sábado, 1 de janeiro de 2022

A paz é “um dom do alto e fruto dum compromisso comum”

 

Quem o apregoa é o Papa Francisco na sua mensagem para este “LV Dia Mundial da Paz”, datada de 8 de dezembro de 2021, asserção que reiterou neste 1.º dia de 2022, após a oração mariana do Angelus com os fiéis, peregrinos e visitantes que ocupavam a Praça de São Pedro.

Porém, não devemos esquecer que a paz enquanto dom de Deus se expõe no mistério do Natal que nos incita a adotar o perfil dos pacíficos, os chamados filhos de Deus. 

O mistério expõe-se na linha da simplicidade, da verdade e da alegria. E, neste âmbito, o Papa, na homilia da Missa da Solenidade de Santa Maria Mãe de Deus, que preenche este 1.º dia do novo ano, salienta que os pastores encontram “Maria, José e o menino deitado na manjedoura” (Lc 2,16), manjedoura que se arvora em “sinal de alegria” ao confirmar o que os pastores souberam pelo anjo (cf 2,12), e constitui a prova de que Deus está junto deles, pois a manjedoura é-lhes bem familiar. De igual modo, a manjedoura é sinal de alegria para nós, pois Jesus, nascendo pequeno e pobre, toca-nos o coração, incute-nos amor em vez de temor e pré-anuncia-nos que Ele Se fará nosso alimento. E a sua pobreza, sem berço, é boa notícia para todos, especialmente os marginalizados, os rejeitados, para quem não conta no mundo.

Não obstante, o nascimento do filho nestas condições significou o encargo de arcar com o escândalo da falta de berço e o inevitável recurso à manjedoura, o que parece desdizer do anúncio que Maria recebera do anjo muito antes dos pastores:

Hás de conceber no teu seio e dar à luz um filho, ao qual porás o nome de Jesus. Será grande e vai chamar-Se Filho do Altíssimo. O Senhor Deus vai dar-Lhe o trono de seu pai David” (Lc 1,31-32).

E, tendo de O reclinar numa manjedoura para animais, pergunta-se desconsoladamente “como harmonizar o trono do rei e a pobre manjedoura” ou “como conciliar a glória do Altíssimo e a miséria dum estábulo”. Considera o Pontífice que não seria censurável Maria lamentar-Se daquela desolação inesperada. Porém, Ela não perde a coragem, não Se queixa e, em silêncio, opta por uma saída diversa das nossas:

Quanto a Maria, guardava todas estas coisas, meditando-as no seu coração” (Lc 2,19).

Enquanto os pastores e o povo contam a todos o que viram e ouviram – o anjo apareceu aos pastores no meio da noite dizendo palavras sobre o Menino e o povo admirava-se ao ouvir estas coisas (cf Lc 2,18) –, Maria aparece pensativa: “guarda e medita no coração”. São atitudes que se podem encontrar em nós: “a narração e a maravilha dos pastores recordam a nossa condição nos primeiros tempos da fé”, que nos leva alegrarmo-nos “pela novidade de Deus que entra na vida, enchendo todos os seus aspetos dum clima de maravilha”; e “a atitude meditativa de Maria é a expressão duma fé madura, adulta, não inicial, duma fé que não é recém-nascida, duma fé que se tornou geradora”. Maria encontra-Se no estábulo de Belém. E é aí que dá Deus ao mundo. E, se outros, ante o escândalo da manjedoura, seriam tomados pelo desconsolo, Ela “guarda meditando. Por isso, a Mãe de Deus ensina a tirar partido da colisão entre as expectativas e a realidade, o que Bergoglio denomina de “caminho estreito para chegar à meta, [que] é a cruz sem a qual não se ressuscita”, ou “um parto doloroso, que dá vida a uma fé mais madura”.

