sexta-feira, 30 de abril de 2021

Dois terços dos portugueses não confiam nos tribunais e nos juízes

 

É o que emerge em caixa alta nalguns órgãos de comunicação social neste dia 30 de abril, com base numa sondagem da Aximage para o JN, o DN e a TSF, que revela a descrença generalizada no regime. Ou seja, a justiça está na ponta da corda do regime que, tal como funciona, não concita a confiança do povo. E, segundo esta auscultação, por amostragem, aos portugueses, a situação de descrença resulta de os políticos, para 83% dos inquiridos, não serem devidamente fiscalizados e a justiça, para 63%, não ter capacidade para investigar se são corruptos.

A meu ver, é artificiosa a distinção entre políticos e operadores da justiça, porquanto os tribunais são órgãos de soberania como o Presidente da República, o Parlamento e o Governo, entrando todos eles no articulado constitucional que estabelece a organização do poder político. Todavia, os formadores da opinião pública têm vindo a classificar de políticos apenas aqueles e aquelas que ocupam os cargos que resultam do sufrágio direto (Presidente da República, Assembleia da República, assembleias legislativas regionais, assembleias de municipais) ou indireto do eleitorado (Governo, governos regionais, juntas de freguesia…). E, como a generalidade assim trata, não vou eu desafinar.

Entretanto, há uma asserção que não é explicada: “os políticos não são fiscalizados”. Resta saber quem é que fiscaliza os “políticos”. Não cabe tal fiscalização às polícias nem aos tribunais e juízes, a menos que haja suspeita fundada de ilícito criminal ou contraordenacional. Aliás, também poderíamos dizer que os tribunais e os juízes não são fiscalizados. A verdade é que o Governo é fiscalizado pelo Parlamento e, em certa medida, pelo Presidente da República, que pode fazer cair o Governo dissolvendo o Parlamento ou demitindo o Primeiro-Ministro quando estiver em causa o regular funcionamento das instituições democráticas. O Parlamento não tem outra fiscalização que não a dos eleitores em atos eleitorais ou a do Chefe de Estado em caso de dissolução. Já o produto legislativo do Parlamento e do Governo é fiscalizado através do veto presidencial ou da fiscalização prévia ou sucessiva da constitucionalidade e da legalidade.

Quanto aos tribunais e juízes, não se conhece outra fiscalização que não a do Conselho Superior da Magistratura e, quanto às decisões, a fiscalização em sede de recurso – sempre, nestes dois casos intrassistema, longe do escrutínio externo – o que devia ser corrigido a bem da sanidade das instituições e da utilidade do funcionamento em sistema de contrapesos.     

Com efeito, a separação de órgãos do poder político não impede, antes aconselha, o escrutínio recíproco e a exigência do cumprimento das suas funções, sem ingerências na área alheia, por parte de cada um. Mas a crítica deve ser bem-vinda e tida como inevitável. Por isso, é que os conselhos superiores da magistratura (juízes) e do Ministério Público (procuradores) deveriam ser constituídos maioritariamente por elementos indicados pelos outros órgãos de soberania e que pudessem, ao menos, em certos casos, opor o veto a algumas deliberações; e, tal como o Parlamento, o Governo e o Presidente da República deveriam ser dotados de serviços de consultoria e assessoria.  

O trabalho de campo desta sondagem terminou a 25 de abril e não reflete, portanto, o destaque que os partidos da oposição entenderam dar ao tema nas comemorações da revolução. Os portugueses já tinham formado uma opinião negativa e, mesmo que a sondagem não tenha perguntas sobre o caso em concreto, parece clara a contaminação que a Operação Marquês trouxe à avaliação, seja da Justiça, seja da eficácia com que combate a corrupção. Seja como for, os inquiridos estão a revelar que os “tribunais e juízes” são a instituição em que menos se confia, ficando quase a par o Ministério Público (MP) e a Procuradoria-Geral da República (PGR), que também são bastante maltratados. Demasiado apostados na justiça espetáculo!

O cenário é particularmente penoso para “tribunais e juízes”, a instituição em quem os portugueses menos confiam: 62% fazem uma avaliação negativa, indo o destaque para 4 quintos dos inquiridos com 65 ou mais anos, contra apenas 15% que admitem que a confiança é grande ou muito grande. Demasiado presunçosos e maus gestores de comunicação!

No caso da fiscalização aos políticos e detentores de altos cargos públicos, a descrença é geral: 4 quintos dos portugueses acham que não está a fazer-se, com destaque para os inquiridos entre 50 e 64 anos e os que têm rendimentos mais elevados (nove em cada dez) e para os eleitores bloquistas e liberais (fazem praticamente o pleno).

O saldo é negativo para os tribunais, tal como para as outras duas instituições igualmente testadas no inquérito. A confiança no MP é pequena ou muito pequena entre 42% da população – só 31% faz uma avaliação positiva –, ao passo que a PGR recebe nota negativa de 35% dos inquiridos, sendo que 27% faz uma avaliação positiva. Nestes dois últimos casos, a análise por segmentos indica que há algumas exceções: entre os mais novos (18 a 34 anos) e os mais pobres, são em maior número os que confiam no MP e na PGR. Da avaliação por parte das escolhas partidárias, a PGR merece o benefício da dúvida entre os eleitores do PS e do PSD. Mais à esquerda (BE e CDU), a confiança é menor. Onde a desconfiança é mais forte é à direita (Chega e Iniciativa Liberal), tanto nos procuradores como nos juízes.

