domingo, 2 de janeiro de 2022

“Só pela educação é que vamos mudar o mundo”

 

É a jornalista Bárbara Wong quem o realça em entrevista à “Renascença e à “Ecclesia”, publicada neste dia 2 de janeiro e em que se debruça sobre os tópicos essenciais da Mensagem do Papa Francisco para o LV Dia Mundial da Paz assinalado no 1.º dia do ano.

Considerando “certeiros” e realistas os alertas do Santo Padre, não julga surpreendente a sua insistência em os orçamentos dos países, a nível mundial, não deverem estar tão voltados para as despesas militares, nomeadamente os armamentos, pois, como diz o Papa, “aumentaram as despesas militares, ultrapassando o nível registado no termo da Guerra Fria”, quando a opção deveria ser claramente “a instrução e a educação”, porque estes são os reais “motores da Paz”.

E a jornalista acha curioso o Pontífice fazer explicitamente a distinção entre instrução e educação, porque não raro estamos muito focados – sobretudo os professores – na instrução, no ensino dos conteúdos, havendo a escola de ser muito mais que isso, ou seja, promover e fazer “a educação e uma educação global”. Assim, é plausível a efetiva preocupação do Papa com esta temática, porque só através da educação é que “o mundo pula e avança”, como diz o poeta.

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Não resisto, no entanto, a discordar da jornalista quando aponta os professores como os principais responsáveis pelo enfoque no fator “instrução”. De facto, quem mais tem pressionado os professores pelo cumprimento dos programas, têm sido as estruturas administrativas e inspetivas do Ministério da Educação (ME) e a pressão da opinião pública, designadamente dos pais, do sistema de acesso ao ensino superior e da agenda neoliberal, que vêm induzindo os professores e os alunos ao treinamento da aquisição e consolidação dos conhecimento através de múltiplas e extensas baterias de testes e fichas de avaliação para garantir o acesso aos cursos superiores mais cotados na sociedade, no que ajudam imenso os rankings de escolas com base em exames nacionais, elaborados por jornais assentes em dados fornecidos pelo ME. Quando parece que a escola não garante o êxito instrucional desejado, vêm em socorro das pretensões paternais os centros de explicações e apoio (ou o explicador individual, que faz os trabalhos) – alguns são verdadeiras empresas de caça ao dinheiro – muitos depois de piratearem orientações e testes em circulação na escola. E, se analisarmos o recheio dos programas das diversas disciplinas desde o 1.º ao 12.º ano, ficamos com a impressão de que o doseamento de conteúdos e o grau de dificuldade não estão compatíveis com os diferentes níveis etários. Parece que foram gizados para o aluno excelente que não é comum (nem o aluno médio) e, se calhar, nem existe no universo português.

E é de acrescentar que, não raro, os pais nem conseguem educar os filhos para os valores, nem consentem que a escola o tente fazer, alegadamente porque os filhos não têm nada que se lhes aponte. Depois, embora os critérios de avaliação contemplem obrigatoriamente a apreciação das atitudes e comportamentos que significam valores, estes parâmetros costumam servir para salvar que tenha êxito académico mais periclitante.

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Mas, continuando com as declarações de Bárbara Wong, é de realçar que não tem a ideia de que, em Portugal a educação é vista como despesa e não como investimento. E afasta-se da crítica frequente dos professores ao ME no atinente sobretudo a “salários e carreiras”, para frisar que “tem havido um investimento na educação, sobretudo em formas diferentes de estar na escola”, no que estou de acordo se tivermos em conta o que está plasmado nos normativos, bem como se apreciarmos tantos projetos que pululam no meio escolar e paraescolar, obviamente a par de muitos que só têm interesse para a captação de verbas e ocupação diferente de alguns agentes educativos – e tudo afunilando no exame final que só contempla alguma as disciplinas e só no quadro do currículo nacional. Entretanto, é de acentuar, em minha opinião, que, sem salários condicentes com a missão do professor e sem um razoável horizonte de carreira docente, fica um importante setor da educação sem o conveniente investimento.

Como assegura a jornalista, “a escola está cada vez mais aberta à comunidade e tem havido uma série de programas que trazem a comunidade para dentro da escola”, e é pertinente a distinção que Francisco faz entre instrução e educação, porque “infelizmente as crianças chegam à escola com muitos défices”. Na verdade, sempre as condições socioeconómicas dos alunos foram e são um fator relevante no insucesso escolar, que leva a escola a falhar no seu papel de elevador social, o que a pandemia veio agravar. De facto, como acentua Bárbara Wong, “as crianças com menos acesso à Internet em casa, não tendo computadores (…), foi muito mais complicado para essas crianças e para esses pais”. Até o isolamento da pandemia é diferente numa casa com duas casas de banho ou numa só com uma casa de banho. Depois, aumentaram as desigualdades no aspeto educativo a partir de casa: havia miúdos que tinham um Smartphone, mas não sabiam trabalhar com ele, não o sabiam pôr ao serviço da aprendizagem. E, em relação a Smartphones, para ricos ou pobres, o uso dos telefones é sobretudo recreativo e não pedagógico…

