segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Os bens messiânicos primam pela quantidade e pela qualidade

 

Jesus, o Messias de Deus, veio para que tenhamos a vida e a tenhamos em abundância (cf Jo 10,10). E de Jesus diz João Batista: “Eis o Cordeiro de Deus, o que tira o pecado do mundo(Jo 1,29).

Já por aqui podemos entrever a quantidade (vida em abundância) e a qualidade (ver tirado o pecado). Convém, entretanto, anotar que já o ter vida é fonte de qualidade. Por outro lado, no reforço da qualidade da missão do Messias, é de registar que não se trata de tirar somente os pecados como atos do ser humano, mas o pecado como raiz e estrutura da implantação do mal que assola o mundo. Com efeito, no texto grego lê-se “ho aírôn tên hamartían (o pecado, no singular) toû kósmou”. Assim se vê quão artificial é a discussão litúrgica da tradução do “qui tollis peccata mundi”.

Porém, a liturgia do 2.º domingo do Tempo Comum no Ano C apresenta a imagem do casamento para exprimir de forma privilegiada a relação de amor que Deus (o esposo) firmou com o Povo (a esposa), enfim, a forma sublime da revelação do amor de Deus que merece ser correspondido. E Cristo veio estabelecer como bem messiânico de excelsa qualidade e fonte dos demais bens a renovação e o reforço da Aliança.

A 1.ª leitura (Is 62,1-5) define o amor de Deus como o amor inquebrável e eterno, nunca desmentido, que renova continuamente a relação e transforma totalmente a esposa, sejam quais forem as suas falhas passadas – amor em que se espelha a alegria de Deus. 

O texto integra o Tritoisaías (caps. 56-66 de Isaías) – coleção de textos anónimos, redigidos em Jerusalém nos séculos VI e V a.C., na época pós-exílica, embora alguns considerem poderem ser do Deuteroisaías, pelos pontos de contacto do poema com os capítulos 49, 51, 52 e 54).

Ainda se notam na cidade as marcas da destruição. Os poucos habitantes vivem em condições de extrema pobreza, perseguidos pelo fantasma da humilhação, acossados pelos inimigos, esperando a restauração do Templo e sonhando com uma Jerusalém nova, cheia de filhos e em paz.

É indiscutível que Jerusalém, a esposa, abandonou o Senhor e correu atrás de outros deuses. Mas agora, em vez da reconciliação da esposa e do esposo (como surge noutros textos proféticos), celebram-se novas núpcias. É evocada a situação antiga de Jerusalém (“abandonada”, “devastada”), sendo a grande preocupação do profeta vincar o rejuvenescimento operado por Deus na esposa. É o amor de Deus, novo e inesgotável que, sem se mostrar marcado pelo passado, desposa a cidade/noiva e passa a chamar-lhe “minha preferida”! É esse amor nunca quebrado que rejuvenesce e revigora a relação, possibilita o novo casamento e que e transforma a esposa infiel em coroa esplendorosa, em “diadema real” que brilha nas mãos do rei/Deus. E isto é motivo da alegria de Deus pelo refazer da relação. Na verdade, o Deus da Aliança quer, com toda a força do amor, fazer caminho ao lado do Povo e só está satisfeito quando o homem aceita esse amor que Deus quer partilhar e que enche o coração do homem de paz, vida e felicidade.

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No texto do Evangelho (Jo 2,1-11) temos uma forma de início da vida pública de Jesus diversa dos sinóticos: não na sinagoga de Nazaré ou na de Cafarnaum ou vagamente na Galileia, mas em bodas nupciais, mas também em plena Galileia (Caná), região confinante com povos pagãos.

No entanto, já tinha selecionado discípulos, que estavam com Ele, como tinha consigo a mãe. Enfim, estavam todos a participar nas bodas. A festa tinha de ser grande e plena. É o cenário de aliança, sinal que mostra o essencial do programa de Jesus: frisar aos homens o Pai que os amam e os convoca para a alegria e a felicidade em plenitude.

