Quem o
apregoa é o Papa Francisco na sua mensagem para este “LV Dia Mundial da Paz”, datada de 8 de dezembro de 2021, asserção
que reiterou neste 1.º dia de 2022, após a oração mariana do Angelus com os fiéis, peregrinos e
visitantes que ocupavam a Praça de São Pedro.
Porém, não
devemos esquecer que a paz enquanto dom de Deus se expõe no mistério do Natal
que nos incita a adotar o perfil dos pacíficos, os chamados filhos de
Deus.
O mistério
expõe-se na linha da simplicidade, da verdade e da alegria. E, neste âmbito, o
Papa, na homilia da Missa da Solenidade de Santa Maria Mãe de Deus, que
preenche este 1.º dia do novo ano, salienta que os pastores encontram “Maria,
José e o menino deitado na manjedoura” (Lc 2,16), manjedoura que se arvora em “sinal
de alegria” ao confirmar o que os pastores souberam pelo anjo (cf 2,12), e constitui a prova de que Deus
está junto deles, pois a manjedoura é-lhes bem familiar. De igual modo, a
manjedoura é sinal de alegria para nós, pois Jesus, nascendo pequeno e pobre,
toca-nos o coração, incute-nos amor em vez de temor e pré-anuncia-nos que Ele
Se fará nosso alimento. E a sua pobreza, sem berço, é boa notícia para todos,
especialmente os marginalizados, os rejeitados, para quem não conta no mundo.
Não obstante,
o nascimento do filho nestas condições significou o encargo de arcar com o
escândalo da falta de berço e o inevitável recurso à manjedoura, o que parece
desdizer do anúncio que Maria recebera do anjo muito antes dos pastores:
“Hás
de conceber no teu seio e dar à luz um filho, ao qual porás o nome de Jesus.
Será grande e vai chamar-Se Filho do Altíssimo. O Senhor Deus vai dar-Lhe o
trono de seu pai David” (Lc 1,31-32).
E, tendo de O
reclinar numa manjedoura para animais, pergunta-se desconsoladamente “como
harmonizar o trono do rei e a pobre manjedoura” ou “como conciliar a glória do
Altíssimo e a miséria dum estábulo”. Considera o Pontífice que não seria
censurável Maria lamentar-Se daquela desolação inesperada. Porém, Ela não perde
a coragem, não Se queixa e, em silêncio, opta por uma saída diversa das nossas:
“Quanto
a Maria, guardava todas estas coisas, meditando-as no seu coração” (Lc 2,19).
Enquanto os
pastores e o povo contam a todos o que viram e ouviram – o anjo apareceu aos
pastores no meio da noite dizendo palavras sobre o Menino e o povo admirava-se
ao ouvir estas coisas (cf
Lc 2,18) –, Maria
aparece pensativa: “guarda e medita no coração”. São atitudes que se podem
encontrar em nós: “a narração e a maravilha dos pastores recordam a nossa
condição nos primeiros tempos da fé”, que nos leva alegrarmo-nos “pela novidade
de Deus que entra na vida, enchendo todos os seus aspetos dum clima de
maravilha”; e “a atitude meditativa de Maria é a expressão duma fé madura,
adulta, não inicial, duma fé que não é recém-nascida, duma fé que se
tornou geradora”. Maria encontra-Se no estábulo de Belém. E é aí
que dá Deus ao mundo. E, se outros, ante o escândalo da manjedoura, seriam
tomados pelo desconsolo, Ela “guarda meditando”. Por isso, a Mãe de Deus ensina a tirar partido da colisão
entre as expectativas e a realidade, o que Bergoglio denomina de “caminho
estreito para chegar à meta, [que] é a cruz sem
a qual não se ressuscita”, ou “um parto doloroso, que dá vida a uma fé mais
madura”.
