Quando o legislador constituinte estabeleceu que
as eleições deveriam ser precedidas dum tempo concreto de campanha de
esclarecimento e propaganda política, sem obstar a que antes houvesse um tempo
mais alargado de informação sobre o estado do país e do seu futuro, não estaria
a pensar que o palco dos políticos fosse invadido por animais, mesmo que de estimação.
Também não me parece que o legislador ordinário, naquele voto necessário da
maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções para aprovação duma
lei orgânica, admitisse tal cenário.
É certo que os partidos são livres de dizer e
proclamar o que entendem, mas o exercício dessa liberdade traz consequências e
estas, no caso vertente, são nefastas do meu ponto de vista.
Não acompanho a tirada do criador de marcas Carlos Coelho, que acha muito
positivo, em artigo do DN, que os líderes
dos dois maiores partidos que disputam as próximas eleições tenham lançado mão
de animais de estimação para de algum modo os acompanharem nos seus périplos
pelo território do eleitorado, no pressuposto de terem “percebido que para
cativar eleitorado, mais do que as propostas políticas (…) é preciso conhecer os homens que estão por detrás
delas”.
A consequência
primeira de tal postura não será o desagrado ou a perda de eleitores nas respetivas
causas, mas banaliza a política, de que tantos estão desinteressados e andam
afastados, e miseribiliza o Estado, que tem sido o fator de sobrevivência para
tantos e que deve, pelo menos, manter a sua feição teleológica e reguladora e
intervir sempre que necessário, mormente em situações de emergência e calamidade
ou de extremas depressão e pobreza das populações. Além disso, o Estado e os
políticos deixam se constituir em referencial ético que deve subjazer à génese das
leis e regulamentos, às medidas administrativas de nível superior e à administração
da justiça.
Para mostrar quem são os humanos que estão por
trás dos políticos que se apresentam ao eleitorado, não é preciso recorrer a animais
como ícones, muito menos torná-los atores políticos, independentemente da
personalidade que deles seja dono. Ademais, os líderes acima referidos de forma
subentendida são mais do que conhecidos pelo povo e não podem, sob risco de hipocrisia,
assumir publicamente um tipo de personalidade diferente da que os carateriza. É
certo que eles são rosto de organizações políticas, mas não deixam de ser quem
são. E, se não importa apenas ser, mas também parecer, nunca o parecer pode ser
diferente do ser.
Nós sabemos que ambos os sobreditos líderes são igualmente
autoritários e dialogantes, defensores das suas verdades e irónicos, zelosos da
sua ideia de interesse nacional, desejosos de alcançar a maioria absoluta no
Parlamento (parece que não atingível
nas atuais circunstâncias), ambos capazes de assegurar a governação, embora
um esteja desgastado e outro sem experiência governativa, e – porque não? – ambos
candidatos à superior distribuição e gestão dos fundos europeus, agora tidos
por tão abundantes. Por isso, não lhes vale a pena ocultarem-se por trás dos
seus animais de estimação, assumi-los como protagonistas ou usá-los como mascotes.
Assim, não concordo com o dito de que “Rio passou
de contabilista a humorista e o gato transformou-o em político”. Com efeito,
nem o dito líder era contabilista, nem faz carreira de humorista, antes se
revela um político em ascensão. E, se uma ou outra graçola pode dar jeito para
descongestionar uma tensão política discursiva ou de ação, não pode aceitar-se
que a política, as suas campanhas e o seu exercício se tornem no “panem et circenses” do Império Romano. O
mesmo serve para o seu principal contendor, que bem escusava de apresentar os
seus cães ou cadelas, que não o livram do estigma do desgaste governamental, de
que apenas se livrará se o eleitorado vier a acreditar no seu programa
eleitoral e na sua capacidade de nova governação.
É certo que outros líderes partidários como os do
Livre e do Chega também apresentaram os seus animais, aliás o PAN é useiro e
vezeiro nisso por integrar o seu ideário político. Porém, a não ser no caso do
PAN, cujo respeito abrande todas as espécies humanas, menos os micróbios, a
dinâmica animal não constitui uma significativa mais-valia, não passando dum recurso
piroso, a não ser que se julgue útil em política o caso das cadelas que João
Rendeiro deixou em Portugal quando fugiu à justiça e de que disse ter muita
pena, aliás como da mulher.
Alega-se que algumas das ideias programáticas são muito técnicas e devem ser debatidas em espaços
concretos. Com efeito, falar de PIB, revisão constitucional, orçamento do
Estado para a maioria dos portugueses não quer dizer nada. E, embora importantes
para o país, não concitam o voto dos eleitores. Ora, cabe aos partidos explicar
aos eleitores as marcas dos seus programas eleitorais que enunciam aos quatro
ventos, mesmo as mais complexas. Se um partido não é capaz de explicar o seu ideário
ao povo, como pode ser considerado capaz de governar ou de intervir no
Parlamento? Estaremos a dar razão àqueles que dizem que a maior arte dos ministros
não conhece os assuntos da pasta que sobraça ou que a maior parte dos deputados
não percebe o que está a votar, limitando-se a seguir acriticamente as indicações
do chefe?
