quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

A introdução de animais na campanha eleitoral é pirosa e desviante

 

Quando o legislador constituinte estabeleceu que as eleições deveriam ser precedidas dum tempo concreto de campanha de esclarecimento e propaganda política, sem obstar a que antes houvesse um tempo mais alargado de informação sobre o estado do país e do seu futuro, não estaria a pensar que o palco dos políticos fosse invadido por animais, mesmo que de estimação. Também não me parece que o legislador ordinário, naquele voto necessário da maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções para aprovação duma lei orgânica, admitisse tal cenário.

É certo que os partidos são livres de dizer e proclamar o que entendem, mas o exercício dessa liberdade traz consequências e estas, no caso vertente, são nefastas do meu ponto de vista.  

Não acompanho a tirada do criador de marcas Carlos Coelho, que acha muito positivo, em artigo do DN, que os líderes dos dois maiores partidos que disputam as próximas eleições tenham lançado mão de animais de estimação para de algum modo os acompanharem nos seus périplos pelo território do eleitorado, no pressuposto de terem “percebido que para cativar eleitorado, mais do que as propostas políticas (…) é preciso conhecer os homens que estão por detrás delas”.

A consequência primeira de tal postura não será o desagrado ou a perda de eleitores nas respetivas causas, mas banaliza a política, de que tantos estão desinteressados e andam afastados, e miseribiliza o Estado, que tem sido o fator de sobrevivência para tantos e que deve, pelo menos, manter a sua feição teleológica e reguladora e intervir sempre que necessário, mormente em situações de emergência e calamidade ou de extremas depressão e pobreza das populações. Além disso, o Estado e os políticos deixam se constituir em referencial ético que deve subjazer à génese das leis e regulamentos, às medidas administrativas de nível superior e à administração da justiça.

Para mostrar quem são os humanos que estão por trás dos políticos que se apresentam ao eleitorado, não é preciso recorrer a animais como ícones, muito menos torná-los atores políticos, independentemente da personalidade que deles seja dono. Ademais, os líderes acima referidos de forma subentendida são mais do que conhecidos pelo povo e não podem, sob risco de hipocrisia, assumir publicamente um tipo de personalidade diferente da que os carateriza. É certo que eles são rosto de organizações políticas, mas não deixam de ser quem são. E, se não importa apenas ser, mas também parecer, nunca o parecer pode ser diferente do ser.

Nós sabemos que ambos os sobreditos líderes são igualmente autoritários e dialogantes, defensores das suas verdades e irónicos, zelosos da sua ideia de interesse nacional, desejosos de alcançar a maioria absoluta no Parlamento (parece que não atingível nas atuais circunstâncias), ambos capazes de assegurar a governação, embora um esteja desgastado e outro sem experiência governativa, e – porque não? – ambos candidatos à superior distribuição e gestão dos fundos europeus, agora tidos por tão abundantes. Por isso, não lhes vale a pena ocultarem-se por trás dos seus animais de estimação, assumi-los como protagonistas ou usá-los como mascotes.

Assim, não concordo com o dito de que “Rio passou de contabilista a humorista e o gato transformou-o em político”. Com efeito, nem o dito líder era contabilista, nem faz carreira de humorista, antes se revela um político em ascensão. E, se uma ou outra graçola pode dar jeito para descongestionar uma tensão política discursiva ou de ação, não pode aceitar-se que a política, as suas campanhas e o seu exercício se tornem no “panem et circenses” do Império Romano. O mesmo serve para o seu principal contendor, que bem escusava de apresentar os seus cães ou cadelas, que não o livram do estigma do desgaste governamental, de que apenas se livrará se o eleitorado vier a acreditar no seu programa eleitoral e na sua capacidade de nova governação.

É certo que outros líderes partidários como os do Livre e do Chega também apresentaram os seus animais, aliás o PAN é useiro e vezeiro nisso por integrar o seu ideário político. Porém, a não ser no caso do PAN, cujo respeito abrande todas as espécies humanas, menos os micróbios, a dinâmica animal não constitui uma significativa mais-valia, não passando dum recurso piroso, a não ser que se julgue útil em política o caso das cadelas que João Rendeiro deixou em Portugal quando fugiu à justiça e de que disse ter muita pena, aliás como da mulher.  

Alega-se que algumas das ideias programáticas são muito técnicas e devem ser debatidas em espaços concretos. Com efeito, falar de PIB, revisão constitucional, orçamento do Estado para a maioria dos portugueses não quer dizer nada. E, embora importantes para o país, não concitam o voto dos eleitores. Ora, cabe aos partidos explicar aos eleitores as marcas dos seus programas eleitorais que enunciam aos quatro ventos, mesmo as mais complexas. Se um partido não é capaz de explicar o seu ideário ao povo, como pode ser considerado capaz de governar ou de intervir no Parlamento? Estaremos a dar razão àqueles que dizem que a maior arte dos ministros não conhece os assuntos da pasta que sobraça ou que a maior parte dos deputados não percebe o que está a votar, limitando-se a seguir acriticamente as indicações do chefe?   

