É a jornalista Bárbara
Wong quem o realça em entrevista à “Renascença” e à “Ecclesia”,
publicada neste dia 2 de janeiro e em que se debruça sobre os tópicos
essenciais da Mensagem do Papa Francisco para o LV Dia Mundial da Paz
assinalado no 1.º dia do ano.
Considerando “certeiros” e realistas os
alertas do Santo Padre, não julga surpreendente a sua insistência em os
orçamentos dos países, a nível mundial, não deverem estar tão voltados para as
despesas militares, nomeadamente os armamentos, pois, como diz o Papa, “aumentaram as despesas militares, ultrapassando o
nível registado no termo da Guerra Fria”, quando a opção deveria ser claramente
“a instrução e a educação”, porque estes são os reais “motores da Paz”.
E a jornalista acha curioso o Pontífice fazer explicitamente a distinção
entre instrução e educação, porque não raro estamos muito focados – sobretudo
os professores – na instrução, no ensino dos conteúdos, havendo a escola de ser
muito mais que isso, ou seja, promover e fazer “a educação e uma educação
global”. Assim, é plausível a efetiva preocupação do Papa com esta temática,
porque só através da educação é que “o mundo pula e avança”, como diz o poeta.
***
Não resisto, no entanto, a discordar da jornalista quando aponta os
professores como os principais responsáveis pelo enfoque no fator “instrução”. De
facto, quem mais tem pressionado os professores pelo cumprimento dos programas,
têm sido as estruturas administrativas e inspetivas do Ministério da Educação (ME) e a pressão da opinião pública, designadamente dos
pais, do sistema de acesso ao ensino superior e da agenda neoliberal, que vêm
induzindo os professores e os alunos ao treinamento da aquisição e consolidação
dos conhecimento através de múltiplas e extensas baterias de testes e fichas de
avaliação para garantir o acesso aos cursos superiores mais cotados na
sociedade, no que ajudam imenso os rankings
de escolas com base em exames nacionais, elaborados por jornais assentes em
dados fornecidos pelo ME. Quando parece que a escola não garante o êxito
instrucional desejado, vêm em socorro das pretensões paternais os centros de
explicações e apoio (ou o explicador individual, que faz os trabalhos) – alguns são verdadeiras empresas de caça ao dinheiro
– muitos depois de piratearem orientações e testes em circulação na escola. E,
se analisarmos o recheio dos programas das diversas disciplinas desde o 1.º ao
12.º ano, ficamos com a impressão de que o doseamento de conteúdos e o grau de
dificuldade não estão compatíveis com os diferentes níveis etários. Parece que
foram gizados para o aluno excelente que não é comum (nem o aluno
médio) e, se calhar, nem existe no
universo português.
E é de acrescentar que, não raro, os pais nem conseguem educar os filhos
para os valores, nem consentem que a escola o tente fazer, alegadamente porque
os filhos não têm nada que se lhes aponte. Depois, embora os critérios de
avaliação contemplem obrigatoriamente a apreciação das atitudes e
comportamentos que significam valores, estes parâmetros costumam servir para
salvar que tenha êxito académico mais periclitante.
***
Mas, continuando com as
declarações de Bárbara Wong, é de realçar que não tem a ideia de que, em
Portugal a educação é vista como despesa e não como investimento. E afasta-se
da crítica frequente dos professores ao ME no atinente sobretudo a “salários e carreiras”, para frisar que “tem havido um
investimento na educação, sobretudo em formas diferentes de estar na escola”,
no que estou de acordo se tivermos em conta o que está plasmado nos normativos,
bem como se apreciarmos tantos projetos que pululam no meio escolar e
paraescolar, obviamente a par de muitos que só têm interesse para a captação de
verbas e ocupação diferente de alguns agentes educativos – e tudo afunilando no
exame final que só contempla alguma as disciplinas e só no quadro do currículo
nacional. Entretanto, é de acentuar, em minha opinião, que, sem salários condicentes
com a missão do professor e sem um razoável horizonte de carreira docente, fica
um importante setor da educação sem o conveniente investimento.
Como assegura a jornalista, “a escola está cada vez mais aberta à
comunidade e tem havido uma série de programas que trazem a comunidade para
dentro da escola”, e é pertinente a distinção que Francisco faz entre instrução
e educação, porque “infelizmente as crianças chegam à escola com muitos
défices”. Na verdade, sempre as condições
socioeconómicas dos alunos foram e são um fator relevante no insucesso escolar,
que leva a escola a falhar no seu papel de elevador social, o que a pandemia
veio agravar. De facto, como acentua Bárbara Wong, “as crianças com
menos acesso à Internet em casa, não tendo computadores (…), foi muito mais complicado para essas crianças e para
esses pais”. Até o isolamento da pandemia é diferente numa casa com duas casas
de banho ou numa só com uma casa de banho. Depois, aumentaram as desigualdades no
aspeto educativo a partir de casa: havia miúdos que tinham um Smartphone, mas
não sabiam trabalhar com ele, não o sabiam pôr ao serviço da aprendizagem. E,
em relação a Smartphones, para ricos ou pobres, o uso dos telefones é sobretudo
recreativo e não pedagógico…
A referência na mensagem papal
de que uma das consequências da pandemia foram as aulas à distância, que em
muitos casos causaram “retrocesso na aprendizagem” também tem a ver com o caso português.
