sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

O fenómeno dos eleitores-fantasma é erupção nos cadernos eleitorais

 

Os atos eleitorais para os órgãos do poder político cuja instalação depende do sufrágio direto dos cidadãos têm como suporte dos sujeitos ativos da eleição os cadernos eleitorais por freguesia ou união de freguesias e, no estrangeiro, por áreas consulares.

Tendo em conta que só podem ser eleitores os cidadãos maiores de 18 anos, à partida o número de eleitores deveria ser mais baixo que o dos cidadãos residentes no país, adicionando-se-lhes o número de eleitores portugueses residentes no estrangeiro devidamente recenseados eleitoralmente. 

Sucede, entretanto, que a metodologia e o momento do censo da população residente e habitação e o do recenseamento eleitoral não são os mesmos, embora ambos sejam obrigatórios. O censo da população e da habitação ocorre no primeiro ano de cada década pelo preenchimento de formulário com supervisão de agentes de recenseamento ou pela Internet, ao passo que o recenseamento eleitoral ocorre automaticamente aquando da emissão do cartão de cidadão e de acordo com o local de residência declarado pelo cidadão requisitante. Não obstante, persiste nos autos de recenseamento eleitoral um número significativo de recenseados antes desta metodologia, sobretudo o efetuado pela apresentação de cidadãos eleitores cujo bilhete de identidade é vitalício.

O certo é que as disparidades entre população residente no território nacional, a que se podem adicionar os portugueses residentes no estrangeiro, e a população recenseada dotada de capacidade eleitoral ativa existem, com vantagem para a última. É o que os politólogos e os comentadores denominam de fenómeno dos eleitores-fantasma. E a não expurgação destes dos cadernos eleitorais pode falsear a determinação do número de deputados elegíveis em cada círculo eleitoral, hiperbolizar a percentagem de abstencionistas e desdizer em parte as sondagens e projeções eleitorais, bem como surpreender os candidatos aos lugares a eleger em cada círculo eleitoral.

Dantes, imputava-se a culpa aos mortos e à lentidão da informação dos respetivos óbitos às comissões de recenseamento, vulgo juntas de freguesia, por parte das Conservatórias do Registo Civil; hoje a causa é também outra e parece residir, além dos mortos, nos emigrantes que se desleixam na atualização da residência e, consequentemente, do recenseamento eleitoral ou nas autarquias que têm acesso a algumas verbas em função do número de leitores recenseados na sua área,              

Seja como for, o fenómeno dos eleitores-fantasma, erupção que é velha e se arrasta no tempo, com valores especialmente altos em meados da década de 1990, neste ano de 2022, ultrapassa o milhão, ou seja, atinge o número de 1 143 604.

Na década de 1990, o número de recenseados era superior à população em idade de voto em cerca de 20%. Desde então a percentagem baixou, mas permanece quase sempre na faixa dos 10%. Nestes termos, retirando aos valores da abstenção a desconformidade por sobrestimação, os 51,4% de 2019, por exemplo, seriam só 41,4%, os 44,1% de 2015 passariam a 34,1%, os 41,9% de 2011 representariam 31,9%. E, no tempo em que dos cadernos eleitorais raramente se eliminavam os mortos, a abstenção, por exemplo, em 1991, de 32,6%, teria passado para perto ou para baixo dos 22%; e os 39% da abstenção de 1999 teriam sido 29% ou ainda menos.

Os 1 143 604 eleitores-fantasma, calculados para 2022, se olharmos para os resultados eleitorais de 2019, representam quase tantos eleitores como os que permitiram a BE, PCP-PEV, CDS-PP e PAN eleger, em conjunto, 40 deputados.

Segundo João Tiago Machado, porta-voz da CNE, o que justifica mais de milhão de eleitores-fantasma “é o facto de só existirem 1,5 milhões de eleitores recenseados no estrangeiro” quando “a nossa população na diáspora é muito superior a um milhão e meio”. E isto significa que grande parte dos emigrantes continua a usar, para efeitos de recenseamento, a morada que tem cá, talvez por apego à terra de nascimento, desleixo ou distanciamento em relação ao recenseamento. De facto, sucede que, aquando dos censos populacional e da habitação, como ninguém está presente nalgumas moradas procuradas em Portugal ou não foi preenchido e devolvido o respetivo formulário na carta que lhes fora enviada, os presumíveis habitantes acabam por não aparecer nos registos dos censos porque não vivia ninguém naquelas casas, pois as pessoas moram fora do país.