E o Papa
ensina como realizar a conciliação entre a expectativa e realidade: fazendo
como fazia Maria, “guardando e meditando”. Ela não rejeita o que acontece, antes guarda no coração
quanto “viu e ouviu”: o belo e o difícil de aceitar, como “o perigo que correu
aparecendo grávida antes do casamento” e a “desolação do estábulo onde deu à
luz”. E o Papa sublinha:
“Não
seleciona, mas guarda. Acolhe a realidade como vem, não tenta camuflar,
maquilhar a vida; guarda no coração.”.
Depois, vem a
ênfase da meditação produzindo “o entrelaçamento das coisas”, ou seja, “Maria
compara experiências diferentes, encontrando os fios ocultos que as interligam”.
Orando, “interliga as coisas lindas e as
coisas duras; não as mantém separadas, mas une-as”. Por isso, o Papa A
exalta como “a Mãe da catolicidade”, explicando:
“Maria
é católica por isto: porque une, não separa. E assim apreende o sentido pleno,
a perspetiva de Deus. No seu coração de mãe, compreende que a glória do
Altíssimo passa pela humildade; acolhe o plano da salvação, segundo o qual Deus
devia descansar numa manjedoura. Vê o Menino divino frágil e tiritando de frio,
e acolhe o maravilhoso entrelaçamento divino de grandeza e pequenez. É assim
que Maria guarda: meditando.”:
Este olhar
inclusivo, que supera as tensões, é o olhar das mães, que não separam, mas
guardam e assim fazem crescer a vida; um olhar concreto, que não se condiciona
pelo desconsolo, nem se paralisa ante os problemas, mas “coloca-os num
horizonte mais amplo”. E o Pontífice observa que “Maria continua assim até ao
Calvário, meditando e guardando”, para assegurar que “é isto que as mães fazem:
sabem superar obstáculos e conflitos, sabem infundir a paz”, visto que sabem guardar
e “manter os fios da vida todos juntos”. Por isso, com Maria e com as outras
verdadeiras mães, há que descobrir “a necessidade de pessoas capazes de tecer
fios de comunhão, que contrastem com os numerosos fios de arame farpado das
divisões”.
Vincando, na
sua homilia da Missa da Solenidade, na Basílica de São Pedro, que o novo ano se
inicia sob o signo da Mãe de Deus, o Papa garante que “o olhar materno é o
caminho para renascer e crescer”, pois as mães, as mulheres, “olhando com o
coração”, “olham o mundo não para o explorar, mas para que tenha vida”. E,
assim, “conseguem manter juntos os sonhos e a realidade concreta, evitando as
derivas do pragmatismo assético e da abstração”. Neste sentido, o Santo Padre
transfere este olhar do coração para a Igreja, que é mãe, pelo que “não podemos
encontrar o lugar da mulher na Igreja sem a espelhar neste coração de
mulher-mãe”. Por consequência, “enquanto as mães dão a vida e as mulheres
guardam o mundo”, o Papa exorta a que nos empenhemos todos na promoção das mães
e na proteção das mulheres, pois, no teatro trágico da violência existe contra
as mulheres, é preciso compreender que “ferir uma mulher é ultrajar a Deus, que
tomou duma mulher a humanidade”, não a tendo tomado dum anjo, nem a tendo criado
diretamente. Ora, “tal como duma mulher, a Igreja-mulher toma a humanidade dos
filhos” – vinca Francisco, o Pastor que ousa pôr o início do Ano Novo “sob a
proteção desta mulher, a Santa Mãe de Deus, que é nossa mãe”, rogando que a
aclamada Santa Mãe de Deus pelo Concílio de Éfeso, “nos ajude a guardar e
meditar tudo, sem ter medo das provações, na jubilosa certeza de que o Senhor é
fiel e sabe transformar as cruzes em ressurreições”.
***
Na alocução
que fez ao meio-dia com quem estava na Praça de São Pedro, Francisco reiterou a
confiança na Mãe de Deus no início do novo ano e recolheu, do Evangelho, o
encanto da manjedoura, olhando Maria, “a mãe terna e carinhosa”, que reclina
Jesus na manjedoura, podendo ver-se aqui um presente que nos é dado: “não tem o
Filho para Si, mas apresenta-O a nós”; não só O segura nos braços, mas
expõe-No na manjedoura “para nos convidar a olhar para Ele, para recebê-Lo e
adorá-Lo”. Assim se exprime a maternidade de Maria: “sempre dando o
Filho, apontando para o Filho, nunca permanecendo o Filho como algo seu”.