Com efeito, “ninguém
estava preparado para isto”. E a jornalista insiste em apontar os professores,
agora na iliteracia digital: muitos “têm
uma enorme dificuldade em usar as novas tecnologias dentro da sala de aula,
quanto mais à distância!”. Resta-me saber se os profissionais que sabem
tanto destas coisas foram objeto de tanto desapoio na formação nestas áreas
como os professores, que a fazem em regime pós-laboral e, muitas vezes, à sua
custa… e sem a dispensa do habitual montão de fichas, grelhas, planos e relatórios
decorrentes da atividade docente – letiva e não letiva.
A este respeito, lembro-me de que, não há muito tempo, um jornal dava conta
em caixa alta do défice de literacia dos professores do ensino básico e do
secundário. É de questionar saber se os do ensino superior são, regra geral,
mais capazes no digital. Não serão os fundos europeus disponibilizáveis para as
instituições do ensino superior o móbil para estas promoverem ações de formação
contínua junto dos docentes, com o conveniente pagamento? Se assim for, não
precisavam de caluniar a classe docente; bastaria engrandecer a necessidade de
mais e mais formação. Assim, os docentes sujeitam-se à formação a mata-cavalos
e fora do horário laboral para podem progredir na carreira.
Não obstante, a analista faz justo elogio aos professores, porque foram
obrigados a atualizar-se muito depressa de modo a poderem dar aulas à distância,
mas não refere que tiveram de adaptar os seus equipamentos ou comprar
equipamentos novos a expensas suas e com escassas instruções sobre o
desempenho.
E, do trabalho à distância, que empobrece, acaba por dizer que também os
jornalistas o tiveram de fazer, mas sentiram que “precisamos do outro, até para
termos ideias e para desenvolvermos novas histórias”.
***
Conexo com a educação está
o “diálogo entre gerações”, que o Papa considera fundamental no atual contexto
pandémico, advertindo que “as crises contemporâneas” revelam a “urgência” de
aliança entre os idosos, os “guardiões da memória”, e os jovens, que são os que
“fazem avançar a história”. E, interpelada sobre se em Portugal a pandemia
fez mudar alguma coisa este diálogo entre gerações, a analista discorre:
“A pandemia no
início veio trazer ao de cima o melhor de nós. Dizíamos todos ‘vai ficar
tudo bem’, era o lema. E, de facto, houve uma série de boas práticas e bons
exemplos de jovens que se juntaram nos seus bairros para ajudar os mais
velhos, porque não podiam sair nem ir às compras, e isso foi um apoio e foi um
exemplo muito bom. Com o passar do tempo, isso para uns foi deixando de ser
necessário, para outros permaneceu.”.
Ou seja, a princípio, pontificou a preocupação com o outro; depois,
regredimos. A saída de “quarentenas, confinamentos e isolamentos” deixou-nos
“menos empáticos” e com “menos paciência para o outro”. E isto deve levar-nos a
refletir e a fazer uma mudança na nossa vida, “porque nós precisamos do outro
para viver”.
***
A terceira via para a
construção da paz, segundo o Papa, é o trabalho. E Francisco sublinha os
efeitos devastadores da pandemia, designadamente a falência de muitas
atividades económicas, o aumento do desemprego e o agravamento da precariedade,
para encarecer a urgência de “promover condições laborais decentes e dignas,
orientadas para o bem comum e a salvaguarda da criação”. Observando que se
trata dum alerta “muito certeiro”, a entrevistada anota que esta pandemia trouxe “mais fragilidade no mercado de trabalho”. E a
chamada de atenção dirige-se sobretudo às empresas e aos governos para o
compromisso de não se visar apenas o lucro, já que este “não pode ser o único
critério-guia”, devendo as empresas “respeitar os direitos humanos” e “estar
mais cientes do seu papel social”.
Questionada sobre se em
vésperas de eleições legislativas a mensagem do Papa deveria ser lida com
atenção por todos os que têm poder de decisão, a começar pelos políticos que se
apresentam com ideários católicos, cristãos, Bárbara Wong sublinha que “há dimensões que ficam esquecidas”, pelo que Francisco
lembra a Doutrina Social da Igreja, que não é coisa nova, mas algumas pessoas
esquecem-se muito dos trabalhadores.
Registando que o Papa fala, preocupado, dos trabalhadores migrantes, a
jornalista recorda a angústia que lhe deixou uma entrevista do presidente da
Associação de Hotelaria de Portugal, dizendo que “a opção era ir buscar pessoas
de países migrantes, mais frágeis, porque é mais fácil do que dar salários
condignos aos nacionais”, para concluir: “enquanto
houver empresários que pensam assim, é difícil olhar para o trabalho e
respeitar os direitos humanos”.
