quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Os debates eleitorais são um espetáculo inquinado

 

 

Recordo que, Dom Jorge Ortiga, então Arcebispo de Braga, Administrador Apostólico da Arquidiocese até à tomada de posse, a 13 de fevereiro, do sucessor o Arcebispo eleito, Dom José Cordeiro, passando a Arcebispo emérito, em entrevista no verão passado, referindo-se, a pedido do entrevistador, às eleições autárquicas de 2021, que se avizinhavam, dizia que não esperava grandes alterações.

E verdade é que no distrito de Braga as alterações não foram significativas, ainda que no resto do país, como é do conhecimento público, tenha havido algumas surpresas, embora a correlação de forças políticas se mantenha, acusando o partido mais votado um relativo enfraquecimento comparativamente com as eleições de 2017 e vindo o segundo partido a ter reforço eleitoral.

Não obstante, é de assinalar que as eleições autárquicas de 2021 ocorreram numa boa janela temporal da pandemia, que permitiu uma campanha eleitoral sem sobressaltos, com uma apresentação das propostas dos partidos e grupos de cidadãos que houveram por bem fazê-las e algum ambiente de cortejo e festa nas ruas – o que não pôde acontecer nas eleições presidenciais do mês de janeiro de 2021, precedidas de campanha amorfa e cinzenta, praticamente reduzida a debates televisivos que facilmente davam visibilidade ao incumbente e recandidato, cuja vitória era esperada pelo grosso do eleitorado.

As eleições legislativas – que estão no horizonte, mercê da falta de vontade política em fornecer ao país um Orçamento de Estado em contexto de pandemia e necessidade de recuperação económica e tentativa de atenuação do desnivelamento social, bem como pela inépcia de quem forçou a dissolução do Parlamento e antecipou as eleições para um dos momentos mais perigosos de difusão do vírus – não podem deixar de ser mais relevantes que as presidenciais e as autárquicas. É certo que o Presidente da República tem um importante papel representativo e moderador, bem como a pertinente palavra a dizer em tempos de crise, mas não é fonte de lei nem habitualmente suscita a discussão política e o debate da Nação. As autarquias são relevantes na condução dos destinos das populações e essenciais na promoção do seu bem-estar, exercendo o poder da proximidade, um verdadeiro serviço, mas não têm a visão de abranger na sua missão o todo nacional, conduzir superiormente os destinos do país, fomentar as relações internacionais ou proceder as reformas estruturais.

Foi o Presidente da República que decidiu, como é prerrogativa sua, a dissolução do Parlamento e devolveu a palavra ao eleitorado, mas a situação pandémica aconselharia o protelamento da decisão. É caso para perguntar onde estava o Conselho de Estado, por onde andavam os partidos, que foram ouvidos, e porque os especialistas em virologia e em saúde pública não souberam aconselhar informalmente com vista a uma decisão, que agora é preciso remediar com a multiplicação do voto antecipado e a subsequente multiplicação, de mérito questionável, de agentes de autarquias na recolha dos votos e deslocações, bem como, eventualmente, pela quebra do isolamento, mas sem aumentar a duração das assembleias de voto, o que sucedeu nas eleições autárquicas (será que o vírus só ataca de noite e ataca uma hora mais tarde no outono?).

Consideradas estas circunstâncias, os debates televisivos e radiofónicos e os tempos de antena, até pela falta ou insuficiência das deslocações de rua, comícios e outros meios de propaganda, deveriam ser elucidativos e apelativos. Antes de mais, deveriam ser unânimes em instar os eleitores ao voto, seja em que partido for, enquanto direito político e dever cívico; depois, deveriam os protagonistas dos debates apelar claramente ao voto no partido que representam evidenciando a sua bondade; e, sobretudo, deveriam deixar claras as linhas programáticas gerais que regem a orientação do partido e as grandes propostas que têm para o país a nível interno e a nível internacional, cobrindo todas as situações e todos os setores de atividade, em especial os mais nevrálgicos, for forma que os eleitores pudessem fazer um juízo de valor de que resultasse um voto consciente, responsável e portador de tranquilidade.

Ao invés, há debates que se perdem na verborreia e voracidade de protagonismo do moderador, cuja função é apresentar os contendores, distribuir os tempos e moderar o seu uso e evitar que o debate caia em ponto morto, isto é, promover o debate, mas sem entrar nele. Porém, há uma voracidade de alguns moderadores em falar e levar os contendores à contradição, fazendo do debate espetáculo conquistador de audiências televisivas. Imaginem que o imperador ou o árbitro resolviam intervir na orientação da luta dos gladiadores no circo romano!

