É
apresentado, nesta campanha eleitoral, como um dos desígnios do atualmente
segundo maior partido, que passará pela “reformulação do curriculum dos cursos
profissionais”, e pelo “reforço da componente de aprendizagem em contexto de
trabalho”.
Na
verdade, o curriculum dos cursos profissionais não está bom. Todavia, quem
iniciou o processo da sua adulteração foi o Governo que iniciou funções em 2002
equalizando os programas da componente de formação sociocultural (Português,
Matemática e Língua Estrangeira I)
aos dos cursos científico-humanísticos, mas ficando autónomo o da Área de
Integração.
Por
seu turno, o Governo que iniciou funções em 2005 pressionou a introdução a
mata-cavalos do ensino profissional nas escolas secundárias do ensino público,
sem cuidar da formação específica dos professores para o efeito ou, se
quisermos, dando uma ensaboadela à pressa a uns tantos sobre estrutura modular
e avaliação modular, mas alocando muitos outros a esta modalidade de ensino.
Com
o Governo do tempo da troika a avaliação das aprendizagens passou a ser
estatutariamente da competência dos conselhos de turma “com as necessárias
adaptações”.
O
combate à ideia e à prática dum ensino profissional como o “parente pobre” do
ensino de nível secundário é antigo. Só que a sua introdução generalizada nas
escolas secundárias – sei que há boas exceções – contribuiu para o agravamento
dessa ideia e dessa prática.
Desde
logo, o recrutamento confiado a psicólogos baseava-se nas classificações do
aluno obtidas no 3.º ciclo, não propriamente no estudo do perfil do aluno em
causa. Não se explicitava a possibilidade de acesso ao ensino superior. Muitas
escolas viram o filão de virem os fundos comunitários ajudar a sustentar todo o
funcionamento da escola; manter muitos lugares de docentes nos quadros; remeter
para a docência no ensino profissional os professores que as direções de escola
entendiam que deviam sair da sua zona de conforto, independentemente da
apetência que tivessem ou não para esse tipo de docência; e entregar a docência
da Área de Integração a determinados grupos de recrutamento de professores do
ensino secundário, sem a preocupação do desejado equilíbrio na programação
desta área. Muitos professores da escola secundária que também lecionavam
ensino profissional viram a sua folha de vencimentos repartida por duas
entidades patronais: o agrupamento de escolas ou escola não agrupada e a
entidade que financiava o ensino profissional.
As
escolas secundárias não absolveram os cursos de operadores, que eram cursos
pré-profissionais (de 3 anos) para maiores de 15 anos,
dando-lhes equivalência ao 9.º ano, mas introduziram uma figura anódina de
cursos de educação e formação, geralmente com a duração de um ano. Admito que
os ditos cursos de operadores pudessem ser destinados a quem não tivesse
apetências para prossecução de estudos superiores, mas o ensino profissional de
nível secundário não deveria ter sido crismado com esse estigma. Aliás, foi o
Governo que entrou em funções em 2015 que recuperou a ideia inicial da
implementação do ensino secundário – em 1989, depois em 1993 e, mais tarde, em
1998 – da criação duma cota de ingresso no ensino superior pela via do ensino
profissional, tal como fora estabelecido para os cursos tecnológicos e para os
CSPOVA (Cursos
do secundário preponderantemente orientados para a vida ativa).
É,
pois, verdade que o curriculum do ensino profissional “tende a reproduzir, em
versão mais ‘leve’, o do ensino regular, especialmente nas disciplinas da
componente de formação sociocultural e científica. Porém, é de questionar a
quem se deve tal matização. E nem estará o mal nos programas, mas na sua
gestão. Com efeito, o ensino profissional, se não é o parente pobre do ensino
dito regular, não deve ter qualificação inferior. Todavia, é de ter em conta
que é de si menos codificado que o ensino científico-humanístico. Por outro
lado, a estrutura modular implica a sequência de módulos de aprendizagem de
acordo com as necessidades e capacidades dos alunos e o respeito pelo seu ritmo
de aprendizagem, com a antecipada identificação dos pré-requisitos e
pressupostos para cada módulo. E isto implica a avaliação modular em data e por
instrumento (s) a determinar pelo professor em concertação com o aluno ou grupo
de alunos.
Isto
implicará, desde logo, a desvinculação da ministração dos cursos em relação à
fonte de financiamento, ou seja, embora o curso tenha a duração previsível de 3
anos, o ritmo de aprendizagem pode ditar o seu encurtamento ou o seu
prolongamento, pelo que será premente a instituição do mecanismo crediário.
Depois, impõe que a avaliação se desvincule de critérios taxativos definidos
pelo Conselho Pedagógico como para as disciplinas dos outros cursos, mas se
respeite a autonomia do professor e aluno ou alunos e o fechamento de módulo,
devendo o aluno ter sucesso mínimo em todos e cada um dos módulos. O que vi se
50% em avaliação contínua e 50% na prova final de módulo não é nada. A única
prova final é a PAP (Prova de Aptidão Profissional). É dramático ver uma escola com
centenas de exames de módulos que estão em atraso. Termina o financiamento trienal
e os alunos ficam sem acompanhamento, a não ser que a carolice docente dite de
outro modo.
