segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Reformar o ensino profissional, sim, mas importa saber como

 

 

É apresentado, nesta campanha eleitoral, como um dos desígnios do atualmente segundo maior partido, que passará pela “reformulação do curriculum dos cursos profissionais”, e pelo “reforço da componente de aprendizagem em contexto de trabalho”.

Na verdade, o curriculum dos cursos profissionais não está bom. Todavia, quem iniciou o processo da sua adulteração foi o Governo que iniciou funções em 2002 equalizando os programas da componente de formação sociocultural (Português, Matemática e Língua Estrangeira I) aos dos cursos científico-humanísticos, mas ficando autónomo o da Área de Integração.

Por seu turno, o Governo que iniciou funções em 2005 pressionou a introdução a mata-cavalos do ensino profissional nas escolas secundárias do ensino público, sem cuidar da formação específica dos professores para o efeito ou, se quisermos, dando uma ensaboadela à pressa a uns tantos sobre estrutura modular e avaliação modular, mas alocando muitos outros a esta modalidade de ensino.

Com o Governo do tempo da troika a avaliação das aprendizagens passou a ser estatutariamente da competência dos conselhos de turma “com as necessárias adaptações”.

O combate à ideia e à prática dum ensino profissional como o “parente pobre” do ensino de nível secundário é antigo. Só que a sua introdução generalizada nas escolas secundárias – sei que há boas exceções – contribuiu para o agravamento dessa ideia e dessa prática.

Desde logo, o recrutamento confiado a psicólogos baseava-se nas classificações do aluno obtidas no 3.º ciclo, não propriamente no estudo do perfil do aluno em causa. Não se explicitava a possibilidade de acesso ao ensino superior. Muitas escolas viram o filão de virem os fundos comunitários ajudar a sustentar todo o funcionamento da escola; manter muitos lugares de docentes nos quadros; remeter para a docência no ensino profissional os professores que as direções de escola entendiam que deviam sair da sua zona de conforto, independentemente da apetência que tivessem ou não para esse tipo de docência; e entregar a docência da Área de Integração a determinados grupos de recrutamento de professores do ensino secundário, sem a preocupação do desejado equilíbrio na programação desta área. Muitos professores da escola secundária que também lecionavam ensino profissional viram a sua folha de vencimentos repartida por duas entidades patronais: o agrupamento de escolas ou escola não agrupada e a entidade que financiava o ensino profissional.

As escolas secundárias não absolveram os cursos de operadores, que eram cursos pré-profissionais (de 3 anos) para maiores de 15 anos, dando-lhes equivalência ao 9.º ano, mas introduziram uma figura anódina de cursos de educação e formação, geralmente com a duração de um ano. Admito que os ditos cursos de operadores pudessem ser destinados a quem não tivesse apetências para prossecução de estudos superiores, mas o ensino profissional de nível secundário não deveria ter sido crismado com esse estigma. Aliás, foi o Governo que entrou em funções em 2015 que recuperou a ideia inicial da implementação do ensino secundário – em 1989, depois em 1993 e, mais tarde, em 1998 – da criação duma cota de ingresso no ensino superior pela via do ensino profissional, tal como fora estabelecido para os cursos tecnológicos e para os CSPOVA (Cursos do secundário preponderantemente orientados para a vida ativa).        

É, pois, verdade que o curriculum do ensino profissional “tende a reproduzir, em versão mais ‘leve’, o do ensino regular, especialmente nas disciplinas da componente de formação sociocultural e científica. Porém, é de questionar a quem se deve tal matização. E nem estará o mal nos programas, mas na sua gestão. Com efeito, o ensino profissional, se não é o parente pobre do ensino dito regular, não deve ter qualificação inferior. Todavia, é de ter em conta que é de si menos codificado que o ensino científico-humanístico. Por outro lado, a estrutura modular implica a sequência de módulos de aprendizagem de acordo com as necessidades e capacidades dos alunos e o respeito pelo seu ritmo de aprendizagem, com a antecipada identificação dos pré-requisitos e pressupostos para cada módulo. E isto implica a avaliação modular em data e por instrumento (s) a determinar pelo professor em concertação com o aluno ou grupo de alunos.

Isto implicará, desde logo, a desvinculação da ministração dos cursos em relação à fonte de financiamento, ou seja, embora o curso tenha a duração previsível de 3 anos, o ritmo de aprendizagem pode ditar o seu encurtamento ou o seu prolongamento, pelo que será premente a instituição do mecanismo crediário. Depois, impõe que a avaliação se desvincule de critérios taxativos definidos pelo Conselho Pedagógico como para as disciplinas dos outros cursos, mas se respeite a autonomia do professor e aluno ou alunos e o fechamento de módulo, devendo o aluno ter sucesso mínimo em todos e cada um dos módulos. O que vi se 50% em avaliação contínua e 50% na prova final de módulo não é nada. A única prova final é a PAP (Prova de Aptidão Profissional). É dramático ver uma escola com centenas de exames de módulos que estão em atraso. Termina o financiamento trienal e os alunos ficam sem acompanhamento, a não ser que a carolice docente dite de outro modo.

