terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Pela terceira vez o Parlamento Europeu tem presidente no feminino

 

Depois de o polaco Kosma Złotowski ter retirado a sua candidatura, a eleição para a presidência do Parlamento Europeu (PE) na segunda parte deste mandato, ou seja, até 2024, passou a ser disputada entre três mulheres. A maltesa, que foi a primeira vice-presidente, nos últimos dois anos, sucede a partir deste dia 18 de janeiro ao italiano David Sassoli, que morreu há uma semana.

Roberta Metsola, do grupo do Partido Popular Europeu (PPE), foi eleita à primeira votação, com 458 votos (em 616 válidos), precisamente no dia em que perfaz 43 anos de idade. É a mais jovem a assumir a presidência do hemiciclo europeu e a terceira mulher, depois das francesas Simone Veil (1979-1982) e Nicole Fontaine (1999-2002). E é a primeira maltesa num cargo de topo da UE.

Simone Veil, conhecida enquanto Ministra da Saúde por ter defendido, em 1974, um projeto de lei que despenalizou a interrupção voluntária da gravidez (aborto) em França e por ter sido a primeira mulher a presidir ao PE.  

Com a eleição de Valéry Giscard d’Estaing para a Presidência da República francesa em 1974, foi nomeada Ministra da Saúde no governo liderado por Jacques Chirac, cargo que manteve nos governos seguintes de Raymond Barre até julho de 1979, quando abandonou o governo para liderar, a pedido de Giscard d'Estaing, a lista do partido UDF às eleições ao PE, onde foi eleita como presidente. Em março de 1993, foi nomeada Ministra de Estado, Ministra dos Assuntos Sociais e da Cidade no governo de Édouard Balladur, cargo que desempenhou até julho de 1995. Em 1998, foi nomeada membro do Conselho Constitucional da França onde permaneceu até 2007, ano em que terminou o seu mandato.

No referendo sobre o Tratado pelo qual se estabeleceu uma Constituição Europeia celebrado em França a 29 de maio de 2005 apelou ao voto no “sim”, provocando controvérsia pelo facto de um membro do Conselho Constitucional se envolver ativamente naquela questão política.

A normanda Nicole Fontaine foi eurodeputada durante 18 anos, de 1984 a 2002. Em 1999 foi eleita para presidir o PE, derrotando o português Mário Soares candidato, também ao cargo, mantendo-se no cargo até 2002, altura em que foi sucedida por Pat Cox. Foi a segunda mulher – e francesa – a presidir ao PE, depois de Simone Veil. Foi ainda Ministra da Indústria da França de 2002 a 2004.

Roberta Metsola concorria contra a sueca Alice Kuhnke, do Grupo dos Verdes/Aliança Livre Europeia, que obteve 101 votos, e a espanhola Sira Rego, candidata do Grupo Confederal da Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Nórdica Verde, que obteve 57 votos.

No início da manhã, o 2.º vice-presidente do Parlamento Europeu, o português Pedro Silva Pereira, que liderou os trabalhos, dado que a 1.ª vice-presidente era candidata, anunciou que o candidato do Grupo dos Conservadores e Reformistas Europeus, o polaco Kosma Złotowski, tinha retirado a sua candidatura, pelo que o seu grupo resolveu apoiar Metsola.

Dos 705 deputados, votaram 690, sendo que destes 74 foram votos brancos ou nulos. A maioria absoluta necessária para vencer à primeira volta era assim de 309 votos, com Metsola a ultrapassar esse número, com 458 votos. Como se disse, Kuhnke obteve 101 votos e Rego obteve 57 votos.

Roberta Metsola, no início do seu discurso após a eleição que lhe atribuiu a vitória, agradeceu a todos, prometeu trabalhar “arduamente para o bem dos cidadãos europeus”, lembrou as grandes prioridades europeias e destacou a importância de voltar a estar uma mulher na presidência do PE. E observando que está a seguir os passos de gigantes, numa alusão aos anteriores presidentes do PE, declarou:

Há 22 anos, Nicole Fontaine foi eleita 20 anos depois de Simone Veil. Não vamos deixar passar mais duas décadas para que a próxima mulher seja presidente..

Considerando, no final do discurso, que “a Europa está de volta”, lembrou que a Europa precisa de proteger os valores da abertura e dos direitos humanos e tem que resistir às pressões que ameaçam o espaço Schengen, pois “o mundo à nossa volta é menos seguro do que era há uma década” – referência à ameaça de invasão russa na Ucrânia e à crise de migrantes na Bielorrússia.

Mencionou no discurso o Chipre, sustentando que a Europa não pode ser verdadeiramente completa com um Chipre dividido, e enviou uma mensagem para as famílias dos jornalistas assassinados Daphne Caruana Galizia e Jan Kuciak: “A vossa luta pela justiça é também a nossa”.

