quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Da responsabilidade política e suas cambiantes

 

Da representação enquanto modelo de governabilidade nas democracias modernas, tendo o povo como fonte do poder e vontade estatal, ressalta, por via da transferência do exercício do poder do povo para os seus representantes, a questão da responsabilidade política, de que não será descabido tratar em véspera de eleições.

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O contorno histórico e conceitual da responsabilização política

A ideia vai-se sistematizando com o advento do parlamentarismo britânico pela afirmação do Estado de Direito. Porém, já na antiguidade grega e romana se utilizaram mecanismos de censura aos governantes. E o Estado de Direito assegurava que todas as pessoas (governantes ou governados) estão sujeitas a jurisdição comum, seja em litígio civil, seja em questões penais.

Foi com o parlamento britânico que em justiça penal surgiram institutos de responsabilização, como o Bill of Attainder e o Impeachment. O primeiro, enquanto condenação decretada por lei ou lei-sentença, odiosamente pessoal e retroativa (considerando alguém culpado pela prática de crime sem a precedência de processo e julgamento regular em que lhe seja assegurada ampla defesa) não resistiu ao avanço político-constitucional, apenas ficando como seu resquício as exonerações de iniciativa superior discricionária; e o segundo, como impugnação do mandato, embora com formulação distinta, persiste como contributo em sede de responsabilização dos governantes.

O impeachment nasce no campo do direito penal. Da imputação de verdadeiro delito acaba por assumir finalidade política. Tendo contribuído para castigar colaboradores próximos do Rei, levou à efetivação da responsabilização política, mas sem afastar as responsabilidades de natureza penal. Aliás, a responsabilidade política não extingue nenhum outro tipo de responsabilidade, quer sejam elas em matéria penal, civil, administrativa, etc.

Segundo Pier Avril (1977), a responsabilidade política é um “princípio independente e específico em comparação com outros tipos de responsabilidade”. Na verdade, toda a ação política implica um fundamento e comporta uma responsabilidade. No âmbito privado, a ideia de responsabilidade gravita, quase na totalidade, em torno de conduta ilícita (dar, fazer ou abster-se de fazer), enquanto no político se restringe à ação do agente político qua tali. O mesmo sucede na responsabilidade penal onde se encontra sempre a noção de ofensa a um bem-jurídico tutelado pela ordem vigente, vinculando-se a ideia de culpa individual à violação à esfera particular de outrem.

Derivando do conceito de responsabilidade penal, sem excluir outro tipo de responsabilidade, a responsabilidade política assenta na ideia de que o governante, se governa mal deve ser politicamente sancionado, constituindo isso a proteção do povo contra o mau exercício do poder.

Porém, ante a incapacidade de se fixar um conceito único de responsabilidade, é preciso ter em conta que a responsabilidade política está em crise pela sua ineficiência nos atuais sistemas políticos ou comporta significações várias nos diferentes discursos a que se refere.

Têm de se considerar aspetos institucionais e sociológicos de cada Estado para que se construa um conceito próprio de responsabilidade.

Todavia, não há dúvida de que a ideia de responsabilizar deve, antes de mais, assentar no dever de prestação de contas e de resposta a quem detém o poder original e que, através dum procedimento democrático, escolhe os sujeitos que agirão em nome da coletividade, zelando os interesses da mesma, e não os próprios.

A acentuar a pluridimensionalidade do conceito de responsabilidade política, é de assinalar que, segundo Pedro Lomba (2008), “os textos constitucionais primam pela ausência de definições acerca da responsabilidade política, face às inúmeras possibilidades de sentidos e dimensões distintas do seu emprego no contexto constitucional”. Assim, esta responsabilidade implica que o governante seja chamado a responder, prestar contas das próprias ações junto dos que tem o poder da designação e sujeitar-se a um juízo de mérito sobre os seus atos e atividades por parte dos governados com a possibilidade da sua substituição por ato destes. Para José Joaquim Gomes Canotilho (2006), “a responsabilidade política é um mecanismo jurídico e político-constitucional de controlo dos atos dos titulares do poder político”, que implica “o dever de prestar contas pelos resultados das decisões, atos ou omissões, que os titulares de funções políticas praticaram no exercício dos respetivos cargos”. Seja como for, trata-se de responsabilizar o sujeito responsável face às ações que se repercutam negativamente na sua função ou que sejam contrárias aos objetivos definidos por quem lhe outorgou o exercício do poder.