O texto em referência integra a “secção introdutória” do 4.º Evangelho (Jo 1,19-3,36), em que se sucede um conjunto de cenas de contínuas entradas e saídas de personagens, com vista a apresentar Jesus e o seu programa. O evangelista declara explicitamente (cf Jo 2,11) que o episódio é da categoria dos “signos” (“sêmeíôn”: usa o termo “sêmeîon”, sinal, e não “thaûma”, milagre). São ações simbólicas ou indicadores que nos convidam a procurar, para lá do episódio concreto, uma realidade mais profunda para que aponta o facto narrado. O mais importante não é ter Jesus transformado a água em vinho, mas saber o seu programa: inundar a relação entre Deus e o homem com o vinho da alegria, do amor e da festa.

O pano de fundo é um casamento. O casamento é um quadro onde se reflete a relação de amor entre Deus e o seu Povo. Estamos, pois, no contexto da aliança entre Israel e o seu Deus.

A falta do vinho em Caná mostra que na aliança com Deus chegou a faltar o vinho da alegria e do amor; e o homem, o povo, mergulhou na água salobra ou se estatelou na aridez da terra.

O vinho, elemento indispensável na boda, é símbolo e fruto do amor entre o esposo e a esposa (cf Ct 1,2;4,10;7,10;8,2). A propósito, é de referir que Isaías compara a aliança à vinha plantada pelo Senhor, que não produziu frutos (cf Is 5,1-7). E a aliança firma-se no vinho e na música, como se faz a festa para haja alegria (cf Sir 40,20; Ecl 10,19). Mas a realidade da antiga Aliança tornou-se relação seca, sem alegria, sem amor e sem festa, longe do encontro amoroso entre Israel e o Deus.

Esta aliança estéril e falida é representada pelas “seis talhas de pedra destinadas à purificação dos judeus” (“líthinai hydríai héx katà tòn katharismòn tôn iudaíôn”). O número 6 significa a imperfeição, a incompletude; a pedra remete para as tábuas de pedra da Lei do Sinai e para os corações de pedra de que falava Ezequiel (cf Ez 36,26); a menção da purificação evoca os ritos e exigências da Lei, que revelavam um Deus suscetível, zeloso, impositivo e distante, enfim um Deus temível, mas pouco propício a que o homem O amasse. O vazio das talhas mostra que todo o aparato da aplicação da Lei era ineficaz: não servia para aproximar o homem de Deus, mas para o afastar.

Detendo-nos nas personagens pela ordem de entrada em cena, vemos, antes de mais, a “mãe”, a mãe de Jesus (“hê mêtêr toû Iêsoû”): “estava lá”, como se pertencesse à boda; e é ela que se apercebe do intolerável: “não têm vinho” (“oînon ouk ékhousin”: Jo 2,3). Representa o Povo fiel, que já se apercebera da realidade e esperava que o Messias mudasse a situação.

A seguir, menciona-se Jesus (“ho Iêsoûs”), a quem o Israel fiel (a “mulher”/mãe) se dirige para dar nova vida à aliança caduca. Porém, o Messias anuncia que é preciso deixar cair a aliança onde falta o vinho do amor – “Que temos nós com isso, mulher?” – (“Ti emoì kaì soí, gýnai; – Jo 2,4”). A obra não é preservar as instituições antigas, mas apresentar uma radical novidade.

São, depois, simplesmente mencionados os discípulos dele (“hoi mathêtaì autoû”), cujo desempenho se vê apenas no final da cena. Em contrapartida, releva-se a presença e a ação dos serventes (“diacónôn”). A mãe de Jesus, apesar da resposta desconcertante de Jesus, aconselha-os: “Tudo o que Ele vos disser fazei-o(“hó ti àn légê hymîn, poiêsate”: Jo 2,6). E Jesus (“ho Iêsoûs”) mandou-lhes encher de água as 6 talhas de pedra e levá-las ao chefe de mesa (“ho arkhitríklinos”) – o que fizeram.