No passado dia 12 de abril, Rui Rio recorreu ao que parecia ser um tremendismo retórico. Poucos dias após o despacho do juiz Ivo Rosa relativo à Operação Marquês – que fez cair, pelas prescrições e falta de provas, a maior parte das acusações sobre personalidades como José Sócrates e Ricardo Salgado –, o líder do PSD denunciava uma justiça que “o povo não entende” e que constitui “o pior exemplo da doença do regime”.

A julgar pelos resultados do barómetro de abril da Aximage, o líder socialdemocrata está em sintonia com a grande maioria dos portugueses. Mas não ficou sozinho nesse palco por muito tempo. Na sessão comemorativa do 25 de Abril na Assembleia da República, o combate à corrupção, a criminalização do enriquecimento ilícito, a impunidade dos poderosos e a descrença na justiça dominaram os discursos, da direita à esquerda. A exceção foi o PS, mas que viu, no dia 29, o Conselho de Ministros aprovar a Estratégia Nacional contra a Corrupção, que alguns consideram insuficiente e denotadora da falta de vontade política para minorar o flagelo que depaupera o Estado e a sua eficácia e credibilidade.

Quando o que está em causa é a capacidade de a justiça investigar a corrupção entre os políticos e os altos cargos públicos, dois terços dizem que ela não existe. Os mais pessimistas são os homens (mais 9% que as mulheres); a faixa etária dos 35 aos 49 anos e os que estão no topo das classes sociais (7 em cada 10); e os eleitores da nova direita liberal e radical (8 em cada 10).

A sondagem também procurou avaliar o grau de confiança dos cidadãos numa série de instituições com algum papel na legislação, fiscalização, denúncia, investigação ou julgamento de casos de corrupção. O cenário não é animador para a maioria. Mas é particularmente penoso para tribunais e juízes, como se viu, e também para o MP e a PGR.

Também os partidos, que têm uma função instrumental na democracia, não estão imunes da desconfiança. Quando se pergunta aos portugueses se confiam neles para liderar os destinos do país, 45% dão resposta negativa, sendo que 21% manifestam uma confiança grande ou muito grande. E o saldo é positivo só entre os mais pobres e entre os eleitores socialistas e comunistas.

À comunicação social, que alguns definem como um contrapoder e outros como o quarto poder, muitos dos cidadãos a obsequeiam com a sua desconfiança: 43% dão nota negativa, enquanto 27% mantêm a confiança. Há, no entanto, dois segmentos da amostra em que é maior a confiança do que a desconfiança: entre os mais pobres e entre os que vivem na Região Norte.

Já a Assembleia da República, a “Casa da Democracia” e “casa dos partidos” está mais bem cotada que os partidos que a compõem. Não obstante, o saldo é negativo: 39% dizem que a sua confiança no Parlamento para legislar para o bem comum é pequena ou muito pequena, enquanto 34% dizem ser grande ou muito grande. O saldo só é positivo entre os mais jovens, os habitantes da Área Metropolitana do Porto, os mais pobres e os que votam no PS e na CDU.

Por seu turno, o Governo, que emana da vontade dos partidos com assento na Assembleia da República, consegue arrecadar um saldo positivo: são mais os que confiam (42%) do que aqueles que desconfiam (30%). Nesta matéria, a posição no espectro político faz a diferença: à esquerda há mais confiança, com destaque para os eleitores socialistas, enquanto à direita o saldo é negativo, com destaque para a direita radical e liberal.

No atinente à Presidência da República, embora a questão não fosse diretamente sobre Marcelo, mas sobre a instituição em si, todavia, o contágio entre a personalidade e o cargo é inevitável. E a Presidência da República é, sem dúvida, a instituição que gera maior confiança entre os portugueses: 65% acreditam que é o garante da Constituição, havendo apenas 12% a manifestar a sua descrença. É assim em todos os segmentos da amostra, com destaque para os cidadãos mais velhos e os eleitores socialistas, comunistas e socialdemocratas.

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Isto não é novo. Só a título de exemplo, é de referir:

A 9 de julho de 2013, a Lusa dava conta de que um estudo pedido pela associação Transparência e Integridade – coordenado por Luís de Sousa, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, e feito por três investigadores de universidades de Lisboa e da referida associação – referia que 70% dos portugueses encaravam a corrupção como um problema sério ou muito sério no setor público; 78% consideravam que a corrupção piorara em Portugal nos últimos dois anos; 60% achavam que os contactos pessoais eram importantes para obter serviços ou acelerar procedimentos na administração pública; e mais de metade (53%) considerava que “o Governo estava nas mãos dum conjunto restrito de grupos económicos” e temia que as decisões políticas fossem tomadas sem independência, favorecendo esses grandes interesses económicos.

No respeitante à justiça, 42% achavam que a justiça não protege de represálias quem denuncia a corrupção ou colabora com as autoridades. De acordo com o estudo, 85% acreditavam que o envolvimento dos cidadãos é fundamental no combate à corrupção.

Já no que toca ao pagamento de subornos a nível da Europa, 11% dos inquiridos admitem ter pago subornos em pelo menos um de 8 tipos de serviços públicos nos últimos 12 meses.

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A 25 de outubro de 2016, um estudo da DECO revelava que o desconhecimento e a desconfiança do sistema judicial estão ligados, em particular nas mulheres, nos cidadãos com idades compreendidas entre os 30 e os 44 anos e em pessoas com escolaridade média e baixa.

Os resultados do estudo foram publicados na edição de novembro/dezembro da revista “Dinheiro&direitos”.

E, numa escala de 1 a 10, o índice de confiança no sistema de justiça é de 3,4 e, mesmo no caso dos homens com mais de 45 anos, que se revelaram menos céticos e com escolaridade elevada (cujo patamar mínimo era o bacharelato), o índice de confiança situa-se abaixo de quatro.