O que está em causa nos votos são as ideologias mais à direita ou mais à esquerda, bem como as práticas de que somos ou fomos testemunhas. Porém, se inquiríssemos as pessoas, elas teriam dificuldade em dizer o que é mais dum lado ou doutro e que os líderes nacionais elas acreditam que podem levar o país por diante, seja pretendendo dar continuidade às políticas que existem, seja entendendo dever alterá-las. Ao invés, se não tiverem memória curta, hão de lembrar-se de como se destruiu a nossa agricultura, a nossa ferrovia, muita da nossa indústria; como se entrou no euro sem a devida preparação das empresas e das famílias; de como se privatizaram ou venderam ao desbarato setores estratégicos nacionais; de como os funcionários do Estado foram destratados; de como os portugueses sofreram aumentos brutais de impostos e taxas ou tiveram cortes enormes em subsídios; e de como os serviços públicos se degradaram.         

Tenho a ideia de que a primeira parte da campanha, apesar de alguns mimos desagradáveis entre adversários, estava a contribuir para o esclarecimento dos eleitores. Porém, cedo os protagonistas se cansaram da positividade do discurso e pensaram, em nome da ecologia, apostar na exposição dos animais, em substituição das famílias, tendo sido André Ventura o primeiro a mostrar o seu coelhinho, a que se foram seguindo outros no certame da fauna em que parecem querer transformar o ato eleitoral. Diz Carlos Coelho que “isto aproxima as pessoas e podem vir os intelectuais dizer que a campanha baixou de nível porque baixou para os gatinhos”, mas, na sua ótica, “é este tipo de coisas que levam as pessoas a importarem-se com o que se está a passar”.

Diz o criador de marcas que as pessoas, para decidirem em quem votar, “precisam de fazer uma reflexão” e que “gostavam de mudar mas não sabem para quem”. E é certo que “não vão ler os programas dos partidos”. Contudo, eu não creio que seja o painel de animais que a campanha deu a conhecer que induz uma séria reflexão e uma escolha consciente. Por isso, é importante que os partidos expliquem, esmiúcem os pontos-chave dos seus programas. Obviamente é bom que sejam simpáticos e até ofereçam recordações para que os eleitores pensem neles, mas não vejo os partidos a distribuir gatos, cães e coelhos pelos eleitores. Seria muito caro e, em termos de ética política, muito pior a emenda que o soneto.      

Sustenta o articulista que “é preciso entender que há a política da escola, a alta política, as pessoas que se interessam e estudam e a elite que pode governar o país e que deve discutir as medidas que podem aplicar e a melhor forma de o fazer”. Bom, cá temos o país dos inteligentes e dos dotados e dos que pouco percebem da coisa pública. Estou farto de comentadores, jornalistas e políticos que fazem dos portugueses imbecis: “para as pessoas perceberem lá em casa”; “o povo não entende”; “estamos aqui a discutir não tendo em conta as pessoas lá em casa”; etc. Quase todas as pessoas entendem estas coisas desde que lhas digam e expliquem. O que falta, por vezes, aos comunicadores é a capacidade de descomplexar os temas. Também o médico, o advogado ou o engenheiro, para lá do alto saber académico, são capazes de explicar aos clientes o que fazem.   

Temos até “uma classe média mais informada que gosta de ouvir as ideias, embora não as goste de discutir muito”, diz Carlos Coelho, mas temos “uma massa de pessoas que vota por fé ou por desilusão” e quem decide efetivamente são todos os outros.

Por isso, no entender do articulista, os líderes não puseram na mesa ideias extraordinárias e entenderam que a campanha é relação com as pessoas, a capacidade de comunicar e atrair as pessoas para a política e desintelectualizar a política sempre que for preciso. Por este motivo é que as sondagens dão aproximações. Ora, apesar de isto ser verdade, não é a vertente da fauna exposta que dá valia à campanha. Tudo o que seja tirar a atenção das pessoas e dos problemas para as coisas e animais é desviante e não deve ser bem-vindo. É a liberdade que assiste às pessoas e organizações, mas é também a liberdade de crítica que nos assiste a todos.  

Nem é razoável dizer que “não foi a capacidade intelectual extrema que fez do Dr. Mário Soares um ícone”, mas a capacidade de “saber falar para a elite, para a burguesia e para o povo”. Talvez este, como outros de boa memória, tenha feito o que não se faz hoje: aliar a capacidade intelectual à empatia, estar com as pessoas, explicar-lhes o que se pensa, partir os programas em pedacinhos, embora fiquem muitas coisas por dizer ou explicar e até mostrar, não raro, algum mau humor.    

Por mim, ao certame animal prefiro uma campanha séria, elevada e esclarecedora. Se “a qualidade intrínseca das coisas não é suficiente”, também “a qualidade percebida” sem qualidade intrínseca é oca. Os políticos devem ter a capacidade de fazer a ponte entre o que os cidadãos já entendem de política e o contexto político de descapitalização política, para os atraírem à política. E fazê-lo com gatinhos ou cães pode ser folclórico, mas não suscita mais participação política, tal como o excesso de humor ou o humor mal enquadrado não garantem eficácia política.

Precisamos de política à séria e não de fatores de desvio ou de feição pirosa.

2022.01.26 – Louro de Carvalho

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