Pondo-O ante
os nossos olhos, sem dizer palavra, transmite a mensagem de que “Deus está
perto, ao nosso alcance”, não com a força do poder, mas “com a fragilidade de
quem pede para ser amado” e “nos olha de baixo como um irmão” e “como um filho”.
E Jesus – diz o Pontífice – “nasce pequeno e necessitado” para ninguém se
envergonhar de si mesmo e para, quando experimentarmos a nossa fraqueza e
fragilidade, podermos “sentir Deus ainda mais perto, porque assim Ele Se nos
apresentou a nós, fraco e frágil”, já que “Ele é o Deus-filho que nasce para
não excluir ninguém” e “fazer com que todos nos tornemos irmãos e irmãs.”
Ora, tempos ainda
“incertos e difíceis devido à pandemia”, Francisco anota que muitos “se
assustam com o futuro e se preocupam com as situações sociais, os problemas
pessoais, os perigos advindos da crise ecológica, das injustiças e dos
desequilíbrios económicos planetários” e pensa “nas jovens mães e seus filhos que
fogem de guerras e fomes ou esperam em campos de refugiados”. Porém, contemplando
Maria que põe Jesus à disposição de todos, lembra-nos que o mundo e a vida de
todos só melhoram “se nos colocamos à disposição dos outros, sem esperar
que eles comecem a fazê-lo”, tornando-nos artesãos da fraternidade”, para “poderemos
tecer os fios de um mundo dilacerado pelas guerras e pela violência”.
É em face do
mistério exposto no presépio e no contexto dos dramas que atravessam a
humanidade que se situa o “V Dia Mundial
da Paz”, que entende a paz como “dom do alto e fruto dum compromisso comum”
(vd mensagem papal, 1). Como dom que é, devemos implorá-la
porque sozinhos não somos capazes de o alcançar e guardar, antes devemos ter um
coração que receba o Príncipe da Paz e cultive a mesma paz. Porém, tal
como se recolhe da natureza do mistério do Natal, o dom postula como
correspondência o nosso compromisso empenhado, inequívoco e solidário para com
o dom, que é, no caso vertente, a paz. E, como compromisso, ela exige de cada
um de nós “o primeiro passo” e pede-nos “gestos específicos”. E, nestes,
inclui-se necessariamente “a atenção aos últimos”, a promoção da “justiça”, a “coragem
do perdão, que apaga o fogo do ódio”, bem como “uma visão positiva”: olhar
sempre – “na Igreja como na sociedade” – não “o mal que nos divide”, mas “o bem
que nos pode unir”. Não dá acovardar-se e reclamar, mas “arregaçar as
mangas para construir a paz” e, ao mesmo tempo, invocar a Mãe de Deus e Rainha
da Paz, para que “obtenha concórdia para os nossos corações e para o mundo
inteiro” e dotar a Igreja de um rosto eminentemente materno, avesso à altivez.
***
Após a
recitação do Angelus, Francisco
sublinhou que o Dia Mundial da Paz
fora iniciado por São Paulo VI em 1968. E, no quadro das saudações a vários
grupos, salientou e agradeceu as diversas iniciativas em prol da paz e
mencionou a encíclica “Pacem in Terris”,
de São João XXIII, hoje “mais atual que nunca”.
Entretanto,
retomou os três elementos para a construção da paz que frisou na mensagem deste
ano: o diálogo entre as gerações, a educação e o trabalho – sem os quais “falta
a base”.
De facto, num
mundo dominado pela pandemia, que tem causado muitos problemas, “alguns tentam
fugir da realidade refugiando-se em mundos privados e outros enfrentam-na com
violência destrutiva”. O antídoto para estas reações é o diálogo
intergeracional. Promover entre as gerações “ouvir o outro, confrontar-se,
concordar e caminhar juntos” é “cultivar o solo árido e árido do conflito e da
exclusão para cultivar as sementes da paz duradoura e compartilhada”.