À pergunta “Se for do interesse nacional, o Governo pode alterar uma sentença do tribunal?”, sendo três as hipóteses de resposta “verdadeiro”, “falso” e “não sei”, menos de metade dos inquiridos (49%) respondeu corretamente, o que, para os responsáveis do estudo, significa que a maior parte dos portugueses desconhece ou tem dúvidas acerca da separação de poderes, um dos mais importantes pilares da democracia; 34% dos inquiridos disseram não saber; e 17% responderam “verdadeiro” àquela questão.

Questionados sobre se qualquer cidadão que tenha cometido um crime tem acesso a advogado pago pelo Estado, 81% dos inquiridos responderam verdadeiro, 9% responderam “falso” e 10% disseram “não sei”.

De acordo com o estudo, o índice de conhecimento sobre a justiça (numa escala de 0 a 5) era de 1,98, enquanto o de confiança (de um a 10) se situava nos 3,4 e o de confiança por género (também numa escalada de um a 10) se cifrava em 3,2 (no caso das mulheres) e de 3,6 (homens).

E 61% dos inquiridos tinham baixo nível de informação sobre o sistema judicial, 29% um nível médio e apenas 10% têm um nível alto de informação. Relativamente aos direitos dos cidadãos face à justiça, 54% dos inquiridos têm um nível de informação baixo, 36% têm um nível de informação médio e 10% têm nível de informação baixo. Quanto à confiança geral na justiça, 69% dos inquiridos tinham um baixo grau de confiança, 24% tinham um grau médio e 7% dos inquiridos tinham um grau elevado de confiança. E relativamente à independência do sistema judicial, 77% tinham um nível de confiança baixo, 18% um nível de confiança médio e 5% um nível de confiança alto.

No atinente ao nível de confiança relativa à questão sobre se se todos os cidadãos são iguais perante a lei, 71% tinham um nível de confiança baixo, 22% tinham um nível de confiança médio e 7% tinham um nível de confiança alto.

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E, a 29 de março de 2020, o Correio da Manhã (CM) referia que 8 em cada 10 portugueses não confiavam na Justiça. Mais: as suspeitas de irregularidades nos sorteios para a distribuição de processos no Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) aumentaram a desconfiança de 46,3%. Para 32,4% nada mudou: a confiança já era baixa.

Tais suspeitas foram levantadas após ser revelada uma troca de mensagens entre o ex-presidente do TRL, Vaz das Neves e Rui Rangel, que indiciavam a viciação dum caso que opunha o último ao CM, e fizeram mossa na confiança que os portugueses têm na Justiça.

Quase 8 em cada 10 inquiridos numa sondagem CM/Intercampus assumiam que pouco confiavam no sistema judicial. Tínhamos então quase 80% dos portugueses com reduzida confiança nesta área. Ainda assim, a maioria (56%) fez questão de acompanhar a discussão pública sobre o tema, mostrando-se  “relativamente informados”.

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Quer isto dizer que a justiça carece de urgente reforma, mas que não pode ser dissociada da urgente reforma de todo o Estado, sem que isso o venha a descaraterizar como Estado de direito democrático e Estado social. E a justiça há de ser o barómetro desse Estado.

2021.04.30 – Louro de Carvalho   

quinta-feira, 29 de abril de 2021

“Os espaços litúrgicos dos primeiros cristãos”

 

Muitos contestam a atual profusão de templos (basílicas e catedrais, igrejas, santuários capelas…) aduzindo que os primeiros cristãos faziam as suas reuniões formativas e celebrativas em casas particulares. Esquecem provavelmente que, por um lado, era preciso romper com a tradição cultual umbilicalmente conexa com o Templo de Jerusalém – que, aliás, os primeiros cristãos frequentavam e onde os apóstolos iam rezar e ensinavam (cf Lc 24,53; At 2,46; 3,1-26; 5,12-16) – para implantarem o culto “em espírito e verdade” (Jo 4,23.24) e, por outro, o facto de ainda não terem as comunidades cristãs o reconhecido estatuto de religião tolerada pela sociedade coeva.

Espero, assim, que o livro “Os espaços litúrgicos dos primeiros cristãos. Fontes literárias dos primeiros quatro séculos”, de Isidro Lamelas (docente na Universidade Católica Portuguesa), que o Secretariado Nacional de Liturgia acaba de publicar, faça luz sobre o tema.

No dizer do SNPC (Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura), o autor “já nos habitou a este exercício de ‘escavar’ nas fontes e nas ‘origens’ cristãs” e o livro introduz-nos no tema “com generosa documentação, na realidade arquitetónica e litúrgica dos primeiros cristãos” e documenta “a primeira evolução dos lugares de culto cristão, numa espécie de pré-história da arquitetura cristã, que abrange os primeiros quatro séculos depois que o Verbo Se fez carne”.

Desde que o Verbo habita entre nós, os humanos habitam o mundo de forma nova, ou seja, o lugar de Deus coincide, por Cristo, com a comunidade reunida (cf Mt 18,20). Nestes termos, lugar em que a comunidade dos batizados se encontre é chamado “domus Dei e cada homem ou mulher, no seu lugar e vida concreta é pedra viva desse edifício sempre em construção. O facto de os cristãos usarem o mesmo nome para designar a assembleia que se reúne na liturgia e o espaço físico-arquitetónico onde ela se congrega mostra como a liturgia e a arquitetura cristãs andam sempre de mãos dadas. Assim, mais do que de arquitetura sagrada ou religiosa, deveria falar-se, sobretudo para os primeiros séculos, de arquitetura litúrgica, pois, “é parte constituinte da liturgia a edificação da Igreja, tanto enquanto comunidade cultual, como enquanto lugar e ambiência onde decorrem as ações rituais da liturgia” (vd SPNC).

