia no Coro da Capela Sistina no atinente à preparação das crianças e pediram-lhe que ficasse pelo menos para o Jubileu do Ano 2000. E, tendo-lhe pedido que continuasse, ficou até 2020, quando o Papa Francisco, 23 anos depois, o nomeou maestro diretor do coro.

Sobre a identidade própria da música em geral e da especificidade música sacra e litúrgica, Marcos Pavan considera o Concílio Vaticano II como o farol para todos na atualização da reforma litúrgica, observando que o canto próprio da Igreja de rito latino é o gregoriano, vindo, logo a seguir, a polifonia sacra do século XVI, a que temos, por exemplo, em Palestrina, Victoria... São modelos não são só para imitar, mas para nos inspirarem em novas composições. No Vaticano, continua-se com o gregoriano e a polifonia clássica. Mas estas duas formas têm o limite: são em latim. Ora, nas celebrações, deve haver lugar privilegiado também para a língua vernácula, podendo o gregoriano e a polifonia, pelas suas caraterísticas espirituais e musicais, inspirar novas formas musicais para a atuação da reforma litúrgica.

Ao invés da ideia, tantas vezes subjacente, da justaposição da liturgia e da música e contrariando a ideia de que o canto litúrgico só tem lugar se não impedir a liturgia, o maestro em referência testemunha o entendimento conciliar da música na liturgia, explicitando:  

A liturgia é cantada. (…) Funda as raízes na liturgia da sinagoga. Penso que Nosso Senhor cantou a oração de agradecimento, que depois vai desembocar na nossa oração eucarística no prefácio. A nossa liturgia nasce como canto, porque todos os povos antigos reconhecem o canto como uma forma privilegiada de, em primeiro lugar, unificar a pessoa: emoção, sentimento, razão, corpo e espírito porque o canto também envolve a participação cultural. O homem é uma unidade. Não é uma dicotomia corpo e alma. E a liturgia católica nunca fez exceção.”.

A princípio, como diz Pavan, os Padres da Igreja “tiveram medo de que com a música chegasse também alguma influência pagã, mas cedo concluíram que “a música é parte integrante da celebração”, pelo que “a primeira coisa é que se canta a liturgia”. Assim, começando pelo celebrante, deviam cantar-se sobretudo as partes principais da missa nas celebrações mais solenes; depois, deveria envolver-se no canto a assembleia, o coro, os outros ministros, tendo cada um “o seu lugar e o seu momento”. Enfim, a música deve envolver toda a comunidade, visto que “faz parte da linguagem da liturgia, que é a linguagem do simbólico”, e ajuda na unidade, na “unidade da pessoa humana, corpo e alma e na unidade com Deus, na liturgia”. A música é, em certa medida, insubstituível, não porque não haja liturgia sem música, – não se pode dizer que ela é da essência da liturgia no sentido de dizer que se não há música não há liturgia, mas porque nada substitui a música, que dá redobrado vigor ao culto e exprime o mistério e o sagrado de forma peculiar.

Em relação ao impacto da pandemia nas celebrações comunitárias, observa que o impacto no Vaticano foi enorme, tendo sido a Itália o país que primeiro sofreu os problemas da pandemia na Europa. O coro que dirige é composto de adultos e meninos, formando estes a secção de vozes brancas. Ora, as escolas fecharam de um dia para o outro em março de 2020, pelo que “os ensaios de canto não podiam ser feitos”. Como todas as demais, as celebrações do Santo Padre foram suspensas; e, aquando da sua retoma na Basílica de São Pedro, o coro vinha só com oito cantores adultos separados dois metros um do outro (a distância de segurança).

A propósito da retoma do trabalho normal e das celebrações enquanto sinal de esperança para as comunidades, Pavan sustenta que é muito difícil, aliás impossível, “ser cristão sozinho”. E frisando que os eremitas “têm uma vocação particular de viver essa comunhão na solidão”, entende que até eles “estão em contacto com a Igreja”. E quem não tem essa vocação sente falta da comunidade, pois “não é possível viver sem comunidade cristã”. Mais, na verdade, como garante, “não existe coisa mais triste que é uma comunidade que não canta”. E isto não sucede apenas em Igreja, mas em qualquer ramo da vida em convivência em qualquer tempo e lugar. De facto, um país tem o hino nacional, a escola os seus cantos e a Igreja a liturgia cantada. Por isso, o maestro espera que as pessoas, tendo sentido essa falta (“é muito triste ter de ficar isolado dos irmãos durante tanto tempo”), se deem conta, na volta, “de como é importante participar, cantando, preparando bem a liturgia”.

Sobre o facto de Portugal ter o prazer de ouvir na celebração vaticana do dia de Natal o Adeste fideles, o Hino Português, atribuído ao rei D. João IV, obra que marca uma memória e assinala o Natal, o diretor da Capela Musical Pontifícia refere que “o Adeste fideles está no inconsciente de todos aqui no Ocidente” como “sinónimo de Natal”. E aproveita para dizer que “temos de evitar os extremos”. De facto, querer “mudar tudo e começar ex novo não é evolução, mas é corte radical. E ficaremos sem saber onde afundar as raízes que temos. Ora, para a planta crescer verde e frondosa, “as raízes também têm de ser sãs”. Assim, temos de tirar da plantação o que é daninho e prejudica o crescimento da planta e as suas flores e frutos. Não se podem manter as tradições só porque sim. E Pavan explica:

Com equilíbrio e muito bom senso, temos de manter o que temos de melhor na tradição, apresentá-lo nos momentos certos. No momento certo da missa, no momento certo do ano litúrgico. A partir daí, também apresentar coisas novas. Logicamente que, quando a polifonia apareceu, era uma novidade. Não podemos ser fechados às novidades. Agora: ela apareceu fazendo polifonia sobre o quê? Sobre os temas gregorianos. É dessa continuidade que vem tanta qualidade. Começar do zero não existe. É preciso conhecer a tradição, valorizar a tradição e a partir disso partir para o novo.”.