Neste âmbito, dou como exemplo o debate entre André Ventura e Rui Rio. A moderadora, uma jornalista geralmente bem cotada na ribalta da comunicação social, não fez outra coisa que não espevitar as contradições de André Ventura e tornar-se com ele coprotagonista do debate. Chegou mesmo solicitar a Rio resposta a asserções de Ventura sem lhe dar qualquer tempo para o efeito, chegando mesmo a dizer da necessidade de fazer a compensação de tempos, o que não aconteceu. E, de Rio, que ficou praticamente encostado a partir de certo momento, pouco ou mal ficámos a saber que programa, que propostas, tendo mesmo transpirado algo que se deduz indiretamente por afirmações do interlocutor.

Casos há em que os comentadores têm a preocupação de evidenciar quem ganha o debate, que o perde e de avaliar cada um dos participantes no debate.

Mas a inquinação dos debates não fica por aqui nem é da responsabilidade única dos moderadores, até porque os contendores têm experiência política e comunicativa – e, se a não tiverem, devem deparar-se adequadamente socorrendo-se do estudo e das convenientes ajudas – pelo que podem imprimir a sua marca no debate (Lembrem-se de Mário Soares, Cunhal, Sá Carneiro ou Sócrates…). E os intervenientes nos debates, regra geral, perdem-se, no levantamento das contradições dos adversários, nos seus eventuais comportamentos criticáveis, no que os partidos contrários fizeram ou não fizeram outrora, no que dirigentes disseram de menos conveniente ou do que não disseram quando o deviam ter feito. Isto, quando não se fazem ataques pessoais, agressão ideológica, juízos de intenção e mesmo quase mentira, para lá de epítetos que pouco interessam, por exemplo chamar “atriz” à adversária ou “condenado” ao adversário. E que dizer da ressuscitação de categorias penais com a prisão perpétua (avaliável periodicamente ou não) ou a castração química, incompatíveis com as linhas fundamentais do humanismo e do iluminismo? Depois, perde-se tempo infindo em discutir questões de governabilidade em diversos cenários que os resultados eleitorais determinarem. E falta o tempo para o essencial, porque a vontade política faz questão em minorar os aspetos essenciais. Com efeito, se o esclarecimento de algumas questões de governabilidade poderia captar os eleitores, também é verdade que os políticos devem esperar que os eleitores votem livremente e definir a governabilidade após as eleições de acordo com a vontade expressa do eleitorado e, como diz alguém, não é lícito a um partido ou aos partidos votar a rejeição dum programa de governo (não é moção de censura) sem ter uma alternativa para apresentar, o que sucedeu em 1978, mas não em 2015.       

Ora, em tempo de crise, os eleitores precisam de saber quais as soluções de cada um dos partidos têm em carteira, como precisam de saber as orientações de cada partido, sobretudo de cada um dos que têm mais probabilidade de assumir a governação, em relação à administração e coesão do território, proteção civil, infraestruturas e habitação; à reforma do sistema de justiça, combate à corrupção e ataque ao enriquecimento ilícito; à reforma do sistema político; à educação, formação, ciência e cultura; à saúde, segurança social, serviço da solidariedade, emprego e condições de trabalho; à economia, rendimento das famílias, apoio empresarial e combate à pobreza; ao sistema financeiro, contas, défice e dívida; à literacia digital; ao ambiente e alterações climáticas; à indústria, comércio, agricultura e floresta; à regionalização e correção de assimetrias; à defesa nacional e segurança interna; à política de migrações, asilo e refugiados; à UE e demais países e organizações internacionais (políticas, económicas, culturais, estratégicas…); e aos temas fraturantes.

Sem o esclarecimento destas matérias, a campanha eleitoral não cumpre a sua função e a eleição é um ato político, mas não devidamente informado.

O PS apresentou, no dia 3 de janeiro, a linhas gerais do seu programa eleitoral e as 12 grandes prioridades para os próximos 4 anos; e o PSD prometeu apresentar o seu programa no próximo dia 7. Veremos se estes partidos que têm governado o país desde 1976 – enfim, os grandes responsáveis pela situação atual – divulgarão convenientemente as suas propostas ou se estas ficarão presas nos respetivos sites e o povo ficará a conhecer a intenção da tomada de medidas avulsas ou se verá confrontado com generalidades. Será que teremos “ano novo vida nova”, como referiu o Presidente da República logo na abertura da sua mensagem de ano novo (sem que se percebesse o alcance político da evocação de tal aforismo)?

2022.01.05 – Louro de Carvalho

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