O que está
em causa nos votos são as ideologias mais à direita ou mais à esquerda, bem
como as práticas de que somos ou fomos testemunhas. Porém, se inquiríssemos as
pessoas, elas teriam dificuldade em dizer o que é mais dum lado ou doutro e que
os líderes nacionais elas acreditam que podem levar o país por diante, seja pretendendo
dar continuidade às políticas que existem, seja entendendo dever alterá-las. Ao
invés, se não tiverem memória curta, hão de lembrar-se de como se destruiu a
nossa agricultura, a nossa ferrovia, muita da nossa indústria; como se entrou
no euro sem a devida preparação das empresas e das famílias; de como se privatizaram
ou venderam ao desbarato setores estratégicos nacionais; de como os funcionários
do Estado foram destratados; de como os portugueses sofreram aumentos brutais
de impostos e taxas ou tiveram cortes enormes em subsídios; e de como os
serviços públicos se degradaram.
Tenho a
ideia de que a primeira parte da campanha, apesar de alguns mimos desagradáveis
entre adversários, estava a contribuir para o esclarecimento dos eleitores.
Porém, cedo os protagonistas se cansaram da positividade do discurso e pensaram,
em nome da ecologia, apostar na exposição dos animais, em substituição das famílias, tendo sido André
Ventura o primeiro a mostrar o seu coelhinho, a que se foram seguindo outros no
certame da fauna em que parecem querer transformar o ato eleitoral. Diz Carlos
Coelho que “isto aproxima as pessoas e podem vir os intelectuais dizer que a
campanha baixou de nível porque baixou para os gatinhos”, mas, na sua ótica, “é
este tipo de coisas que levam as pessoas a importarem-se com o que se está a
passar”.
Diz o
criador de marcas que as pessoas, para decidirem em quem votar, “precisam de
fazer uma reflexão” e que “gostavam de mudar mas não sabem para quem”. E é
certo que “não vão ler os programas dos partidos”. Contudo, eu não creio que
seja o painel de animais que a campanha deu a conhecer que induz uma séria reflexão
e uma escolha consciente. Por isso, é importante que os partidos expliquem, esmiúcem
os pontos-chave dos seus programas. Obviamente é bom que sejam simpáticos e até
ofereçam recordações para que os eleitores pensem neles, mas não vejo os partidos
a distribuir gatos, cães e coelhos pelos eleitores. Seria muito caro e, em termos
de ética política, muito pior a emenda que o soneto.
Sustenta o
articulista que “é preciso entender que há a política da escola, a alta
política, as pessoas que se interessam e estudam e a elite que pode governar o
país e que deve discutir as medidas que podem aplicar e a melhor forma de o
fazer”. Bom, cá temos o país dos inteligentes e dos dotados e dos que pouco
percebem da coisa pública. Estou farto de comentadores, jornalistas e políticos
que fazem dos portugueses imbecis: “para as pessoas perceberem lá em casa”; “o
povo não entende”; “estamos aqui a discutir não tendo em conta as pessoas lá em
casa”; etc. Quase todas as pessoas entendem estas coisas desde que lhas digam e
expliquem. O que falta, por vezes, aos comunicadores é a capacidade de
descomplexar os temas. Também o médico, o advogado ou o engenheiro, para lá do alto
saber académico, são capazes de explicar aos clientes o que fazem.
Temos até “uma
classe média mais informada que gosta de ouvir as ideias, embora não as goste
de discutir muito”, diz Carlos Coelho, mas temos “uma massa de pessoas que vota
por fé ou por desilusão” e quem decide efetivamente são todos os outros.
Por isso, no
entender do articulista, os líderes não puseram na mesa ideias extraordinárias
e entenderam que a campanha é relação com as pessoas, a capacidade de comunicar
e atrair as pessoas para a política e desintelectualizar a
política sempre que for preciso. Por este motivo é que as sondagens dão
aproximações. Ora, apesar de isto ser verdade, não é a vertente da fauna
exposta que dá valia à campanha. Tudo o que seja tirar a atenção das pessoas e
dos problemas para as coisas e animais é desviante e não deve ser bem-vindo. É
a liberdade que assiste às pessoas e organizações, mas é também a liberdade de
crítica que nos assiste a todos.
Nem é
razoável dizer que “não foi a capacidade intelectual extrema que fez do Dr.
Mário Soares um ícone”, mas a capacidade de “saber falar para a elite, para a
burguesia e para o povo”. Talvez este, como outros de boa memória, tenha feito
o que não se faz hoje: aliar a capacidade intelectual à empatia, estar com as pessoas,
explicar-lhes o que se pensa, partir os programas em pedacinhos, embora fiquem
muitas coisas por dizer ou explicar e até mostrar, não raro, algum mau humor.
Por mim, ao
certame animal prefiro uma campanha séria, elevada e esclarecedora. Se “a
qualidade intrínseca das coisas não é suficiente”, também “a qualidade
percebida” sem qualidade intrínseca é oca. Os políticos devem ter a capacidade
de fazer a ponte entre o que os cidadãos já entendem de política e o contexto
político de descapitalização política, para os atraírem à política. E fazê-lo
com gatinhos ou cães pode ser folclórico, mas não suscita mais participação
política, tal como o excesso de humor ou o humor mal enquadrado não garantem eficácia
política.
Precisamos de
política à séria e não de fatores de desvio ou de feição pirosa.
2022.01.26 – Louro de Carvalho
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