Na verdade, a
crise global mostra-nos que “o encontro e o diálogo entre as gerações é o motor
duma política saudável, que não se contenta em gerir a situação existente com
remendos ou soluções rápidas”, mas “é oferecida como meio eminente do amor ao
outro, na busca de projetos compartilhados e sustentáveis”.
No atinente à
instrução e educação, observa o Papa que, significando uma despesa em vez de um
investimento, o orçamento para instrução e educação diminuiu significativamente
em todo o mundo nos últimos anos. No entanto, a instrução e a educação “constituem
os principais vetores do desenvolvimento humano integral”, pois, como “alicerces
duma sociedade civil coesa, capaz de gerar esperança, riqueza e progresso”, “tornam
a pessoa mais livre e responsável e são indispensáveis para a defesa e
promoção da paz”. Em contraponto, “os gastos militares têm aumentado”,
ultrapassando o nível registado no final da “guerra fria”.
Assim, urge
que os decisores adotem políticas económicas que prevejam uma mudança na
relação entre o investimento público em educação e os fundos reservados para
armamentos, bem como urge enveredar por um processo irreversível de
desarmamento e cuidado mais afincado da saúde, da escola, das infraestruturas e
do território, entre outros.
Mais quer o
Pontífice que o investimento em educação seja acompanhado dum compromisso consistente
com a promoção de uma cultura do cuidado, a qual “diante das fraturas da
sociedade e da inércia das instituições, pode tornar-se a linguagem comum que
rompe barreiras e constrói pontes”; e pretende um “pacto que promova a educação
para a ecologia integral segundo um modelo cultural de paz, desenvolvimento e
sustentabilidade, centrado na fraternidade e na aliança do ser humano com o
meio ambiente”. Com efeito, para Francisco, “investir na instrução e na
educação das novas gerações é o principal caminho que as leva, por uma
preparação específica, a ocupar com proveito um lugar adequado no mundo do
trabalho”.
E, no que ao trabalho
diz respeito, o Pontífice considera o trabalho “um fator indispensável na
construção e manutenção da paz”, pois, sendo “expressão de si e dos próprios
dons” e “compromisso, esforço, colaboração com os outros, “é o lugar onde
aprendemos a oferecer o nosso contributo para um mundo mais habitável e belo”.
Apontando que
a situação no mundo do trabalho já enfrentava múltiplos desafios, mas que foi
agravada pela pandemia, evoca as perspetivas dramáticas que se abatem sobre os
jovens que pretendem ingressar no mercado profissional e nos adultos que caíram
no desemprego: por via dos milhões de atividades económicas e produtivas
falidas; da vulnerabilidade dos precários; do escondimento, por parte da consciência
pública e política, dos que desenvolvem serviços essenciais; da regressão dos
programas de aprendizagem e educacionais causada pelo ensino à distância; e do
efeito devastador da falta ou insuficiência de legislação adequada que afeta os
migrantes – o que produz efeitos perversos ao nível do conflito, da miséria e
do crime.
Ora, o
trabalho, diz o Papa, “é a base sobre a qual a justiça e a solidariedade são
construídas em cada comunidade”, não se devendo, pois, “buscar que o progresso
tecnológico substitua cada vez mais o trabalho humano, com o qual a humanidade
se prejudicaria”, já que “o trabalho é uma necessidade, faz parte do
sentido da vida na terra, é um caminho de amadurecimento, de desenvolvimento
humano e de realização pessoal”, que ninguém pode tolher.
Enfim, tudo
isto se conseguirá se todos aqueles que veem o presépio se tornarem testemunhas
do presépio e, acolhendo o dom da paz, se tornarem seus arautos e construtores
comprometidos e corajosos. O Natal postula a Paz como consequência. Que temos
andado a fazer do Natal?
2022.01.01 – Louro de Carvalho
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