Da representação enquanto modelo
de governabilidade nas democracias modernas, tendo o povo como fonte do poder e
vontade estatal, ressalta, por via da transferência do exercício do poder do
povo para os seus representantes, a questão da responsabilidade política, de
que não será descabido tratar em véspera de eleições.
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O contorno
histórico e conceitual da responsabilização política
A ideia vai-se sistematizando com
o advento do parlamentarismo britânico pela afirmação do Estado de Direito.
Porém, já na antiguidade grega e romana se utilizaram mecanismos de censura aos
governantes. E o Estado de Direito assegurava que todas as pessoas (governantes
ou governados) estão
sujeitas a jurisdição comum, seja em litígio civil, seja em questões penais.
Foi com o parlamento britânico que
em justiça penal surgiram institutos de responsabilização, como o Bill of Attainder e o Impeachment.
O primeiro, enquanto condenação decretada por lei ou lei-sentença, odiosamente
pessoal e retroativa (considerando alguém culpado pela
prática de crime sem a precedência de processo e julgamento regular em que lhe
seja assegurada ampla defesa)
não resistiu ao avanço político-constitucional, apenas ficando como seu
resquício as exonerações de iniciativa superior discricionária; e o segundo,
como impugnação do mandato, embora com formulação distinta, persiste como contributo
em sede de responsabilização dos governantes.
O impeachment nasce no campo
do direito penal. Da imputação de verdadeiro delito acaba por assumir finalidade
política. Tendo contribuído para castigar colaboradores próximos do Rei, levou
à efetivação da responsabilização política, mas sem afastar as responsabilidades
de natureza penal. Aliás, a responsabilidade política não extingue nenhum outro
tipo de responsabilidade, quer sejam elas em matéria penal, civil, administrativa,
etc.
Segundo Pier Avril (1977), a responsabilidade política é
um “princípio independente e específico em comparação com outros tipos de
responsabilidade”. Na verdade, toda a ação política implica um fundamento e
comporta uma responsabilidade. No âmbito privado, a ideia de responsabilidade
gravita, quase na totalidade, em torno de conduta ilícita (dar,
fazer ou abster-se de fazer),
enquanto no político se restringe à ação do agente político qua tali. O mesmo sucede na
responsabilidade penal onde se encontra sempre a noção de ofensa a um
bem-jurídico tutelado pela ordem vigente, vinculando-se a ideia de culpa individual
à violação à esfera particular de outrem.
Derivando do conceito de
responsabilidade penal, sem excluir outro tipo de responsabilidade, a responsabilidade
política assenta na ideia de que o governante, se governa mal deve ser
politicamente sancionado, constituindo isso a proteção do povo contra o mau
exercício do poder.
Porém, ante a incapacidade de se
fixar um conceito único de responsabilidade, é preciso ter em conta que a
responsabilidade política está em crise pela sua ineficiência nos atuais sistemas
políticos ou comporta significações várias nos diferentes discursos a que se
refere.
Têm de se considerar aspetos institucionais
e sociológicos de cada Estado para que se construa um conceito próprio de
responsabilidade.
Todavia, não há dúvida de que a
ideia de responsabilizar deve, antes de mais, assentar no dever de prestação de
contas e de resposta a quem detém o poder original e que, através dum
procedimento democrático, escolhe os sujeitos que agirão em nome da
coletividade, zelando os interesses da mesma, e não os próprios.
A acentuar a
pluridimensionalidade do conceito de responsabilidade política, é de assinalar
que, segundo Pedro Lomba (2008), “os textos constitucionais primam pela ausência de
definições acerca da responsabilidade política, face às inúmeras possibilidades
de sentidos e dimensões distintas do seu emprego no contexto constitucional”.
Assim, esta responsabilidade implica que o governante seja chamado a responder,
prestar contas das próprias ações junto dos que tem o poder da designação e sujeitar-se
a um juízo de mérito sobre os seus atos e atividades por parte dos governados
com a possibilidade da sua substituição por ato destes. Para José Joaquim Gomes
Canotilho (2006),
“a responsabilidade política é um mecanismo jurídico e político-constitucional
de controlo dos atos dos titulares do poder político”, que implica “o dever de
prestar contas pelos resultados das decisões, atos ou omissões, que os titulares
de funções políticas praticaram no exercício dos respetivos cargos”. Seja como
for, trata-se de responsabilizar o sujeito responsável face às ações que se
repercutam negativamente na sua função ou que sejam contrárias aos objetivos
definidos por quem lhe outorgou o exercício do poder.