Pelo menos desde o Tertuliano (séc. II), o termo “ecclesia, além da comunidade reunida para o culto, designa a “casa do culto”. Isto, porque “o edifício significa a Igreja; e a igreja-edifício é expressão duma construção espiritual feita de pedras vivas. A metonímia que identifica a assembleia celebrante com o espaço que a abriga é evidenciada no discurso mistagógico, ou melhor, a própria mistagogia é uma forma de ‘edificar’ a igreja com ‘pedras’ visíveis que participam daquele duplo significado. Santo Agostinho explica-o bem:

Nós chamamos ‘igreja’ a basílica, na qual estão reunidos os fiéis, os únicos aos quais se aplica com propriedade o termo ‘igreja’; de modo que, mediante o termo ‘igreja’, isto é, ‘os fiéis’ nessa contidos, indicamos o lugar que os contém... Por isso, a basílica não deixa de se chamar ‘igreja’, ainda quando nela não estão os fiéis.” (Carta 190,5,19).

Como lembra Dom José Manuel Cordeiro, no Prefácio ao livro, “o lugar da celebração (igreja) é muito mais do que um edifício, é a casa para a assembleia do povo de Deus” (domus ecclesiae = casa da Igreja). E, como refere o ilustre prelado, o sinal do templo exprime “os vários momentos e modos da presença de Deus no meio dos homens, desde o templo cósmico do Éden à terra prometida, da tenda do deserto ao templo de Jerusalém, da humanidade de Cristo às casas da Igreja e a cada um dos seus membros”, pelo que “a reforma litúrgica apresenta o significado da igreja-edifício como sinal visível do único templo que é o corpo pessoal de Cristo e o seu corpo místico, a Igreja, que celebra em determinados lugares o culto em espírito e verdade”. Determinante é a ordenação do espaço sagrado em função do trinómio altar, ambão e sede. À volta destes três elementos congrega-se a assembleia: comunidade de escuta da Palavra de Deus, comunidade orante e comunidade que vive dos sacramentos.

Nos dois primeiros séculos, os cristãos não dispunham de lugares fixos de culto para a ação litúrgica. O Batismo realizava-se onde houvesse água. Para escutar a Palavra de Deus e celebrar a Eucaristia serviam as salas amplas de casas particulares, sendo que, em muitos casos, os seus donos as destinavam em exclusivo para o efeito. Surgem, pois, as “domus ecclesiae  adaptadas às necessidades das assembleias cristãs e onde se inicia “um processo de ritualização e sacralização que leva a reservar determinada sala, mesa ou cálice usados por um apóstolo ou outra testemunha da fé”. Tais imóveis vão-se estruturando em resposta às várias necessidades da comunidade: de acolhimento, litúrgico-celebrativa, caritativa, residência do responsável da comunidade. “Os vários lugares são articulados entre si e o mais importante está reservado para a ceia do Senhor(Dom José Cordeiro).

Com a progressiva estruturação da Liturgia e com o crescimento das comunidades, mormente a partir do século III, tornaram-se necessários espaços maiores e ganha relevância o espaço da celebração, pelo que surgem as basílicas. O termo “ecclesia (igreja e casa da igreja) ou “basílica(casa do Rei: o rei é Cristo) é usado para indicar o lugar da reunião dos fiéis. E, com Constantino, a imagem exterior do lugar do culto espelha a grandeza da sua verdade interior. “Passa-se assim do facto celebrativo ao lugar da celebração: o enriquecimento do lugar e a sua decoração, que se faz mistagogia, pretendem que ele seja digno do Rei divino que aí mora – a domus Dei, a domus Regis ou simplesmente basílica”. A sua dedicação é festa do povo de Deus, “uma manifestação esplêndida da igreja saída da perseguição” (Dom José Cordeiro).

Como se disse e a reforma litúrgica conciliar recuperou, a ordenação do espaço sagrado em função do trinómio altar, ambão e sede suscita a congregação duma assembleia que escuta, ora e vive dos sacramentos. A igreja é a casa da Igreja, a morada da comunidade convocada.

Segundo Santo Agostinho, “a fé não se preocupa com examinar a beleza dos elementos deste edifício, mas com a grande beleza do homem interior, da qual procedem estas obras de amor”, mas “o Senhor recompensará, por isso, os seus fiéis que realizaram tais obras, tão alegre e devotamente, de modo a acompanhá-los na edificação da sua própria construção, para a qual contribuem como pedras vivas a que a fé deu forma, a esperança deu consistência e a caridade deu perfeição(Santo Agostinho, Sermão, 337).

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Em cada época da história do cristianismo, as pessoas souberam fazer-se presentes no espaço litúrgico e as igrejas eram construídas de forma diferente. Vejamo-lo sucintamente.

Do século I ao século III. No começo do cristianismo não havia locais reservados ao culto; as celebrações eram realizadas nas casas dos fiéis. Com o tempo, as casas tornaram-se pequenas para abrigar as pessoas. Por isso, compram-se casas maiores e dá-se-lhes uma divisão capaz de acolher as celebrações. Tais casas são conhecidas como “domus ecclesiae(casa da Igreja). Nelas os cristãos repetiam a Ceia de Jesus (o partir do pão) e eram enviados (missi) para testemunhar a fé na vida quotidiana. A Igreja é antes de mais, as pessoas reunidas (a palavra “igreja” significa congregação, assembleia). Por isso, temos a “casa da Igreja” e, por metonímia a “igreja” (templo).