Também
há que reduzir bastante os número de alunos por turma, de modo que seja possível
criar os cursos em verdade procurados e não os que as administrações entendem
impor, tal como para que se possa trabalhar acompanhando individualmente os
alunos. É certo que, só por si, turmas pequenas não são critério absoluto de
eficiência. Cristo contava só 12 no seu colégio e só não perdia a paciência
porque é Deus. E sei de turmas bem pequenas que deram água pela barba a
professores e professoras. Contudo, é quase impossível trabalhar
profissionalmente com mais de 15 formandos.
É,
ainda, de considerar que os cursos profissionais não deverão ser ministrados em
espaço comum ao dos cursos científico-humanísticos, embora devam existir
momentos de encontro. A inclusão e integração não passam por meter tudo no
mesmo saco. Pode causar inibição, a princípio, a alunos com equipamentos
profissionais serem objeto de troça da parte de outros alunos. E, por outro
lado, coabitar no mesmo espaço com tempos de formação diferentes deu azo a que
se entrasse penosamente, sem necessidade, na conversão de tempos de 45 ou 90
minutos a unidades de 60 minutos. Ora, em edifícios autónomos, o ensino
profissional rolaria em regime contínuo, com intervalos segundo as necessidades
de alívio do cansaço ou do stresse e não pela contabilização de minuto a
minuto. Essa história de professores do ensino secundário terem um feriado,
aderirem a uma greve ou terem de faltar um tempo ou dois devendo compensar,
minuto a minuto, as horas não lecionadas é diabólico. Não é possível manter a
dignidade do trabalhador que força maior obrigue a estar ausente e os formandos
estarem a ser acompanhados por um assistente? As horas de formação deveriam ser
predominantemente contabilizadas por conta dos formandos, não?
É
óbvio que é necessário partir dos “perfis de formação indispensáveis à boa inserção
no mercado de trabalho e na vida ativa”, mas sem deixar de estar no horizonte o
acesso ao ensino superior; é preciso identificar “as componentes curriculares
estabelecendo um equilíbrio entre conhecimento, competências e aptidões
técnicas”, mas não se pode ser promovida uma formação profissional que sirva
exclusivamente para uma única profissão ou atividade, mas os formandos devem
ser dotados dum painel de conhecimentos e aptidões socioculturais, científicas
e tecnológicas que lhes permitam o exercício de uma profissão e abertura para
outras formações profissionais, no pressuposto de que uma sólida formação
profissional permite adquirir em tempo útil formação para qualquer atividade do
mesmo nível. Conheço, por exemplo, alunos que fizeram um curso profissional de
construção civil e são gerentes bancários, engenheiros civis, diplomados em
Belas Artes, professores de Educação Física e Desporto.
Quer-se
o reforço da “componente de aprendizagem em contexto de trabalho”. Porém, há
que prever a concitação das empresas e serviços que aceitem essa cooperação e
garantir uma e/ou outra de duas coisas: a formação em escola com vista, desde
início, à empresa X ou ao serviço Y; a compensação pecuniária pela quebra de
produção. Envolver as empresas (serviços) na definição dos conteúdos
curriculares, bem como na formação prática e na respetiva avaliação” é
desejável, mas pode ter efeito perverso: a empresa pode, na definição dos
conteúdos e avaliação, estar a zelar pelos seus objetivos de empresa/serviço (vi
isso em câmara municipais)
e não tanto os objetivos da formação profissional ou, no caso da avaliação,
branquear o desempenho para não “cortar as pernas” ao diplomando. E a escola
não deve criar a ideia de que o formando só deve exercer atividade nos
conteúdos funcionais e organizacionais para que está em formação.
Além
disso, prevendo quão difícil pode ser pontualmente a adesão de empresas e
serviços à formação em contexto de trabalho, deve a escola ter as suas
estruturas oficinais e laboratoriais para fornecer, além da prática simulada, a
formação em contexto de trabalho.
Ainda
mais do que a formação técnica e tecnológica, impõe-se a formação para a
cidadania, que implica um sólido desenvolvimento pessoal, a boa relação social,
o cultivo dos valores e atitudes, o conhecimento do país e do mundo e a procura
da aprendizagem ao longo da vida – obviamente a valorização das vertentes da “responsabilidade
social, ambiental e produtiva” e também a distributiva.
Sim,
há que rever periodicamente o elenco das qualificações e identificar as
prioritárias em função das necessidades previsíveis a curto e médio prazo –
ainda a 29 de dezembro pp, entrou em vigor o novo catálogo com o novo
referencial de competências-chave de educação e formação de adultos – de forma
a garantir “a empregabilidade” dos cursos e “a satisfação do mercado de
trabalho”, que deve ser tirado da proletarização a que o ir além da troika o
prostrou e dar-lhe a dignidade que lhe é devida enquanto direito e dever em
prol da pessoa, da família e da sociedade.
Por
fim, é certo que são relevantes as áreas tecnológicas e da economia digital, em
que se regista “uma enorme carência de especialistas e de quadros médios”, mas
pergunto-me se as escolas estão a cuidar devidamente da área de educação para a
cidadania ou se esta não estará adormecida nos curricula do ensino
profissional. A tecnologia não é tudo…
Seja
qual for o Governo que se forme após as próximas eleições, parece-me que tudo
mudará para ficar mais ou menos na mesma – é a volta de 360º (se
for a volta de 180º, será só meia volta)
–, a menos que se intente reconfigurar a escola, que está muito pesada e
burocratizada.
2022.01.10 – Louro de Carvalho
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