Quando as ações dos
representantes destoam da realidade almejada pelo povo, a responsabilização tem
caráter corretivo; e, quando, mesmo que aceites pelo povo, possam ser eivadas
de algum vício, assume funções de fiscalização.
Face ao exposto, convém pensar quem
são os sujeitos passíveis de responsabilização, quem os responsabiliza, que
tipo de responsabilidades se lhes aplica e de que mecanismos dispõem os outorgantes
para responsabilizar seus outorgados.
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Responsabilidade
difusa versus responsabilidade institucional ou uma só responsabilidade?
A distinção entre
responsabilidade difusa e responsabilidade institucional ajuda o entendimento
sobre quem são os responsabilizadores e os responsáveis.
Para Jorge Miranda (2007), a “responsabilidade difusa
implica a responsabilização de todos aqueles que representam o povo, perante
todo o povo, e não apenas perante quem neles votou ou perante quem os elegeu,
nos diferentes círculos” (cf CRP, art.º 152.º, n.º 2). Diz-se difusa, pois qualquer cidadão,
no uso dos seus direitos fundamentais, pode e deve exigir dos representantes esclarecimentos
e prestação de contas dos seus atos, já que eles agem em nome da coletividade e
os seus atos produzem efeitos a todos indistintamente. Para tanto, o povo dispõe
de mecanismos próprios de responsabilização direta dos representantes, entre os
quais se conta a eleição, a petição, a manifestação e a ação popular – com
vista a adequar a participação do povo ao exercício do poder político, enaltecendo-o
como fonte legitimadora das ações dos representantes.
Segundo Rescigno (2013), a responsabilidade política
difusa compõe-se de elementos como a liberdade de crítica política reconhecida
a qualquer sujeito da comunidade política e a existência de vários mecanismos
institucionais para remover o detentor do exercício do poder político – o que
se consegue pela conscientização política das pessoas, criando uma comunidade capaz
de cobrar diretamente dos representantes e, indiretamente, mudar o equilíbrio da
relação política. E o conhecimento por parte dos cidadãos da possibilidade de estes,
com maior efetividade, cobrarem dos representantes justificações sobre aos atos
por estes adotados tem tornado a realidade política diferente da de outrora,
onde o desconhecimento permitia maiores abusos.
Quanto à ideia de responsabilidade
institucional, em Jorge Miranda (ib), que
cita Rescigno, pode ler-se que se trata de “responsabilidade interorgânica ou responsabilidade-fiscalização,
verificada nas relações internas dos sistemas políticos”. Concretiza-se no
direito de oposição decorrente do “exercício coletivo ou em comum de liberdades
fundamentais” (vd CRP, art.º 48.º e art.º 152.º). Mais: a convenção entre duas entidades
políticas coloca uma como responsável pela outra e confia-se nessa qualidade (vd
CRP, art.º 129.º e art.º 190.º).
Assim, o controlo-fiscalização dum órgão para o outro impõe consequências políticas
no cometimento de faltas graves ou de abuso do poder político.
Embora sejam distintos os seus
titulares, as responsabilidades políticas, institucional e difusa, possuem
muitas relações em comum. Com efeito, se há responsabilidade política institucional,
há também a responsabilidade política difusa; e admitir que certos detentores
do poder político institucionalmente responsabilizem outros significa que estes
detentores do poder político – que o fazem a nível institucional – foram
designados para esta tarefa através do detentor original do poder político, o
que revela que este também pode responsabilizar, além dos detentores do exercício
do poder político, aqueles que eles responsabilizam, só que pela via difusa.
É, porém, de advertir que, além
de esta não ser a única forma de responsabilização pela via difusa, as
responsabilidades políticas difusas tendem a converter-se em responsabilidades
políticas institucionais, pois, como a responsabilidade difusa visa mudar o
equilíbrio político, transforma-se para buscar nas instâncias institucionais
maior responsabilidade dos detentores do exercício do poder político. E a
responsabilidade política institucional pode dar lugar a responsabilidade política
difusa, quando as forças que lutam pelo exercício do poder retiram os factos da
responsabilização da estrutura institucional e os tratam como fatos difusos
contrários aos adversários políticos.