É de registar que a liturgia, para os primeiros cristãos, não acontecia num único local, como hoje acontece. Os primeiros cristãos caminhavam para os diversos lugares de reunião: o local da Palavra, o local da Eucaristia, o local do Batismo. Por isso, hoje há o movimento do sacerdote para o local da “Palavra”, para o da cadeira da “presidência”, para o “do batismo”, entre outros.

É de recordar que, em tempo de feroz perseguição, a Celebração, muitas vezes, era feita às escondidas. Porque era usual a cremação dos cadáveres em Roma e os cristãos pugnavam pela inumação, proibida no centro das cidades, usando do direito de associação para fins funerários, construíam cemitérios subterrâneos fora da Cidade (catacumbas: uma série delas), onde sepultavam os seus mortos apondo nas lápides símbolos cristãos, prestavam culto aos mártires e, muitas vezes, celebravam os diversos atos de culto, escapando às investidas do exército Romano.

Séculos IV e V. Com o Édito de Milão (ano 313), Constantino concede a liberdade religiosa a todo Império. E, em 380, com o Édito de Tessalónica, Teodósio declara o cristianismo a religião oficial do Império. Com esses episódios da História, há certa paz nas perseguições aos cristãos e o Imperador passa a construir grandes templos para que os cristãos possam lá reunir-se.

As pequenas casas começam a ser trocadas pelas grandes igrejas, as basílicas, que são edificadas a pensar nas basílicas civis romanas (lugar da presença do basileu – chefe como se fosse o rei). Mas, para diferenciar as basílicas cristãs (usadas para celebrações) das basílicas civis, houve adaptações: no lugar ocupado pelo magistrado, fica o bispo; no lugar da deusa da justiça, fica o altar; no lugar das tribunas, fica a mesa da Palavra. E acrescentam-se: o átrio (hall coberto onde havia água para se servir e lavar, também usado para o batismo); a abside (abóboda arredondada que se projeta para fora da estrutura geral da igreja – nela fica a figura de Cristo Mestre e Pastor).

Não há imagens além da cruz, que aparece como “árvore da vida”. E Cristo não é o sofredor, mas o sacerdote entregue ao Pai, olhos abertos, não morto.

Do século V aos séculos XV/XVI. Na Idade Medieval (10 séculos – 1.000 anos), as transformações na humanidade foram enormes, foram descobertas e aplicadas muitas técnicas de construção e reordenou-se o espaço litúrgico segundo categorias alegorísticas. Assim, o altar representa o calvário, os gestos e movimentos do celebrante são interpretados em relação à Paixão de Jesus (sofrimento e morte) e, ao inclinar-se, representa Jesus a inclinar a cabeça na cruz; a liturgia torna-se exclusiva do clero e os fiéis alimentam a espiritualidade com as devoções privadas (o rosário com 150 Ave-Marias é o saltério dos pobres, que não sabem latim e não são admitidos na liturgia coral dos monges).

Na arte românica (séc. XI-XIII), a pedra foi empregada na construção e o telhado de madeira foi trocado por abóbadas. A basílica românica é luminosa; o altar é único e situa-se no centro do transepto; e todas as pessoas estão circunstantes (ao redor), num movimento dialógico-circular, indicando comunicação na comunidade.

Na arte gótica (séc. XII ao XVI), fez-se sentir a mudança de mentalidade surgida no final do 1.º milénio vindo a provocar a mudança no estilo arquitetónico e artístico. Do românico passa-se ao gótico. A arquitetura gótica possibilita a ampliação na altura das construções aprimorando o espaço através do vitral para criar a ilusão da tridimensionalidade. As igrejas erguem-se e tornam-se mais escuras e esguias, exprimindo a relação vertical da devoção pessoal-privada.

Doa séculos XV ao século XVIII (Idade Moderna). É tempo do barroco, com o excesso decorativo, emoção, linhas contorcidas, movimento, exuberância, busca de efeitos que sensibilizem e criem impactos, sobretudo, através da luz e da ilusão ótica. Os espaços são carregados de imagens, anjos, santos, altares e pinturas ilusionistas. É tempo da Reforma Tridentina (contrarreforma), impulsionada pelo Concílio de Trento (1545- 1563). O Concílio vem em defesa e consolidação da fé Católica. Porém, no referente à liturgia, o altar, tornado suporte de imagens, é deslocado para a parede da abside; o presidente dá as costas à assembleia e o povo de participante passa a assistente. Aumentam os pedidos de celebrações de Missas, pelo que se multiplicam os altares nas naves laterais para a celebração das missas privadas. O altar está distante do povo até se constituírem verdadeiras barreiras com paredes, balaustradas e elevação do mesmo (o padre sobre os degraus) para se aceder aos túmulos dos santos e mártires colocados debaixo do altar (criptas). Os santos tomam o lugar de Cristo. Prevalece a espiritualidade individual e intimista.

Do século XVIII ao século XXI (Idade Contemporânea). O estilo rococó (séc. XVIII ao XIX), surgido na França, vindo do Barroco, torna-se um pouco mais leve e intimista. De início era usado para decorações de interior. As principais caraterísticas são: cores claras; tons pastel e dourados; representação de alegorias; estilo decorativo; e texturas suaves.