E o Papa ensina como realizar a conciliação entre a expectativa e realidade: fazendo como fazia Maria, “guardando e meditando. Ela não rejeita o que acontece, antes guarda no coração quanto “viu e ouviu”: o belo e o difícil de aceitar, como “o perigo que correu aparecendo grávida antes do casamento” e a “desolação do estábulo onde deu à luz”. E o Papa sublinha:

Não seleciona, mas guarda. Acolhe a realidade como vem, não tenta camuflar, maquilhar a vida; guarda no coração.”.

Depois, vem a ênfase da meditação produzindo “o entrelaçamento das coisas”, ou seja, “Maria compara experiências diferentes, encontrando os fios ocultos que as interligam”. Orando, “interliga as coisas lindas e as coisas duras; não as mantém separadas, mas une-as”. Por isso, o Papa A exalta como “a Mãe da catolicidade”, explicando:

Maria é católica por isto: porque une, não separa. E assim apreende o sentido pleno, a perspetiva de Deus. No seu coração de mãe, compreende que a glória do Altíssimo passa pela humildade; acolhe o plano da salvação, segundo o qual Deus devia descansar numa manjedoura. Vê o Menino divino frágil e tiritando de frio, e acolhe o maravilhoso entrelaçamento divino de grandeza e pequenez. É assim que Maria guarda: meditando.”:

Este olhar inclusivo, que supera as tensões, é o olhar das mães, que não separam, mas guardam e assim fazem crescer a vida; um olhar concreto, que não se condiciona pelo desconsolo, nem se paralisa ante os problemas, mas “coloca-os num horizonte mais amplo”. E o Pontífice observa que “Maria continua assim até ao Calvário, meditando e guardando”, para assegurar que “é isto que as mães fazem: sabem superar obstáculos e conflitos, sabem infundir a paz”, visto que sabem guardar e “manter os fios da vida todos juntos”. Por isso, com Maria e com as outras verdadeiras mães, há que descobrir “a necessidade de pessoas capazes de tecer fios de comunhão, que contrastem com os numerosos fios de arame farpado das divisões”.

Vincando, na sua homilia da Missa da Solenidade, na Basílica de São Pedro, que o novo ano se inicia sob o signo da Mãe de Deus, o Papa garante que “o olhar materno é o caminho para renascer e crescer”, pois as mães, as mulheres, “olhando com o coração”, “olham o mundo não para o explorar, mas para que tenha vida”. E, assim, “conseguem manter juntos os sonhos e a realidade concreta, evitando as derivas do pragmatismo assético e da abstração”. Neste sentido, o Santo Padre transfere este olhar do coração para a Igreja, que é mãe, pelo que “não podemos encontrar o lugar da mulher na Igreja sem a espelhar neste coração de mulher-mãe”. Por consequência, “enquanto as mães dão a vida e as mulheres guardam o mundo”, o Papa exorta a que nos empenhemos todos na promoção das mães e na proteção das mulheres, pois, no teatro trágico da violência existe contra as mulheres, é preciso compreender que “ferir uma mulher é ultrajar a Deus, que tomou duma mulher a humanidade”, não a tendo tomado dum anjo, nem a tendo criado diretamente. Ora, “tal como duma mulher, a Igreja-mulher toma a humanidade dos filhos” – vinca Francisco, o Pastor que ousa pôr o início do Ano Novo “sob a proteção desta mulher, a Santa Mãe de Deus, que é nossa mãe”, rogando que a aclamada Santa Mãe de Deus pelo Concílio de Éfeso, “nos ajude a guardar e meditar tudo, sem ter medo das provações, na jubilosa certeza de que o Senhor é fiel e sabe transformar as cruzes em ressurreições”.

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Na alocução que fez ao meio-dia com quem estava na Praça de São Pedro, Francisco reiterou a confiança na Mãe de Deus no início do novo ano e recolheu, do Evangelho, o encanto da manjedoura, olhando Maria, “a mãe terna e carinhosa”, que reclina Jesus na manjedoura, podendo ver-se aqui um presente que nos é dado: “não tem o Filho para Si, mas apresenta-O a nós”;  não só O segura nos braços, mas expõe-No na manjedoura “para nos convidar a olhar para Ele, para recebê-Lo e adorá-Lo”. Assim se exprime a maternidade de Maria: “sempre dando o Filho, apontando para o Filho, nunca permanecendo o Filho como algo seu”.