Temos, depois, o chefe de mesa, que simboliza os dirigentes judeus, comodamente instalados, que não veem (ou não querem ver) que a antiga aliança caducou: discute com o noivo, porque as coisas estão a funcionar ao contrário do habitual – discurso que há de repetir-se contra Jesus.

Os serventes (“diákonoi”) são os que colaboram com o Messias, dispostos a fazer tudo “o que Ele disser” (cf Ex 19,8) para que a “aliança” se concretize revitalizada.

Isto sucederá quando chegar a Hora: “Ainda não chegou a minha hora(“oúpô hékhei hê hôra mou”: Jo 2,4) – disse Jesus à mãe. A Hora de Jesus é o momento da morte na cruz, quando Jesus derramar sobre a humanidade essa lição do amor total de Deus. Este episódio das bodas de Caná não é a Hora, mas anuncia-a e deixa entrevê-la por antecipação. Revela simbolicamente o programa de Jesus: trazer à relação entre Deus e os homens o vinho da alegria, do amor e da festa – programa que Jesus cumprirá paulatinamente ao longo de toda a sua vida e que terá a sua plenitude no momento da Hora – da doação total por amor.

É de registar que, depois de ficar dito que os “seus discípulos creram Nele” (“epísteusan eis autòn hoi mathêtaì autoû”: Jo 2,11), desceu para cafarnaum Ele (Jesus), a sua mãe, os seus irmãos e os seus discípulos (cf Jo 2,12). Quero eu dizer, com base neste segmento textual, que, para a consecução da quantidade e da qualidade dos bens messiânicos são necessários: Jesus, como protagonista e centro de toda a atividade messiânica; a mãe (é preciso salientar a componente maternal do messianismo pela atenção, perspicácia e solicitude); os discípulos de Jesus (não de outrem); e os irmãos (não importa aqui a discussão sobre a índole dos irmãos de Jesus), pois, se a finalidade do envio do Messias é estabelecer a paternidade de Deus para com todos os homens, impõe-se a fraternidade universal. 

Por fim, há que salientar que o papel, eficiente, mas discreto dos servos no episódio de Caná, fica bem explícito no quadro oferecido pela 2.ª leitura (1Cor 12,4-11). Com efeito, pelos carismas (dons concedidos às pessoas para o bem de todos), manifesta-se o amor de Deus. Como sinais do seu amor, destinam-se ao bem da comunidade, pelo que não podem servir para uso exclusivo de alguns, mas têm de ser postos ao serviço de todos com simplicidade. E, na comunidade cristã, apesar da diversidade de carismas deve manifestar-se o amor que une Pai, Filho e Espírito Santo.

Os capítulos 12-14 da 1.ª Carta de Paulo aos Coríntios formam a secção consagrada ao uso dos carismas. “Carisma” é palavra tipicamente paulina (aparece 14 vezes nas cartas de Paulo e só uma vez no resto do NT) que, em sentido amplo, designa qualquer graça (“kháris”) ou dom concedido por Deus, independentemente do posto que a pessoa ocupa na comunidade eclesial. Em sentido restrito e técnico, significa dons especiais concedidos pelo Espírito a determinadas pessoas ou grupos em prol da comunidade.

Apesar de se destinarem ao bem da comunidade, os carismas podem ser mal usados. Por um lado, podem induzir a divinização da pessoa que os possui pondo-a em confronto com a comunidade; por outro, como nem todos possuem carismas extraordinários, é fácil serem considerados santos ou cristãos de segunda. Ora, a comunidade de Corinto estava preocupada com esta questão. Era uma comunidade com graves problemas de conflitos e de desarmonias onde as experiências carismáticas eram sobrevalorizadas em benefício próprio, criando individualismo e divisão.

Paulo enumera diferentes tipos de carismas, mas deixa bem que, apesar da diversidade, todos eles se reportam ao mesmo Deus, ao mesmo Senhor e ao mesmo Espírito. E, possuindo cada um dos crentes o Espírito, de diverso modo e medida, recebe carismas. O que é fundamental é que os carismas não se usem de forma egoísta, mas estejam sempre ao serviço do bem comum.