Entretanto, após o cansaço gerado pelos neoestilos e o exagero barroco e rococó, surge o “Movimento Litúrgico” originado em grupos que pensam o futuro da liturgia e desejam que as comunidades redescubram o gosto pela celebração e pela participação ativa. O papa São Pio X, através da exortação ‘Tra le Solecitudini(22 de novembro 1903), revela a preocupação por “uma participação ativa nos sagrados mistérios e na oração pública e solene da Igreja”. Busca-se um espaço para a celebração sóbrio e capaz de manter os fiéis voltados para o núcleo da celebração. Os momentos devocionais têm lugar, mas fora da celebração comunitária e dos sacramentos.

Depois, o “Concílio Vaticano II(1962-1965) viu a necessidade da Reforma na Liturgia. E a Constituição “Sacrosanctum Concilium”, no ano de 1963, mostra o desejo de retorno às origens da fé celebrada com base e centro no Mistério Pascal de Jesus e com a participação ativa da assembleia resgatando o sentido da celebração comunitária. Por isso, o altar desloca-se da abside e novamente volta-se para o povo; a participação é melhorada pelo canto e pelas orações na língua de cada país; e é fomentada a concelebração em detrimento da missa em privado.

Assim, o “Espaço Litúrgico” atual, mais do que o lado artístico e estético, configura uma nova hermenêutica da Liturgia. Este espaço revela o Cristo glorioso na sua totalidade: cabeça e membros. A ação que se desenvolve tem em conta a dinâmica de fé que leva à participação.

Divide-se o Espaço Litúrgico atual em três partes “principais” e três partes “complementares”. As três partes principais são: o presbitério (com: o altar, símbolo de Cristo, para a Eucaristia; o ambão, para a proclamação da Palavra; a cadeira presidencial, para o sacerdote que preside em nome de Cristo; e a cruz, símbolo da entrega de Jesus para nossa redenção), a nave (com a bancada para a assembleia, ladeada pelas imagens e roteiro da via sacra) e o batistério (com a pia e o círio pascal). E as três partes complementares são: a capela do Santíssimo (em cujo sacrário se guarda a reserva eucarística, que se adora e leva aos doentes), a sacristia (que guarda as alfaias litúrgicas, se paramentam os ministros e donde parte o cortejo processional) e o átrio (lugar de acolhimento e de antecâmara para o espaço litúrgico interior). Todas estas partes devem estar em harmonia para formarem o Espaço Litúrgico e serem locais de encontro com o sagrado.

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Esperamos que o predito livro faça luz para podermos ver se estamos perante uma genuína refontalização ao Evangelho e vida dos primeiros cristãos e, por outro lado, seguros de não termos desperdiçado as verdadeiras descobertas cristãs espirituais e eclesiais – de beleza, simplicidade e dignidade – que a História da Igreja pôs à nossa disposição. 

2021.04. 29 – Louro de Carvalho

quarta-feira, 28 de abril de 2021

Beatificação do Servo de Deus José Gregório Hernández

 

No próximo dia 30 de abril, sexta-feira, na igreja do colégio La Salle, em Caracas, Dom Aldo Giordano, Núncio Apostólico na Venezuela, presidirá a celebração da Missa em que será proclamado Beato o Dr. José Gregório Hernández, considerado o Doutor dos Pobres” – uma das beatificações mais esperadas pelo povo venezuelano.

Estava previsto que o Cardeal Pietro Parolin, Secretário de Estado da santa Sé, que foi núncio apostólico na Venezuela pouco antes de assumir o seu atual ministério no Vaticano, presidisse à Missa com a beatificação, tendo ao lado dos cardeais venezuelanos Baltazar Porras e o emérito de Caracas Jorge Urosa Savino, bem como o atual núncio apostólico. Porém, a Sala de Imprensa da Santa Sé divulgou uma nota na quarta-feira, 28 de abril, a comunicar o cancelamento da viagem do Secretário de Estado, devido à pandemia de covid-19.

Somente 150 pessoas poderão participar na cerimónia de beatificação deste médico venezuelano, que não ocorrerá na grandiosidade do Estádio Olímpico da Universidade Central da Venezuela, sua Alma Mater, mas na predita igreja do colégio La Salle, em Caracas, local que, segundo a coordenadora da Comissão Nacional para a Beatificação, Albe Pérez, se encontra na zona da cidade onde José Gregorio Hernández desenvolveu grande parte do seu trabalho como médico, com especial atenção aos mais desfavorecidos.

Em conferência de imprensa virtual, acompanhada pelo Cardeal Baltazar Henrique Porras Cardozo, a coordenadora comentou que o número estimado de participantes diminuiu significativamente com a mudança de local. No entanto, como bem referiu Pérez, a redução do alcance físico da celebração tem em vista “garantir a saúde dos paroquianos”. Assim, a decisão de celebrar a cerimónia de forma “muito austera”, mas com um fervor transbordante, pretende evitar que se torne um foco de contágios da covid-19, especialmente neste momento, quando a segunda onda da pandemia atinge o país em força.

Não obstante, estarão presentes os arcebispos e bispos da Venezuela, que estarão juntos pessoalmente pela primeira vez desde antes do início da pandemia, bem como pequenos grupos de sacerdotes e algumas Congregações religiosas da Província de Caracas.

A celebração contará com a presença de Yaxury Solórzano, a menina que foi contemplada com o milagre por intercessão de José Gregorio Hernández, na companhia da mãe e da irmã. Estarão também presentes familiares do Dr. José Gregorio Hernández, bem como um pequeno grupo de médicos e três pessoas com mobilidade reduzida, representando todos aqueles que em tempos de doença confiaram ou ofereceram a sua saúde a José Gregorio Hernández.