Quando as ações dos representantes destoam da realidade almejada pelo povo, a responsabilização tem caráter corretivo; e, quando, mesmo que aceites pelo povo, possam ser eivadas de algum vício, assume funções de fiscalização.

Face ao exposto, convém pensar quem são os sujeitos passíveis de responsabilização, quem os responsabiliza, que tipo de responsabilidades se lhes aplica e de que mecanismos dispõem os outorgantes para responsabilizar seus outorgados.

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Responsabilidade difusa versus responsabilidade institucional ou uma só responsabilidade?

A distinção entre responsabilidade difusa e responsabilidade institucional ajuda o entendimento sobre quem são os responsabilizadores e os responsáveis.

Para Jorge Miranda (2007), a “responsabilidade difusa implica a responsabilização de todos aqueles que representam o povo, perante todo o povo, e não apenas perante quem neles votou ou perante quem os elegeu, nos diferentes círculos” (cf CRP, art.º 152.º, n.º 2). Diz-se difusa, pois qualquer cidadão, no uso dos seus direitos fundamentais, pode e deve exigir dos representantes esclarecimentos e prestação de contas dos seus atos, já que eles agem em nome da coletividade e os seus atos produzem efeitos a todos indistintamente. Para tanto, o povo dispõe de mecanismos próprios de responsabilização direta dos representantes, entre os quais se conta a eleição, a petição, a manifestação e a ação popular – com vista a adequar a participação do povo ao exercício do poder político, enaltecendo-o como fonte legitimadora das ações dos representantes.

Segundo Rescigno (2013), a responsabilidade política difusa compõe-se de elementos como a liberdade de crítica política reconhecida a qualquer sujeito da comunidade política e a existência de vários mecanismos institucionais para remover o detentor do exercício do poder político – o que se consegue pela conscientização política das pessoas, criando uma comunidade capaz de cobrar diretamente dos representantes e, indiretamente, mudar o equilíbrio da relação política. E o conhecimento por parte dos cidadãos da possibilidade de estes, com maior efetividade, cobrarem dos representantes justificações sobre aos atos por estes adotados tem tornado a realidade política diferente da de outrora, onde o desconhecimento permitia maiores abusos.

Quanto à ideia de responsabilidade institucional, em Jorge Miranda (ib), que cita Rescigno, pode ler-se que se trata de “responsabilidade interorgânica ou responsabilidade-fiscalização, verificada nas relações internas dos sistemas políticos”. Concretiza-se no direito de oposição decorrente do “exercício coletivo ou em comum de liberdades fundamentais” (vd CRP, art.º 48.º e art.º 152.º). Mais: a convenção entre duas entidades políticas coloca uma como responsável pela outra e confia-se nessa qualidade (vd CRP, art.º 129.º e art.º 190.º). Assim, o controlo-fiscalização dum órgão para o outro impõe consequências políticas no cometimento de faltas graves ou de abuso do poder político.

Embora sejam distintos os seus titulares, as responsabilidades políticas, institucional e difusa, possuem muitas relações em comum. Com efeito, se há responsabilidade política institucional, há também a responsabilidade política difusa; e admitir que certos detentores do poder político institucionalmente responsabilizem outros significa que estes detentores do poder político – que o fazem a nível institucional – foram designados para esta tarefa através do detentor original do poder político, o que revela que este também pode responsabilizar, além dos detentores do exercício do poder político, aqueles que eles responsabilizam, só que pela via difusa.