Também há que reduzir bastante os número de alunos por turma, de modo que seja possível criar os cursos em verdade procurados e não os que as administrações entendem impor, tal como para que se possa trabalhar acompanhando individualmente os alunos. É certo que, só por si, turmas pequenas não são critério absoluto de eficiência. Cristo contava só 12 no seu colégio e só não perdia a paciência porque é Deus. E sei de turmas bem pequenas que deram água pela barba a professores e professoras. Contudo, é quase impossível trabalhar profissionalmente com mais de 15 formandos. 

É, ainda, de considerar que os cursos profissionais não deverão ser ministrados em espaço comum ao dos cursos científico-humanísticos, embora devam existir momentos de encontro. A inclusão e integração não passam por meter tudo no mesmo saco. Pode causar inibição, a princípio, a alunos com equipamentos profissionais serem objeto de troça da parte de outros alunos. E, por outro lado, coabitar no mesmo espaço com tempos de formação diferentes deu azo a que se entrasse penosamente, sem necessidade, na conversão de tempos de 45 ou 90 minutos a unidades de 60 minutos. Ora, em edifícios autónomos, o ensino profissional rolaria em regime contínuo, com intervalos segundo as necessidades de alívio do cansaço ou do stresse e não pela contabilização de minuto a minuto. Essa história de professores do ensino secundário terem um feriado, aderirem a uma greve ou terem de faltar um tempo ou dois devendo compensar, minuto a minuto, as horas não lecionadas é diabólico. Não é possível manter a dignidade do trabalhador que força maior obrigue a estar ausente e os formandos estarem a ser acompanhados por um assistente? As horas de formação deveriam ser predominantemente contabilizadas por conta dos formandos, não?

É óbvio que é necessário partir dos “perfis de formação indispensáveis à boa inserção no mercado de trabalho e na vida ativa”, mas sem deixar de estar no horizonte o acesso ao ensino superior; é preciso identificar “as componentes curriculares estabelecendo um equilíbrio entre conhecimento, competências e aptidões técnicas”, mas não se pode ser promovida uma formação profissional que sirva exclusivamente para uma única profissão ou atividade, mas os formandos devem ser dotados dum painel de conhecimentos e aptidões socioculturais, científicas e tecnológicas que lhes permitam o exercício de uma profissão e abertura para outras formações profissionais, no pressuposto de que uma sólida formação profissional permite adquirir em tempo útil formação para qualquer atividade do mesmo nível. Conheço, por exemplo, alunos que fizeram um curso profissional de construção civil e são gerentes bancários, engenheiros civis, diplomados em Belas Artes, professores de Educação Física e Desporto.     

Quer-se o reforço da “componente de aprendizagem em contexto de trabalho”. Porém, há que prever a concitação das empresas e serviços que aceitem essa cooperação e garantir uma e/ou outra de duas coisas: a formação em escola com vista, desde início, à empresa X ou ao serviço Y; a compensação pecuniária pela quebra de produção. Envolver as empresas (serviços) na definição dos conteúdos curriculares, bem como na formação prática e na respetiva avaliação” é desejável, mas pode ter efeito perverso: a empresa pode, na definição dos conteúdos e avaliação, estar a zelar pelos seus objetivos de empresa/serviço (vi isso em câmara municipais) e não tanto os objetivos da formação profissional ou, no caso da avaliação, branquear o desempenho para não “cortar as pernas” ao diplomando. E a escola não deve criar a ideia de que o formando só deve exercer atividade nos conteúdos funcionais e organizacionais para que está em formação.

Além disso, prevendo quão difícil pode ser pontualmente a adesão de empresas e serviços à formação em contexto de trabalho, deve a escola ter as suas estruturas oficinais e laboratoriais para fornecer, além da prática simulada, a formação em contexto de trabalho.

Ainda mais do que a formação técnica e tecnológica, impõe-se a formação para a cidadania, que implica um sólido desenvolvimento pessoal, a boa relação social, o cultivo dos valores e atitudes, o conhecimento do país e do mundo e a procura da aprendizagem ao longo da vida – obviamente a valorização das vertentes da “responsabilidade social, ambiental e produtiva” e também a distributiva.

Sim, há que rever periodicamente o elenco das qualificações e identificar as prioritárias em função das necessidades previsíveis a curto e médio prazo – ainda a 29 de dezembro pp, entrou em vigor o novo catálogo com o novo referencial de competências-chave de educação e formação de adultos – de forma a garantir “a empregabilidade” dos cursos e “a satisfação do mercado de trabalho”, que deve ser tirado da proletarização a que o ir além da troika o prostrou e dar-lhe a dignidade que lhe é devida enquanto direito e dever em prol da pessoa, da família e da sociedade.

Por fim, é certo que são relevantes as áreas tecnológicas e da economia digital, em que se regista “uma enorme carência de especialistas e de quadros médios”, mas pergunto-me se as escolas estão a cuidar devidamente da área de educação para a cidadania ou se esta não estará adormecida nos curricula do ensino profissional. A tecnologia não é tudo…

Seja qual for o Governo que se forme após as próximas eleições, parece-me que tudo mudará para ficar mais ou menos na mesma – é a volta de 360º (se for a volta de 180º, será só meia volta) –, a menos que se intente reconfigurar a escola, que está muito pesada e burocratizada.

2022.01.10 – Louro de Carvalho

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