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Cento e sessenta relíquias com pequenos fragmentos de ossos do Beato Dr. José Gregorio Hernández foram confecionadas com devoção e delicadeza pelas Irmãs Servas de Jesus, Congregação fundada pela Beata, também venezuelana, Madre Carmen Rendiles. E já estão prontas para serem distribuídas dentro e fora da Venezuela – 40 dioceses e arquidioceses já têm seu relicário –, pois a fama de santidade do futuro beato ultrapassou as fronteiras, sobretudo, para pedir a sua intervenção milagrosa nos problemas de saúde, nas atribulações da doença e aquando da proximidade da morte.

O pedido da confeção dos relicários partiu do Cardeal Baltazar Henrique Porras Cardozo, Arcebispo de Mérida e Administrador Apostólico de Caracas, “para que haja uma relíquia do esqueleto do beato em todas as dioceses e paróquias”. A informação é de Dom Tulio Ramírez, Bispo de Guarenas e vice-postulador da Causa de Beatificação e Canonização do Dr. José Gregorio Hernández, em vídeo com a representação das com as Irmãs Servas de Jesus.

Assim, a 30 de abril, finalizada a cerimónia da beatificação, muitas dessas relíquias serão colocadas em santuários e paróquias já existentes e nos que serão dedicados ao Beato “Doutor dos Pobres”.

Os relicários também estão prontos para serem enviados a 40 dioceses e arquidioceses do país, informou na sua conta do Twitter a Arquidiocese de Caracas. A conceção e execução do relicário é obra das venezuelanas Matilde Sánchez e María Teresa Aristiguieta.

Na base, um microscópio feito de ferro venezuelano que simboliza a paixão e dedicação científica do Dr. Hernández. Como corpo, o seu caraterístico chapéu que recorda sua presença e generosidade de espírito. Por fim, no ápice, a relíquia rodeada por uma auréola de pérolas da Ilha de Margarita, que evoca a sua devoção ao Santo Rosário.

As relíquias foram extraídas da exumação dos restos mortais do Dr. José Gregorio Hernández, ocorrida a 26 de outubro de 2020.

Durante a cerimónia, além da relíquia do Dr. José Gregorio Hernández, será revelada a imagem oficial em comunhão com a Diocese de Trujillo, onde fica Isnotú, local de nascimento do venerável. Em todo o caso, a Igreja esclarece que não tem a intenção de “impor” uma imagem única, já que José Gregorio Hernández está presente na mente e no coração das pessoas há mais de 70 anos, com diferentes representações gráficas.

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Enquanto são ultimados os preparativos da cerimónia austera por conta da pandemia, o CELAM (Conselho Episcopal Latino-Americano) une-se à alegria da Igreja na Venezuela.

A este respeito, diz Dom Miguel Cabrejos, Presidente do CELAM e Arcebispo de Trujillo (Peru), numa videomensagem em que se une à alegria de todo o povo de Deus que peregrina na Venezuela para a beatificação do “Doutor dos Pobres”, que “o testemunho de proximidade, de ternura, de misericórdia, de Jesus ressuscitado, faz-se realidade no mundo de hoje com o samaritano do nosso tempo, o agora beato José Gregorio”.

Na mensagem, o presidente do CELAM destacou o admirável ensinamento de vida do Dr. Hernández que “optou pelo cuidado e compaixão pelos enfermos como único sentido da sua vida, misturando-se com os enfermos, rejeitados, oprimidos e necessitados”. E acrescentou:

A sua prática profissional e a sua caridade cristã, fundadas no amor à Eucaristia e na sua comunhão diária, mostram-nos a riqueza do diálogo entre a ciência e a fé, quando esta se coloca ao serviço da pessoa humana, de maneira especial dos mais necessitados”.

Por fim, exprimiu o seu desejo de que o novo beato interceda diante de Deus e da Virgem de Coromoto, padroeira da Venezuela, pelos fiéis da América Latina e do Caribe, para que “sejam testemunhas de uma Igreja samaritana, em saída, missionária e sinodal”.

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A 26 de janeiro, depois de a Arquidiocese de Caracas ter anunciado, no dia 24, que a celebração da beatificação de José Gregorio Hernández seria realizada no final de abril, o Padre Honegger Molina, vigário episcopal para os Meios de Comunicação da Arquidiocese, informou que o Santo Padre já tinha assinado o respetivo decreto e se aproximava o momento do ato litúrgico, passo necessário para José Gregorio Hernández ser elevado às honras dos altares, na Venezuela. Nesse sentido, convidava os venezuelanos a prepararem-se convenientemente nos meses que precedem o rito litúrgico de beatificação, pois, como disse, “a Venezuela, este ano, abre as portas da esperança e da alegria”.

A Santa Sé havia reconhecido o milagre atribuído à intercessão do Dr. José Gregório em abril de 2020 e que, em 19 de junho, o Papa havia autorizado a Congregação das Causas dos Santos a prosseguir com a beatificação. E, a 26 de outubro, dada a proximidade da beatificação, foi realizada nova exumação dos restos mortais do Doutor Gregório, que jazem na Igreja Nossa Senhora da Candelária, na Arquidiocese de Caracas, para onde foram transferidos em 1975 do Cemitério Geral, visto o grande número de devotos que visitavam seu túmulo.

O Doutor José Gregorio Hernández Cisneros, conhecido como “o médico dos pobres”, nasceu a 26 de outubro de 1864, em Isnotú, no Estado Andino de Trujillo. Foi o primeiro de seis irmãos.

Formou-se em medicina em Caracas e prosseguiu os seus estudos em Paris, Berlim, Madrid e Nova Iorque. Tornou-se professor universitário e introduziu o uso do microscópio no país. Fundou a cátedra de Bacteriologia na Universidade de Caracas.