É, porém, de advertir que, além de esta não ser a única forma de responsabilização pela via difusa, as responsabilidades políticas difusas tendem a converter-se em responsabilidades políticas institucionais, pois, como a responsabilidade difusa visa mudar o equilíbrio político, transforma-se para buscar nas instâncias institucionais maior responsabilidade dos detentores do exercício do poder político. E a responsabilidade política institucional pode dar lugar a responsabilidade política difusa, quando as forças que lutam pelo exercício do poder retiram os factos da responsabilização da estrutura institucional e os tratam como fatos difusos contrários aos adversários políticos.

Por fim, é de referir que, em certa medida, a responsabilidade política institucional constitui uma forma de responsabilidade difusa.

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Quem é o sujeito passivo, o responsável?

Pedro Lomba (ib.) salienta que “a responsabilidade política pressupõe a existência de alguém que adquire a obrigação de responder”. Com efeito, o desafio inicial da responsabilização política reside na ideia de se identificar o sujeito que tem o dever de prestação de contas junto ao(s) sujeito(s) responsabilizador(es), que compõem o segundo desafio.

A responsabilidade entende-se em duas vertentes orgânicas: a individual (que incide sobre um sujeito específico); e a coletiva (considerada a partir dos órgãos que formam a estrutura constitucional do Estado). Porém, há autores que sustentam que há apenas a responsabilidade individual, pelo que afastam quaisquer formas de responsabilidade coletiva. Na verdade, é discutível a possibilidade que se abre, nos casos coletivos, de estender a responsabilização a quem não tenha contribuído, direta ou indiretamente, no cometimento do facto/ato alcançado. Todavia, sobretudo nas democracias em que a responsabilidade é in elegendo, a má escolha feita por um dos representantes torna-o responsável politicamente pela irresponsabilidade de quem escolheu, devendo-se, para tanto, alcançar coletivamente toda a estrutura e não só quem cometeu o ato a responsabilizar.

É certo que, se o nomeado cometeu erros políticos ou praticou atos ilícitos, isso não transforma o ministro que o designou em responsável jurídico dos atos, mas torna-o politicamente responsável, já que depositou confiança em alguém que não merecia. A responsabilidade coletiva mais se aproxima da responsabilidade institucional, pois a responsabilidade interorgânica tende a estender os seus efeitos a todos os que estão sujeitos à estrutura responsabilizadora.

Assim, nas democracias, admitir apenas a responsabilização individual é tornar inatingíveis os que devem escolher bem quem opera as questões públicas, sobrecarregando de ónus o povo.

No âmbito da responsabilidade política institucional, o que torna um sujeito político num sujeito politicamente responsável pela via institucional é a sua sujeição a mecanismos especiais de responsabilização, cuja consequência última é a remoção do cargo. Já no modelo difuso, a responsabilização fica a cargo de esforços individuais de cada cidadão ou grupo, sem que haja uma padronização de mecanismos ou estrutura pré-formatada, embora se reconheça a existência de mecanismos (a exemplo da eleição) que têm forma específica. E, no atinente à responsabilidade política difusa, o sujeito passivo é variável, abrangendo todos os que lutam pelo poder político e pelos que o exercem, sendo que esta responsabilidade pode ser exercida por qualquer cidadão contra qualquer agente político.

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Quem é o sujeito ativo, o responsabilizador?

O segundo grande desafio da responsabilidade política é reconhecer o sujeito responsabilizador ou os sujeitos responsabilizadores.

Na responsabilidade difusa, o sujeito ativo é tão variável quanto o passivo. Os sujeitos ativos são aqui igualmente variáveis e com capacidade de determinar um desequilíbrio político desfavorável a quem luta pelo exercício do poder político ou a quem o exerce.

Não há circunstâncias pré-determinadas suscetíveis de causar a responsabilização, como não há formas, modo ou tempo, para, em nome da conveniência política, os agentes serem avaliados por um juízo de responsabilização. Buscando-se a identificação dum problema de representatividade, uma distorção entre os objetivos da comunidade a os atos do agente político, está configurada a possibilidade de responsabilização. E é importante frisar que na responsabilidade difusa o agente político não responde só perante os que votaram nele, mas perante toda a coletividade, pois estes passam a ser representantes de toda a coletividade e não só do círculo eleitoral que o elegeu.