Pondo-O ante os nossos olhos, sem dizer palavra, transmite a mensagem de que “Deus está perto, ao nosso alcance”, não com a força do poder, mas “com a fragilidade de quem pede para ser amado” e “nos olha de baixo como um irmão” e “como um filho”.  E Jesus – diz o Pontífice – “nasce pequeno e necessitado” para ninguém se envergonhar de si mesmo e para, quando experimentarmos a nossa fraqueza e fragilidade, podermos “sentir Deus ainda mais perto, porque assim Ele Se nos apresentou a nós, fraco e frágil”, já que “Ele é o Deus-filho que nasce para não excluir ninguém” e “fazer com que todos nos tornemos irmãos e irmãs.”

Ora, tempos ainda “incertos e difíceis devido à pandemia”, Francisco anota que muitos “se assustam com o futuro e se preocupam com as situações sociais, os problemas pessoais, os perigos advindos da crise ecológica, das injustiças e dos desequilíbrios económicos planetários” e pensa “nas jovens mães e seus filhos que fogem de guerras e fomes ou esperam em campos de refugiados”. Porém, contemplando Maria que põe Jesus à disposição de todos, lembra-nos que o mundo e a vida de todos só melhoram “se nos colocamos à disposição dos outros, sem esperar que eles comecem a fazê-lo”, tornando-nos artesãos da fraternidade”, para “poderemos tecer os fios de um mundo dilacerado pelas guerras e pela violência”.

É em face do mistério exposto no presépio e no contexto dos dramas que atravessam a humanidade que se situa o “V Dia Mundial da Paz”, que entende a paz como “dom do alto e fruto dum compromisso comum” (vd mensagem papal, 1).  Como dom que é, devemos implorá-la porque sozinhos não somos capazes de o alcançar e guardar, antes devemos ter um coração que receba o Príncipe da Paz e cultive a mesma paz. Porém, tal como se recolhe da natureza do mistério do Natal, o dom postula como correspondência o nosso compromisso empenhado, inequívoco e solidário para com o dom, que é, no caso vertente, a paz. E, como compromisso, ela exige de cada um de nós “o primeiro passo” e pede-nos “gestos específicos”. E, nestes, inclui-se necessariamente “a atenção aos últimos”, a promoção da “justiça”, a “coragem do perdão, que apaga o fogo do ódio”, bem como “uma visão positiva”: olhar sempre – “na Igreja como na sociedade” – não “o mal que nos divide”, mas “o bem que nos pode unir”. Não dá acovardar-se e reclamar, mas “arregaçar as mangas para construir a paz” e, ao mesmo tempo, invocar a Mãe de Deus e Rainha da Paz, para que “obtenha concórdia para os nossos corações e para o mundo inteiro” e dotar a Igreja de um rosto eminentemente materno, avesso à altivez.

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Após a recitação do Angelus, Francisco sublinhou que o Dia Mundial da Paz fora iniciado por São Paulo VI em 1968. E, no quadro das saudações a vários grupos, salientou e agradeceu as diversas iniciativas em prol da paz e mencionou a encíclica “Pacem in Terris”, de São João XXIII, hoje “mais atual que nunca”.  

Entretanto, retomou os três elementos para a construção da paz que frisou na mensagem deste ano: o diálogo entre as gerações, a educação e o trabalho – sem os quais “falta a base”. 

De facto, num mundo dominado pela pandemia, que tem causado muitos problemas, “alguns tentam fugir da realidade refugiando-se em mundos privados e outros enfrentam-na com violência destrutiva”. O antídoto para estas reações é o diálogo intergeracional. Promover entre as gerações “ouvir o outro, confrontar-se, concordar e caminhar juntos” é “cultivar o solo árido e árido do conflito e da exclusão para cultivar as sementes da paz duradoura e compartilhada”.