João Tiago Machado opina que se deveria retirar das contas, para melhor leitura, essa margem “de modo que se tenha uma noção exata da realidade, um retrato mais fiel”.

Para Marina Costa Lobo, doutora em Ciência Política pela Universidade de Oxford, investigadora principal do Instituto de Ciências Sociais-UL, está em causa “a qualidade da nossa democracia e a perceção errada, falseada, do sentido cívico dos portugueses”; e, como a distribuição de lugares de deputados por círculo eleitoral depende do recenseamento eleitoral, esta discrepância impede “uma discussão séria sobre a reforma do sistema eleitoral”, pois, “o conhecimento dos eleitores por círculo eleitoral pode ser um equívoco”, sobretudo se os eleitores-fantasma estiverem distribuídos desproporcionalmente por círculo eleitoral.

André Freire, professor catedrático do ISCTE-IUL e investigador do CIES-IUL, diz que tal volume de eleitores-fantasma é preocupante por criar artificialmente “elevados níveis de abstenção”, levando a pensar em abstenção estruturalmente alta, quando na verdade o não é. Alvitra que, além do problema de credibilidade, pode suscitar o da validade dos referendos. E diz que o problema é grave, pois, como se alargou a cidadania portuguesa e toda a gente é automaticamente inscrita nos cadernos, este fenómeno vai aumentar. Aponta que “a falta de interesse” dos políticos em resolver a questão, ou seja, a inércia de manter status quo, estará na “atribuição dos mandatos autárquicos” mercê do rácio que é tido em conta: o número de inscritos e não o número de habitantes.

Os politólogos Luís Humberto Teixeira e José António Bourdain, coautores de vários estudos de investigação com sobre o problema, identificam duas potenciais razões principais: “pessoas que foram para o estrangeiro, ao longo de anos, e que nunca atualizaram o seu recenseamento”; e “os mortos” inscritos cujo número foi decrescendo com “o cruzamento de dados”.

A atualização extraordinária dos cadernos eleitorais, de 1997 e 1998, lançada pelo governo de Guterres, deixou de fora contas que foram verificadas em 2001: meio milhão de mortos; e entre 200 e 300 mil emigrantes ilegalmente inscritos. Rui Pereira, então Secretário de Estado da Administração Interna, falava de “óbitos por eliminar” e de “emigrantes efetivamente residentes no estrangeiro”, o que dava empolamento no recenseamento eleitoral.

Em 2009, os dois politólogos referidos perceberam que, por exemplo, “Viana do Castelo e Madeira têm um deputado a mais e Porto e Setúbal um a menos”. Luís Mendes, então secretário-geral da Administração Interna, reconhecia haver 107 mil mortos que “não podiam ser descarregados” dos cadernos. Jorge Miguéis, diretor da área de administração eleitoral da DGAI (Direção-Geral da Administração Interna), que lembrava então os “200 mil nomes indevidos apagados dos cadernos e 600 mil eleitores tirados da clandestinidade”, avisava que o problema dos emigrantes “só poderia ser resolvido num Estado orwelliano, autoritário, onde se controlasse se as pessoas vivem ou não o tempo todo em Portugal”. Bourdain estimava que, nas legislativas de 2005 e 2009, só falando de mortos, havia um milhão de eleitores-fantasma. Em 2013, cerca de 10% dos cidadãos inscritos nos cadernos eleitorais de todo o país não votaram por terem morrido (a maioria) ou por terem emigrado. Em 2014, a DGAI admitia que a abstenção nas eleições europeias estava errada, sendo de 60% e não de 65%. Desta vez não eram os mortos a causa do problema, mas os emigrantes. Em 2015, Ireneu Barreto, representante da República na Madeira, avisava que a leitura da abstenção na região não podia ser linear: havia “cerca de 40 mil votantes-fantasma nos cadernos eleitorais”. E, em 2019, segundo a TSF, Vila Real, Açores e Bragança eram os círculos com mais fantasmas; Beja, Lisboa, Faro e Santarém estavam no polo oposto. A explicação era a de 2014: os emigrantes.