Não faz sentido discutir qual é o carisma mais importante ou que os possuidores de carismas se considerem iluminados e se confrontem com a comunidade ou, ainda, que se presuma haver cristãos de primeira e cristãos de segunda.

É o mesmo Deus uno e trino que a todos une; a comunidade tem de ser o espelho da comunidade divina, una trinitária, una e diversa.

Importa que no quadro e dinamismo do reino messiânico em prol da quantidade, bens distribuídos a rodos, esteja a diversidade, promotora da abundância e da qualidade, e que todos se posicionem na rota do serviço, ministério (“diakonía”), com vista à comunhão ou (“koinonia”). 

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Comentando este passo do Evangelho, Francisco sublinha que Jesus transformou água em vinho para a alegria dos esposos e destaca: “Este foi o primeiro dos sinais de Jesus... Assim manifestou a sua glória, e os seus discípulos creram nele” (Jo 2,11). Anota que João não fala de milagre, isto é, de facto poderoso e extraordinário que gera admiração, mas de sinal em Caná que despertou a fé dos discípulos. 

Segundo o Papa, na linha da escritura, sinal é um indicador do amor de Deus, que não chama a atenção para a força do gesto, mas para o amor que o provocou. Ensina-nos sobre o amor de Deus, que “é sempre próximo, terno e compassivo”. E o primeiro sinal surge quando os cônjuges estão em dificuldade no dia mais importante de suas vidas, faltando um elemento essencial, o vinho, com o risco de a alegria se extinguir entre críticas e insatisfação dos convivas. 

Maria vê o problema e discretamente o aponta a Jesus, que intervém sem clamor. Tudo acontece em silêncio. Jesus manda os servidores encherem as talhas com água, que se transforma em vinho. “É assim que Deus age, com proximidade, com discrição” – diz o Pontifice, assinalando que os discípulos entendem isto, vendo que Ele tornou a festa de casamento mais bonita e vendo o modo de agir de Jesus, o servir sem ser visto. Mais regista que, ninguém percebendo o que sucedeu, perceberam-no os serventes, para quem não há segredos, sendo deste modo que “o germe da fé se começa a desenvolver nos discípulos”, ou seja, eles acreditam que está presente em Jesus o amor de Deus.

Julga o Papa interessante que o primeiro sinal de Jesus não seja cura extraordinária ou prodígio no templo, mas gesto que vai colmatar uma necessidade simples e concreta de pessoas comuns, um milagre “na ponta dos pés”, discreto, silencioso. Ele está disposto a levantar-nos: e, se estivermos atentos aos sinais, o seu amor conquista-nos e tornamo-nos seus discípulos.

Mas Francisco aponta outra marca do sinal de Caná. O vinho do final das festas era e continua a ser o menos bom. Porém, Jesus fornece ao termo da festa o melhor vinho. Isto, porque Deus quer sempre o melhor para nós e a festa de Deus não pode perder qualidade, nem a qualidade pode ficar diluída na abundância. Ele quer que sejamos felizes e nada pede em troca. Jesus não cobrou nada àqueles noivos, nem sequer uma palavra de agradecimento. Sublinha o Papa que, “no sinal de Jesus não há lugar para segundos fins, para pretensões em relação aos esposos”, que “a alegria que Jesus deixa no coração é alegria plena e altruísta” e não “uma alegria diluída”.

Por fim, Francisco sugere o exercício de buscarmos na nossa memória “os sinais que o Senhor realizou em nossas vidas”, como descobrimos a sua ternura e proximidade e se estas nos tornaram mais discretos, ternos, próximos e alegres. E garante-nos que a Mãe sempre está presente e intercederá por nós, atenta e a ajudar-nos a “valorizar os sinais de Deus em nossas vidas”.

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O messianismo estende-se a todos, conta com todos e com a santidade toda de todos!

2022.01.16 – Louro de Carvalho

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