Na verdade, a crise global mostra-nos que “o encontro e o diálogo entre as gerações é o motor duma política saudável, que não se contenta em gerir a situação existente com remendos ou soluções rápidas”, mas “é oferecida como meio eminente do amor ao outro, na busca de projetos compartilhados e sustentáveis”.

No atinente à instrução e educação, observa o Papa que, significando uma despesa em vez de um investimento, o orçamento para instrução e educação diminuiu significativamente em todo o mundo nos últimos anos. No entanto, a instrução e a educação “constituem os principais vetores do desenvolvimento humano integral”, pois, como “alicerces duma sociedade civil coesa, capaz de gerar esperança, riqueza e progresso”, “tornam a pessoa mais livre e responsável e são indispensáveis ​​para a defesa e promoção da paz”. Em contraponto, “os gastos militares têm aumentado”, ultrapassando o nível registado no final da “guerra fria”.

Assim, urge que os decisores adotem políticas económicas que prevejam uma mudança na relação entre o investimento público em educação e os fundos reservados para armamentos, bem como urge enveredar por um processo irreversível de desarmamento e cuidado mais afincado da saúde, da escola, das infraestruturas e do território, entre outros.

Mais quer o Pontífice que o investimento em educação seja acompanhado dum compromisso consistente com a promoção de uma cultura do cuidado, a qual “diante das fraturas da sociedade e da inércia das instituições, pode tornar-se a linguagem comum que rompe barreiras e constrói pontes”; e pretende um “pacto que promova a educação para a ecologia integral segundo um modelo cultural de paz, desenvolvimento e sustentabilidade, centrado na fraternidade e na aliança do ser humano com o meio ambiente”. Com efeito, para Francisco, “investir na instrução e na educação das novas gerações é o principal caminho que as leva, por uma preparação específica, a ocupar com proveito um lugar adequado no mundo do trabalho”.

E, no que ao trabalho diz respeito, o Pontífice considera o trabalho “um fator indispensável na construção e manutenção da paz”, pois, sendo “expressão de si e dos próprios dons” e “compromisso, esforço, colaboração com os outros, “é o lugar onde aprendemos a oferecer o nosso contributo para um mundo mais habitável e belo”.  

Apontando que a situação no mundo do trabalho já enfrentava múltiplos desafios, mas que foi agravada pela pandemia, evoca as perspetivas dramáticas que se abatem sobre os jovens que pretendem ingressar no mercado profissional e nos adultos que caíram no desemprego: por via dos milhões de atividades económicas e produtivas falidas; da vulnerabilidade dos precários; do escondimento, por parte da consciência pública e política, dos que desenvolvem serviços essenciais; da regressão dos programas de aprendizagem e educacionais causada pelo ensino à distância; e do efeito devastador da falta ou insuficiência de legislação adequada que afeta os migrantes – o que produz efeitos perversos ao nível do conflito, da miséria e do crime.

Ora, o trabalho, diz o Papa, “é a base sobre a qual a justiça e a solidariedade são construídas em cada comunidade”, não se devendo, pois, “buscar que o progresso tecnológico substitua cada vez mais o trabalho humano, com o qual a humanidade se prejudicaria”, já que “o trabalho é uma necessidade, faz parte do sentido da vida na terra, é um caminho de amadurecimento, de desenvolvimento humano e de realização pessoal”, que ninguém pode tolher.

Enfim, tudo isto se conseguirá se todos aqueles que veem o presépio se tornarem testemunhas do presépio e, acolhendo o dom da paz, se tornarem seus arautos e construtores comprometidos e corajosos. O Natal postula a Paz como consequência. Que temos andado a fazer do Natal?

2022.01.01 – Louro de Carvalho

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