Bourdain, 10 anos antes, referia o não interesse das autarquias na limpeza dos cadernos porque recebem dinheiro do OE consoante o número de inscritos, pelo que algumas (do interior), “se apagassem os mortos, ficavam sem dinheiro nenhum”. E deviam ter sido apagados, pois foi esse o objetivo da atualização dos cadernos a partir de 1997 e da restante legislação até 2018.

Ora, se a inscrição nos cadernos eleitorais é automática e a limpeza dos falecidos também o é através do cruzamento de informação entre a base de dados do Recenseamento Eleitoral e os serviços dos Registos e Notariado e se ainda há falhas quanto à eliminação de mortos, é porque ainda há processos manuais e/ou porque há inércia nalguns serviços.

Em fevereiro de 2020, havia 1925 eleitores com mais de 105 anos. E, nessa altura, 167 já estavam confirmados como óbitos, 89 “inconclusivos” e 26 já tinham feito prova de vida. A explicação está conexa com a existência de muitos bilhetes de identidade vitalícios e porque, sobretudo em 1975-1976, houve pessoas que se inscreveram nas comissões recenseadoras sem terem documento de identificação, apresentando só assentos de nascimento (Até 2008 os cidadãos inscreviam-se apresentando-se à comissão de recenseamento da sua área de residência; e, se mudavam de residência, apresentavam-se à nova comissão, que notificava a anterior para descarga do seu registo de eleitor). E a falta desse documento impede que a Administração Eleitoral e os Registos e Notariado possam fazer uma identificação unívoca de cada vez que há a comunicação de óbito.

Para João Cancela e Marta Vicente (autores de “Abstenção e Participação Eleitoral em Portugal), a alteração de 2008, que induziu a “inscrição automática de indivíduos não recenseados”, para lá do aumento de novas inscrições, provocou o aumento da fidedignidade dos dados e da sua correspondência à realidade demográfica e geográfica do país. Porém, em 2011, analisando as disparidades entre eleitores indicados pela CNE e os contabilizados pelo INE, facilmente se depreendeu que o número de inscritos nos cadernos eleitorais superava largamente o número de residentes em idade de voto, disparidade não superada nas eleições legislativas de 2019. Marina Costa Lobo infere que os Censos 2021 mostram que nenhuma das reformas impediu que chegássemos a 2022 com mais do milhão de eleitores a mais.

Falando de números, é de registar os seguintes dados: há, para estas eleições, um total de 10 821 244 eleitores contra 10 344 802 pessoas constantes nos Censos 2021, isto é, uma diferença de 476 442; daquele número de eleitores, 926 312 estão recenseados no círculo eleitoral europeu e 595 478 estão recenseados no do resto do mundo, o que soma 1 521 790; calculando a diferença entre o número total de eleitores recenseados e os recenseados no estrangeiro, verifica-se uma diferença de 9 299 454, o que vem contrastar com o número de eleitores recenseados residentes em Portugal (8 155 850). Por outro lado, os Censos 2021 indicam a existência de 1 633 653 menores de 18 anos e de 555 299 de estrangeiros sem direito a voto, o que soma 2 188 952, número que, subtraído ao total de registados no Censos 2021, obtém a diferença de 8 155 850, que é o número de eleitores efetivamente residentes em Portugal, de que resulta o número de eleitores-fantasma em 1 143 604. Acresce referir que há 226 056 jovens, em território nacional, que podem votar pela primeira vez e que estão registados, no estrangeiro, 36 249 novos eleitores.

E é com estes números e a dita erupção sistémica, inda não expurgada, que os partidos se apresentam o eleitorado e o eleitorado escolherá os seus representantes no Parlamento, de que emanará o Governo a empossar pelo Presidente da República. É neste contexto numérico e no contexto de pandemia que somos instados a exercer o direito e a cumprir o dever cívico de votar.

2022.01.28 – Louro de Carvalho

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