Num pequeno discurso antes de ser aberta a votação, que decorreu à distância por causa da covid-19, Metsola defendeu um PE “mais moderno, mais eficaz e mais eficiente” e um presidente “construtor de consensos”, tal como assumiu o compromisso de não ter medo das posições difíceis e de defender sempre a posição do Parlamento. E, a este respeito, referiu:

Esta é uma casa de discussão e estou empenhada em defender a nossa cultura de debate. Os acordos vêm do debate, porque a tolerância quer dizer que temos de ter espaço para a diferença e é de justiça que ouçamos a outra parte. Deixemos para trás as trincheiras do passado quando olhamos para o futuro..

Metsola, cuja posição antiaborto foi o principal motivo de crítica à sua candidatura, lembrou que enquanto mulher, de uma pequena ilha do Mediterrâneo, sabe o que é ser colocada numa caixa e posta de lado, reforçando que também sabe “a importância do dia de hoje para todas as raparigas e todos os que se atrevem a sonhar”.

A eurodeputada maltesa, membro do Partido Nacionalista de Malta (democrata-cristão, conservador liberal e pró-europeu), partia como a favorita, visto que tinha o apoio do Grupo do Partido Popular Europeu (o maior do hemiciclo) e o dos liberais do Renew Europe e dos Socialistas e Democratas (S&D). Estes optaram por não apresentar candidatura própria e respeitar o acordo de 2019 que, na altura, levou à eleição do socialista italiano David Sassoli para presidente do PE, da conservadora Ursula von der Leyen como presidente da Comissão Europeia e de Charles Michel (do Renew) como presidente do Conselho. O acordo prevê que o S&D fique com 5 das 14 vice-presidências e com a liderança da Conferência dos Presidentes das Comissões, uma posição-chave que coordena as atividades das comissões e que tradicionalmente tem estado nas mãos do PPE.

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A primeira das candidatas a discursar foi Alice Kuhnke, lembrando que tinha dez anos quando ouviu do outro lado do telefone alguém a dizer que não devia estar na Suécia, o seu país natal, e que a matava e à sua família (o pai é da Gâmbia) se não saíssem. Por consequência, o seu medo “transformou-se em raiva”, o que a levou para “a ação política”. Declarando-se “europeia”, disse que estão enganados aqueles que teimam em dizer que não pertence a este lugar e garantiu que querer mostrar a todas as raparigas de dez anos a quem dizem que não pertencem onde estão que “o Parlamento Europeu também é a sua casa”.

Kuhnke lembrou as palavras que estão escritas no final de todas as resoluções europeias “Unidos na diversidade”, dizendo que, se fosse eleita iria trabalhar “em prol de um Parlamento Europeu onde a diversidade seja uma vantagem, não uma desvantagem”.

Evocando o óbice ao apoio a Roberta Metsola, a sua posição antiaborto, disse que as regras da democracia não são negociáveis e que, se “os governos dizem aos seus cidadãos que não têm o direito a decidir sobre os seus próprios corpos, nós temos que os defender”, em referência ao legado de Veil, a primeira mulher presidente do PE e corifeu da legalização do aborto em França.

Também a espanhola Sira Rego referiu o direito ao aborto no seu discurso, sustentando: 

Este parlamento deve defender os direitos das mulheres. Nem um passo atrás no nosso direito sobre decidir sobre os nossos corpos, nem um passo atrás no direito ao aborto.”.

O seu discurso ficou também marcado pela crítica à extrema-direita, “que só traz ódio, medo e violência”, vincando que este é um processo de uma minoria que visa esmagar a maioria que está por baixo para continuar a estar no topo. Acusou a direita de estar a “abrir as portas” à extrema-direita. E falou do sucesso da série espanhola “Casa de Papel”, que voltou a colocar o hino antifascista “Bella Ciao” nas bocas do mundo, para citar um dos seus responsáveis que disse esperar que não se chegue um dia em que seja perigoso cantar um hino antifascista. Na verdade, como acentuou, “não podemos perder esta Europa”, pelo que defendeu a construção uma Europa “mais democrática, mais justa e mais fraterna e absolutamente antifascista”.

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É sintomático que a eleição dos presidentes e vice-presidentes do PE tenha enfatizado a posição de eurodeputados sobre um dos temas mais fraturantes das sociedades. É certo que estas declarações não vinculam os Estados-membros da UE, nem parece que as ditas eurodeputadas queiram influenciar as legislações nacionais neste âmbito, sendo este um dos pontos em que os países não abdicaram da sua soberania. Não obstante, não deixa de constituir um sinal, quando a Europa tem de enfrentar um ambiente hostil ao seu desenvolvimento, as diversas situações de conflito pré-bélico nas barbas da UE e as relações comerciais a nível global.

Talvez a matriz cristã e o pendor iluminista merecessem outra ênfase nos valores privilegiando a educação, a cultura, a saúde, a segurança social, a solidariedade, a paz, o desenvolvimento, a cidadania, as artes.  

Obviamente que a unidade na diversidade e a capacidade de discussão e diálogo são de apreciar.   

2022.01.18 – Louro de Carvalho

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