Por fim, é de referir que, em
certa medida, a responsabilidade política institucional constitui uma forma de
responsabilidade difusa.
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Quem é o sujeito
passivo, o responsável?
Pedro Lomba (ib.) salienta que “a responsabilidade
política pressupõe a existência de alguém que adquire a obrigação de responder”.
Com efeito, o desafio inicial da responsabilização política reside na ideia de
se identificar o sujeito que tem o dever de prestação de contas junto ao(s)
sujeito(s) responsabilizador(es), que compõem o segundo desafio.
A responsabilidade entende-se em duas
vertentes orgânicas: a individual (que incide sobre um sujeito
específico); e a coletiva
(considerada
a partir dos órgãos que formam a estrutura constitucional do Estado). Porém, há autores que sustentam
que há apenas a responsabilidade individual, pelo que afastam quaisquer formas
de responsabilidade coletiva. Na verdade, é discutível a possibilidade que se
abre, nos casos coletivos, de estender a responsabilização a quem não tenha
contribuído, direta ou indiretamente, no cometimento do facto/ato alcançado.
Todavia, sobretudo nas democracias em que a responsabilidade é in elegendo,
a má escolha feita por um dos representantes torna-o responsável politicamente pela
irresponsabilidade de quem escolheu, devendo-se, para tanto, alcançar
coletivamente toda a estrutura e não só quem cometeu o ato a responsabilizar.
É certo que, se o nomeado cometeu
erros políticos ou praticou atos ilícitos, isso não transforma o ministro que o
designou em responsável jurídico dos atos, mas torna-o politicamente responsável,
já que depositou confiança em alguém que não merecia. A responsabilidade coletiva
mais se aproxima da responsabilidade institucional, pois a responsabilidade interorgânica
tende a estender os seus efeitos a todos os que estão sujeitos à estrutura responsabilizadora.
Assim, nas democracias, admitir
apenas a responsabilização individual é tornar inatingíveis os que devem escolher
bem quem opera as questões públicas, sobrecarregando de ónus o povo.
No âmbito da responsabilidade política
institucional, o que torna um sujeito político num sujeito politicamente
responsável pela via institucional é a sua sujeição a mecanismos especiais de
responsabilização, cuja consequência última é a remoção do cargo. Já no modelo
difuso, a responsabilização fica a cargo de esforços individuais de cada cidadão
ou grupo, sem que haja uma padronização de mecanismos ou estrutura
pré-formatada, embora se reconheça a existência de mecanismos (a
exemplo da eleição)
que têm forma específica. E, no atinente à responsabilidade política difusa, o
sujeito passivo é variável, abrangendo todos os que lutam pelo poder político e
pelos que o exercem, sendo que esta responsabilidade pode ser exercida por
qualquer cidadão contra qualquer agente político.
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Quem é o sujeito
ativo, o responsabilizador?
O segundo grande desafio da
responsabilidade política é reconhecer o sujeito responsabilizador ou os sujeitos
responsabilizadores.
Na responsabilidade difusa, o
sujeito ativo é tão variável quanto o passivo. Os sujeitos ativos são aqui igualmente
variáveis e com capacidade de determinar um desequilíbrio político desfavorável
a quem luta pelo exercício do poder político ou a quem o exerce.
Não há circunstâncias
pré-determinadas suscetíveis de causar a responsabilização, como não há formas,
modo ou tempo, para, em nome da conveniência política, os agentes serem
avaliados por um juízo de responsabilização. Buscando-se a identificação dum problema
de representatividade, uma distorção entre os objetivos da comunidade a os atos
do agente político, está configurada a possibilidade de responsabilização. E é importante
frisar que na responsabilidade difusa o agente político não responde só perante
os que votaram nele, mas perante toda a coletividade, pois estes passam a ser representantes
de toda a coletividade e não só do círculo eleitoral que o elegeu.