A referência na mensagem papal de que uma das consequências da pandemia foram as aulas à distância, que em muitos casos causaram “retrocesso na aprendizagem” também tem a ver com o caso português. Com efeito, “ninguém estava preparado para isto”. E a jornalista insiste em apontar os professores, agora na iliteracia digital: muitos “têm uma enorme dificuldade em usar as novas tecnologias dentro da sala de aula, quanto mais à distância!”. Resta-me saber se os profissionais que sabem tanto destas coisas foram objeto de tanto desapoio na formação nestas áreas como os professores, que a fazem em regime pós-laboral e, muitas vezes, à sua custa… e sem a dispensa do habitual montão de fichas, grelhas, planos e relatórios decorrentes da atividade docente – letiva e não letiva.  

A este respeito, lembro-me de que, não há muito tempo, um jornal dava conta em caixa alta do défice de literacia dos professores do ensino básico e do secundário. É de questionar saber se os do ensino superior são, regra geral, mais capazes no digital. Não serão os fundos europeus disponibilizáveis para as instituições do ensino superior o móbil para estas promoverem ações de formação contínua junto dos docentes, com o conveniente pagamento? Se assim for, não precisavam de caluniar a classe docente; bastaria engrandecer a necessidade de mais e mais formação. Assim, os docentes sujeitam-se à formação a mata-cavalos e fora do horário laboral para podem progredir na carreira.

Não obstante, a analista faz justo elogio aos professores, porque foram obrigados a atualizar-se muito depressa de modo a poderem dar aulas à distância, mas não refere que tiveram de adaptar os seus equipamentos ou comprar equipamentos novos a expensas suas e com escassas instruções sobre o desempenho.

E, do trabalho à distância, que empobrece, acaba por dizer que também os jornalistas o tiveram de fazer, mas sentiram que “precisamos do outro, até para termos ideias e para desenvolvermos novas histórias”.

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Conexo com a educação está o “diálogo entre gerações”, que o Papa considera fundamental no atual contexto pandémico, advertindo que “as crises contemporâneas” revelam a “urgência” de aliança entre os idosos, os “guardiões da memória”, e os jovens, que são os que “fazem avançar a história”. E, interpelada sobre se em Portugal a pandemia fez mudar alguma coisa este diálogo entre gerações, a analista discorre:

A pandemia no início veio trazer ao de cima o melhor de nós. Dizíamos todos ‘vai ficar tudo bem’, era o lema. E, de facto, houve uma série de boas práticas e bons exemplos de jovens que se juntaram nos seus bairros para ajudar os mais velhos, porque não podiam sair nem ir às compras, e isso foi um apoio e foi um exemplo muito bom. Com o passar do tempo, isso para uns foi deixando de ser necessário, para outros permaneceu.”.

Ou seja, a princípio, pontificou a preocupação com o outro; depois, regredimos. A saída de “quarentenas, confinamentos e isolamentos” deixou-nos “menos empáticos” e com “menos paciência para o outro”. E isto deve levar-nos a refletir e a fazer uma mudança na nossa vida, “porque nós precisamos do outro para viver”.

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A terceira via para a construção da paz, segundo o Papa, é o trabalho. E Francisco sublinha os efeitos devastadores da pandemia, designadamente a falência de muitas atividades económicas, o aumento do desemprego e o agravamento da precariedade, para encarecer a urgência de “promover condições laborais decentes e dignas, orientadas para o bem comum e a salvaguarda da criação”. Observando que se trata dum alerta “muito certeiro”, a entrevistada anota que esta pandemia trouxe “mais fragilidade no mercado de trabalho”. E a chamada de atenção dirige-se sobretudo às empresas e aos governos para o compromisso de não se visar apenas o lucro, já que este “não pode ser o único critério-guia”, devendo as empresas “respeitar os direitos humanos” e “estar mais cientes do seu papel social”.

Questionada sobre se em vésperas de eleições legislativas a mensagem do Papa deveria ser lida com atenção por todos os que têm poder de decisão, a começar pelos políticos que se apresentam com ideários católicos, cristãos, Bárbara Wong sublinha que “há dimensões que ficam esquecidas”, pelo que Francisco lembra a Doutrina Social da Igreja, que não é coisa nova, mas algumas pessoas esquecem-se muito dos trabalhadores.

Registando que o Papa fala, preocupado, dos trabalhadores migrantes, a jornalista recorda a angústia que lhe deixou uma entrevista do presidente da Associação de Hotelaria de Portugal, dizendo que “a opção era ir buscar pessoas de países migrantes, mais frágeis, porque é mais fácil do que dar salários condignos aos nacionais”, para concluir: “enquanto houver empresários que pensam assim, é difícil olhar para o trabalho e respeitar os direitos humanos”.