Confrontada com a
frequência com que se substitui “trabalhador” por “colaborador”, o que não é a
mesma coisa, a jornalista é taxativa:
“Não, nós não
colaboramos, estamos a trabalhar efetivamente”.
Vindo a mensagem papal
enfatizar os suprarreferidos alertas será importante que eles sejam acolhidos
por quem tem poder de decisão, dada “a necessidade de fazer crescer uma renovada responsabilidade social,
para que não estejamos só focados no lucro”.
Todavia, digo eu, embora haja e deva haver cristãos e católicos nos
diversos partidos, os entrevistadores foram debalde despertar nos programas partidários
um ideário cristão ou até católico. Na verdade, apesar de haver na praça um
partido que se dizia democrata-cristão (Por onde é que isso já anda?), todos se acobertam à sombra dum Estado aconfessional
ou mesmo laico. A opção é obviamente entre maior ou menor equilíbrio entre
personalismo e socialismo, propriedade ou lucro e função social da propriedade
ou da empresa; ou, então, coletivismo total e liberalismo absoluto ou ditadura
à esquerda ou ditadura à direita. E se for só a apetência pelo poder ou a caça
aos fundos comunitários?
***
Voltando ao tema da
educação, os entrevistadores recordam que, em outubro 2020, Francisco lançou o
‘Pacto Educativo Global’, com investigadores e professores de várias áreas,
convicto de que a educação é a “semente da esperança”. O Pacto procura
sensibilizar para a justiça, a solidariedade, a ecologia integral e o combate à
cultura do descarte. Interpelada, a jornalista diz:
“Não é uma
preocupação nova porque a questão do elevador social é muito importante. (…) Só
investindo na instrução e educação, que esta é a chave-mestra para podermos
ocupar um lugar no mundo do trabalho, é um degrau, uma etapa para depois
podermos viver dignamente. Esta é uma preocupação que tem de ser nossa, também
da Igreja, até na forma como educamos, nas catequeses que fazemos, na formação
que damos no interior da Igreja às crianças e aos jovens.”.
À objeção de que o Pacto,
com a ideia de fundo de envolver toda a gente – famílias, comunidades, escolas
e universidades, instituições, religiões e governantes – seja um objetivo
demasiado utópico, a entrevistada contrapõe que “nós somos feitos de utopia, também”. Por isso, a iniciativa de Francisco “é
um desafio muito positivo” na senda dos caminhos para a paz, dado que, tal “como
nos tempos dos antigos profetas, continua também hoje a elevar-se o clamor dos
pobres e da terra para implorar justiça e paz”. Ora, se, “desde os antigos
profetas que andamos a clamar por justiça e por paz, o ‘Pacto Educativo Global’
faz todo o sentido”, pois vem ao encontro deste (não de encontro a este, como diz a
jornalista: “vir de encontro a…” significa “embater contra…”) desejo de “um mundo melhor”.
Depois, sobressai a linha
de coerência nas intervenções, encíclicas, gestos, alertas e propostas de
Francisco. E a jornalista repara que, em Portugal, estas mensagens têm passado
bastante ao lado do poder político. De facto, o Papa “tem uma grande importância para nós, enquanto
católicos, mas é visto como mais um chefe de Estado, o Chefe de Estado do
Vaticano, um Estado dentro de outro Estado”, pelo que, muitas vezes, as suas “são
palavras vistas com agrado, com boas intenções”, mas “acabam, em termos
práticos, por não ter a importância que deveriam”.
E, no quadro da comunicação
social, verifica a jornalista que, andando nós “sempre atrás do clickbait”, nem sempre
encaramos “estas mensagens como pertinentes”. Enfim, na linha da velha
máxima da notícia que interessa é a do “homem que mordeu o cão”, em termos
gerais, “é sempre mais interessante escrever sobre os escândalos dentro da
Igreja do que sobre boas práticas que se façam”, embora também se escreva sobre
elas.
Em síntese, escreve-se sobre as mensagens papais sobre Natal, Ano Novo e
outras, mas depois como que se exige que o Papa diga ou faça “qualquer coisa
muito fora do comum para nos chamar a atenção” (Por exemplo, “ir a Lesbos não é para todos”).
E a entrevista chega ao seu
termo destacando um compromisso concreto em desenvolvimento também em Portugal,
o projeto das ‘Scholas Occurrentes’, que visa criar uma rede de escolas para a
inclusão, com recurso ao desporto e à arte – uma edução global, preocupação que
o Papa já traz dos tempos de Buenos Aires. Por isso, o empenho pessoal de Francisco
na área da educação não surpreende, pois, como ele diz, “a educação é um fator de liberdade, de responsabilidade
e de desenvolvimento”, pelo que “só pela educação é que nós vamos mudar o
mundo, vamos ter melhores cidadãos, melhores pessoas”. Mas, para tanto, importa
zelar, para lá do saber académico, o ser. E “é isso que nos vai mudar”.
2022.01.02 – Louro de Carvalho
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