Já a responsabilidade
institucional “consiste em utilizar as suas competências constitucionais para
converter a relação de responsabilidade política numa ou em várias obrigações
exigíveis”. Por outras palavras, aqui o sujeito ativo é o dotado de caraterísticas
específicas com medida de poder específico para a realização deste controlo.
Assim, o sujeito responsabilizador será o indivíduo, ou estrutura com
capacidade de crítica qualificada e com o poder de imputar um facto político ao
agente que se visa responsabilizar.
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Que tipo de sanção
decorre a responsabilidade política?
Um outro aspeto relevante na
responsabilidade política é a existência, ou não, de sanção neste modelo de
responsabilidade. E, para aferir da existência, ou não, de sanção, é pertinente
distinguir responsabilidade política de responsabilidade jurídica, se bem que a
responsabilização política não afasta aplicação de outras modalidades de
responsabilidade, como já foi dito.
Nos padrões da responsabilidade
política não há sanção jurídica, porque, em si, a responsabilidade política não
constitui uma forma de responsabilidade jurídica. O conceito de responsabilidade
jurídica circunscreve-se às consequências que se impõem a quem pratica atos que
a lei considera má conduta. Trata-se da sujeição legal ou sanção legal, ou
ainda, consequência adversa atribuída a alguém pelo cometimento de ato que a
lei considera contrário ao ordenamento jurídico. Ao invés da responsabilidade
política, a jurídica pressupõe o descumprimento duma norma ou a prática de conduta
expressamente vedada pelo ordenamento jurídico. Já a responsabilidade política
pode ser invocada por conveniência política se o agente político é considerado incompetente,
inoperante ou age de forma contrária aos anseios sociais, não significando que haja
uma falta legal.
Os resquícios do conceito de
sanção presentes na responsabilidade política devem-se, sobretudo, ao nascimento
desta no direito penal. A responsabilização dos governantes pelo “Impeachment”, traduzida na imputação de delito
ao governante tornou o conceito de sanção, próprio do direito penal, latente no
campo da responsabilidade política. Porém, o princípio da responsabilidade
política funda-se em conceitos distintos e independentes do da responsabilidade
jurídico-penal, embora dele se tenha originado. E, se os mecanismos de responsabilização
política têm elementos constitutivos da responsabilidade jurídica, é demasiado
arriscado aplicar o conceito de sanção, como no direito penal, na área da
responsabilização política.
A representação política
traduz-se numa relação de confiança e é a quebra desta confiança que exige a
responsabilização, a qual não se funda no descumprimento dum preceito
normativo, mas na quebra de confiança existente no pacto social de transferência
de poder da coletividade para um número restrito de representantes. E, se em
algum caso, a quebra de confiança recair sobre uma norma, aí se exigirá a
responsabilização jurídica que, nestes casos, é perfeitamente aplicável. Porém,
em muitos outros, se os liames de confiança se rompem, a responsabilização
assumirá o poder de regresso do povo contra os representantes, tornando-o, outra
vez, ator principal da relação política. E, tornando-se o povo, de novo, mandante
da atividade política e sendo a representação marcada pela temporariedade, não
é razoável ver como sanção os efeitos da responsabilização política, mas como
cessação da função em que se foi investido pelo povo, sem implicação em redução
jurídica e sem atingir normas em concreto.
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Enfim, devem os políticos ter
mais juízo e noção da responsabilidade e o povo assumir mais ativamente a sua
postura como fonte do poder político exigindo a subsequente responsabilização.
2022.01.20
– Louro de Carvalho
AVRIL, Pierre. Mélanges
Offerts a Georges Bourdou – Le Pouvoir. Paris: Librairie Generale de Droit
et de Jurisprudence, 1977.
CANOTILHO, José
Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7.ª ed.
Coimbra: Almedina, 2006.
CRP – Constituição
da República Portuguesa, revisão de 2005.
LOMBA, Pedro. Teoria
da Responsabilidade Política. Coimbra: Coimbra Editora, 2008.
MIRANDA, Jorge. Manual
de Direito Constitucional: Estrutura Constitucional da Democracia. Tomo
VII. Coimbra: Coimbra Editora, 2007.
RESCIGNO,
Giuseppe Ugo. RIDB (Revista do Instituto do Direito Brasileiro),
Ano 2 (2013), n.º 8.
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