À observação de que, no Vaticano, não há violas e jambé, quiçá por não interessarem à liturgia, frisa que, para o Concílio, o primeiro lugar é o do órgão de tubos. Porém, sublinhando que “a liturgia tem de ser encarnada na comunidade”, aponta a diocese brasileira donde provém, na periferia de São Paulo, com três milhões de pessoas e sem nenhum órgão de tubos. “Algumas igrejas têm órgão eletrónico e todas as outras usam violão e outras coisas”. Nem sempre a questão é de escolha, mas de necessidade. Todavia, a Liturgia do Papa é outra coisa. Tem outros meios, outra tradição e tem de ser exemplar. Mas isso não significa excluir nada. Um violão bem tocado pode ser bonito e lembrar outros instrumentos. O rei David tocava lira. “O órgão de tubos mal tocado também é insuportável” – acentua. Ora, se a pessoa está preparada, sabe música, tem bom gosto, quer fazer música e a faz com amor, bem feita, e se se prepara – porque não há de ser acolhida a sua cooperação? Todavia, nunca a música deve ser “uma coisa improvisada na comunidade”.

Contra a ideia de a animação na liturgia ficar para o fim, o diretor da Capela Musical Pontifícia assegura que “a preparação da liturgia entra no coração da comunidade cristã”, garantindo o Vaticano II que “a Eucaristia é o cume, o ápice e a fonte da vida cristã” e que, “nesse ápice e fonte estão a liturgia e a música litúrgica”, de modo que esta não ocupe “um lugar secundário”, mas “um lugar central”. Por conseguinte, continua o entrevistado, os bispos e os padres “têm que se preocupar também com a formação musical dos seus fiéis”. Daí a relevância das escolas diocesanas de música sacra.

Torna-se evidente, segundo o ilustre maestro, que “a preparação é essencial”, pois, se não se põe a ler quem não sabe ler ou gagueja, também, por uma questão de bom senso, não se põe a cantar quem não sabe cantar. Porém, numa comunidade que tem muito boa vontade, mas não há quem faça melhor, a coisa fica resolvida por enquanto. Não obstante, é possível melhorar e educar e a música “também é uma forma de educar”. E fá-lo “não só do ponto de vista cristão, mas também humano”, pelo esforço e disciplina. E conclui:

Tanto assim é que a música faz parte da educação desde a cultura e educação clássica, no Trivium [forma de educação da Antiguidade Clássica com gregos e romanos] havia música. A música educa o ser humano. [Daí que] também nas comunidades cristãs deveria haver uma atenção à preparação dos agentes da música.”.

***

Em suma, na liturgia, a música surge não como algo secundário e meramente ornamental, mas como algo insubstituível, não no sentido de ser imprescindível para que haja liturgia, mas no de que nada lhe será equivalente. Com efeito, a música dá mais energia e ardor à ação litúrgica, eleva as almas, intensifica a oração (Quem canta reza duas vezes – dizia Santo Agostinho), sinaliza o mistério, exprime vida, cimenta o sentir comunitário, manifesta estupefação e põe o corpo em consonância com a alma, dando expressividade ao homem todo.

Tanto assim é que os grandes músicos reagiam ao mistério da consagração do pão e do vinho no Corpo e Sangue de Cristo pela música de órgão sem letra (mais tarde o terno de cornetas ou clarins, com ou sem instrumentos de percussão) – o que a liturgia coeva suprimiu para dar lugar ao silêncio, não sei se com vantagem, pelo menos nas celebrações mais festivas. E o canto deve ser o simples cantochão ou gregoriano com raízes na tradição judaica salmódica, com ou sem floreados, e a polifonia, bem como a agregação dos cantares das diversas culturas regionais e locais.

Quanto ao instrumental, aliás como nas partes cantáveis, devem ter-se em conta, onde é possível, a primazia d órgão de tubos e os instrumentos disponibilizados pela modernidade e pelas culturas regionais e locais.

Porém, uma coisa é certa: o canto não é um apêndice ornamental a tolerar na liturgia, nem algo a executar com a maior brevidade possível, mas algo a servir o desenvolvimento da inspiração e expressão da fé e a manifestar o sentir da comunidade com o Ressuscitado.

A música é o resultado da poesia, por vezes indizível, que o Criador instila no homem, no crente, pelo que tem um fundamento histórico, antropológico e divinal. Eleva a pessoa que se exprime a solo ante Deus e é um solene testemunho e um forte elo comunitário.  

Por isso, rezamos, cantamos, dançamos ao som do órgão, da flauta, do tímpano, do atabale – em salmo, hino e cântico, com unção ou com júbilo.

2022.01.08 – Louro de Carvalho

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