Confrontada com a frequência com que se substitui “trabalhador” por “colaborador”, o que não é a mesma coisa, a jornalista é taxativa:

Não, nós não colaboramos, estamos a trabalhar efetivamente”.

Vindo a mensagem papal enfatizar os suprarreferidos alertas será importante que eles sejam acolhidos por quem tem poder de decisão, dada “a necessidade de fazer crescer uma renovada responsabilidade social, para que não estejamos só focados no lucro”.

Todavia, digo eu, embora haja e deva haver cristãos e católicos nos diversos partidos, os entrevistadores foram debalde despertar nos programas partidários um ideário cristão ou até católico. Na verdade, apesar de haver na praça um partido que se dizia democrata-cristão (Por onde é que isso já anda?), todos se acobertam à sombra dum Estado aconfessional ou mesmo laico. A opção é obviamente entre maior ou menor equilíbrio entre personalismo e socialismo, propriedade ou lucro e função social da propriedade ou da empresa; ou, então, coletivismo total e liberalismo absoluto ou ditadura à esquerda ou ditadura à direita. E se for só a apetência pelo poder ou a caça aos fundos comunitários? 

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Voltando ao tema da educação, os entrevistadores recordam que, em outubro 2020, Francisco lançou o ‘Pacto Educativo Global’, com investigadores e professores de várias áreas, convicto de que a educação é a “semente da esperança”. O Pacto procura sensibilizar para a justiça, a solidariedade, a ecologia integral e o combate à cultura do descarte. Interpelada, a jornalista diz:

Não é uma preocupação nova porque a questão do elevador social é muito importante. (…) Só investindo na instrução e educação, que esta é a chave-mestra para podermos ocupar um lugar no mundo do trabalho, é um degrau, uma etapa para depois podermos viver dignamente. Esta é uma preocupação que tem de ser nossa, também da Igreja, até na forma como educamos, nas catequeses que fazemos, na formação que damos no interior da Igreja às crianças e aos jovens.”.

À objeção de que o Pacto, com a ideia de fundo de envolver toda a gente – famílias, comunidades, escolas e universidades, instituições, religiões e governantes – seja um objetivo demasiado utópico, a entrevistada contrapõe que “nós somos feitos de utopia, também”. Por isso, a iniciativa de Francisco “é um desafio muito positivo” na senda dos caminhos para a paz, dado que, tal “como nos tempos dos antigos profetas, continua também hoje a elevar-se o clamor dos pobres e da terra para implorar justiça e paz”. Ora, se, “desde os antigos profetas que andamos a clamar por justiça e por paz, o ‘Pacto Educativo Global’ faz todo o sentido”, pois vem ao encontro deste (não de encontro a este, como diz a jornalista: “vir de encontro a…” significa “embater contra…”) desejo de “um mundo melhor”.

Depois, sobressai a linha de coerência nas intervenções, encíclicas, gestos, alertas e propostas de Francisco. E a jornalista repara que, em Portugal, estas mensagens têm passado bastante ao lado do poder político. De facto, o Papa “tem uma grande importância para nós, enquanto católicos, mas é visto como mais um chefe de Estado, o Chefe de Estado do Vaticano, um Estado dentro de outro Estado”, pelo que, muitas vezes, as suas “são palavras vistas com agrado, com boas intenções”, mas “acabam, em termos práticos, por não ter a importância que deveriam”.

E, no quadro da comunicação social, verifica a jornalista que, andando nós “sempre atrás do clickbait”, nem sempre encaramos “estas mensagens como pertinentes”. Enfim, na linha da velha máxima da notícia que interessa é a do “homem que mordeu o cão”, em termos gerais, “é sempre mais interessante escrever sobre os escândalos dentro da Igreja do que sobre boas práticas que se façam”, embora também se escreva sobre elas.

Em síntese, escreve-se sobre as mensagens papais sobre Natal, Ano Novo e outras, mas depois como que se exige que o Papa diga ou faça “qualquer coisa muito fora do comum para nos chamar a atenção” (Por exemplo, ir a Lesbos não é para todos).

E a entrevista chega ao seu termo destacando um compromisso concreto em desenvolvimento também em Portugal, o projeto das ‘Scholas Occurrentes’, que visa criar uma rede de escolas para a inclusão, com recurso ao desporto e à arte – uma edução global, preocupação que o Papa já traz dos tempos de Buenos Aires. Por isso, o empenho pessoal de Francisco na área da educação não surpreende, pois, como ele diz, “a educação é um fator de liberdade, de responsabilidade e de desenvolvimento”, pelo que “só pela educação é que nós vamos mudar o mundo, vamos ter melhores cidadãos, melhores pessoas”. Mas, para tanto, importa zelar, para lá do saber académico, o ser. E “é isso que nos vai mudar”.

2022.01.02 – Louro de Carvalho

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