Já a responsabilidade institucional “consiste em utilizar as suas competências constitucionais para converter a relação de responsabilidade política numa ou em várias obrigações exigíveis”. Por outras palavras, aqui o sujeito ativo é o dotado de caraterísticas específicas com medida de poder específico para a realização deste controlo. Assim, o sujeito responsabilizador será o indivíduo, ou estrutura com capacidade de crítica qualificada e com o poder de imputar um facto político ao agente que se visa responsabilizar.

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Que tipo de sanção decorre a responsabilidade política?

Um outro aspeto relevante na responsabilidade política é a existência, ou não, de sanção neste modelo de responsabilidade. E, para aferir da existência, ou não, de sanção, é pertinente distinguir responsabilidade política de responsabilidade jurídica, se bem que a responsabilização política não afasta aplicação de outras modalidades de responsabilidade, como já foi dito.

Nos padrões da responsabilidade política não há sanção jurídica, porque, em si, a responsabilidade política não constitui uma forma de responsabilidade jurídica. O conceito de responsabilidade jurídica circunscreve-se às consequências que se impõem a quem pratica atos que a lei considera má conduta. Trata-se da sujeição legal ou sanção legal, ou ainda, consequência adversa atribuída a alguém pelo cometimento de ato que a lei considera contrário ao ordenamento jurídico. Ao invés da responsabilidade política, a jurídica pressupõe o descumprimento duma norma ou a prática de conduta expressamente vedada pelo ordenamento jurídico. Já a responsabilidade política pode ser invocada por conveniência política se o agente político é considerado incompetente, inoperante ou age de forma contrária aos anseios sociais, não significando que haja uma falta legal.

Os resquícios do conceito de sanção presentes na responsabilidade política devem-se, sobretudo, ao nascimento desta no direito penal. A responsabilização dos governantes pelo “Impeachment”, traduzida na imputação de delito ao governante tornou o conceito de sanção, próprio do direito penal, latente no campo da responsabilidade política. Porém, o princípio da responsabilidade política funda-se em conceitos distintos e independentes do da responsabilidade jurídico-penal, embora dele se tenha originado. E, se os mecanismos de responsabilização política têm elementos constitutivos da responsabilidade jurídica, é demasiado arriscado aplicar o conceito de sanção, como no direito penal, na área da responsabilização política.

A representação política traduz-se numa relação de confiança e é a quebra desta confiança que exige a responsabilização, a qual não se funda no descumprimento dum preceito normativo, mas na quebra de confiança existente no pacto social de transferência de poder da coletividade para um número restrito de representantes. E, se em algum caso, a quebra de confiança recair sobre uma norma, aí se exigirá a responsabilização jurídica que, nestes casos, é perfeitamente aplicável. Porém, em muitos outros, se os liames de confiança se rompem, a responsabilização assumirá o poder de regresso do povo contra os representantes, tornando-o, outra vez, ator principal da relação política. E, tornando-se o povo, de novo, mandante da atividade política e sendo a representação marcada pela temporariedade, não é razoável ver como sanção os efeitos da responsabilização política, mas como cessação da função em que se foi investido pelo povo, sem implicação em redução jurídica e sem atingir normas em concreto.

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Enfim, devem os políticos ter mais juízo e noção da responsabilidade e o povo assumir mais ativamente a sua postura como fonte do poder político exigindo a subsequente responsabilização.   

2022.01.20 – Louro de Carvalho

 

AVRIL, Pierre. Mélanges Offerts a Georges Bourdou – Le Pouvoir. Paris: Librairie Generale de Droit et de Jurisprudence, 1977.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7.ª ed. Coimbra: Almedina, 2006.

CRP – Constituição da República Portuguesa, revisão de 2005.

LOMBA, Pedro. Teoria da Responsabilidade Política. Coimbra: Coimbra Editora, 2008.

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional: Estrutura Constitucional da Democracia. Tomo VII. Coimbra: Coimbra Editora, 2007.

RESCIGNO, Giuseppe Ugo. RIDB (Revista do Instituto do Direito Brasileiro), Ano 2 (2013), n.º 8.

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