A sua fé forte levou-o a entrar, em 1908, na Certosa di Farneta, na província de Lucca, na Itália, porque queria tornar-se monge. Voltou à Venezuela por motivos de saúde. Alguns anos depois, voltou novamente à Itália para estudar Teologia, frequentando o Colégio Pio Latino-americano, em Roma. Mais uma vez adoeceu. Tornou-se Terciário franciscano. Durante a epidemia de febre espanhola, acompanhou e curou os doentes.

Viveu a sua profissão como uma missão, dedicando a vida, acima de tudo ao serviço dos mais pobres e necessitados, aos quais muitas vezes doava medicamentos, comprados com o seu próprio dinheiro. Foi um grande profissional médico, um cientista, um pensador e, sobretudo, um fervoroso fiel que acreditava em Deus, em quem colocou toda a sua sabedoria e a sua atuação profissional e humana.

Em 29 de junho de 1919, o Dr. Hernández entrou numa farmácia de Caracas para comprar um remédio para um paciente idoso que havia visitado pouco antes. Assim que saiu, foi atropelado por um dos poucos carros em circulação na época. Transportado para o hospital, recebeu a Unção dos Enfermos e veio a falecer pouco depois invocando a Virgem Maria.

A 20 de junho de 2020, depois de o Papa ter assinado o decreto para a beatificação, Dom José Luis Azuaje Ayala, presidente da Conferência Episcopal da Venezuela (CEV), comentando o anúncio da beatificação de José Gregório Hernández Cisneros, conhecido como “o médico dos pobres”, afirmou numa nota: “Um sinal de forte esperança a fim de enfrentar este momento difícil para o país”.

Pode ler-se nota da CEV:

O Dr. Hernández caraterizava-se pelo seu serviço aos mais pobres e a todos aqueles que dele precisavam. Foi um grande profissional médico, um cientista, um pensador e, sobretudo, uma fervorosa pessoa que acreditava em Deus, em quem colocou toda a sua sabedoria e a sua atuação profissional e humana”.

E Dom Azuaje aponta:

Formador de várias gerações de médicos que seguiram o seu caminho, conhecedor lúcido da realidade venezuelana, nunca parou diante dos desafios, por mais difíceis que fossem, mas sempre os uniu à sua vocação de serviço a Deus”.

Neste momento marcado pela pandemia do novo coronavírus, o anúncio da sua beatificação é um instrumento para “fortalecer a esperança” que ajudará a Venezuela a “superar este estado de privação e dificuldade que a população está a viver, especialmente os mais pobres e marginalizados”.

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A 29 de abril de 2020, a Congregação para a Causa dos Santos informava o Cardeal Baltazar Porras de que a Comissão Teológica, composta por 7 especialistas, aprovara o milagre atribuído à intercessão do Dr. José Gregorio Hernández, na cura da menina Yaxury Solorzano. O arcebispo venezuelano recordou que, há 102 anos, na companhia de outros proeminentes médicos venezuelanos, o Dr. José Gregório deu o melhor de si para cuidar dos doentes vítimas da epidemia de gripe espanhola que causou estragos em todo o mundo.

Com imensa alegria no meio dessa pandemia, recebemos boas notícias”. Com estas palavras se iniciava o comunicado do Arcebispo de Mérida e Administrador Apostólico da Arquidiocese de Caracas, Cardeal Baltazar Porras, que informava que a Santa Sé finalmente reconheceu o milagre atribuído à intercessão do venerável Dr. José Gregorio Hernández, um dos médicos mais queridos dos venezuelanos, professor e cientista com profunda vocação religiosa, leigo franciscano, reconhecido pela sua solidariedade com os mais necessitados e lembrado pela sua caridade, generosidade, retidão e serviço aos pobres.

O purpurado venezuelano, num vídeo filmado ao lado da sepultura do futuro Beato, anunciou que a Congregação para a Causa dos Santos informara que a Comissão Teológica, composta por 7 especialistas, examinou o milagre atribuído à intercessão do Dr. José Gregorio Hernández, na cura da menina Yaxury Solorzano, e o aprovou por unanimidade. E disse o Cardeal Porras:

Recebemos esta boa notícia como uma graça do alto, que nos encoraja a continuar em oração para implorar que o nosso venerável médico seja elevado à honra dos altares e continuar a pedir a sua intercessão para superar situações adversas na saúde física e espiritual, como o pedido para que a pandemia que assola o mundo inteiro cesse em breve”.

“O Dr. José Gregorio Hernández é um ícone venezuelano, para além dos posicionamentos ideológicos” – afirmou em mais de uma ocasião o purpurado que agora, no meio da pandemia, o coloca como “o melhor exemplo de um homem que colocou toda a sua capacidade como cientista, como servidor, para o progresso da ciência e para cuidar dos mais pobres”.

O arcebispo recordou que o Dr. José Gregorio, há 102 anos, com outros proeminentes médicos venezuelanos, deu o melhor de si para cuidar dos doentes vítimas ​​da epidemia de gripe espanhola que causou estragos em todo o mundo. E observou e interrogou:

A perícia sanitária juntou-se à forte vontade de servir os afligidos e denunciar as falhas do sistema de saúde da época. Que melhor exemplo a seguir e imitar sua conduta no meio da covid-19?”.

Depois de referir que, no longo caminho até à beatificação ainda faltava a Plenária de cardeais e bispos e a aprovação de Francisco, o cardeal Porras convidou a continuar em oração sincera, na esperança de que a fama de santidade e intercessão de José Gregorio Hernández, proclamada no coração do povo venezuelano, se estenda pelo mundo inteiro como exemplo heroico de entrega a Deus e ao próximo. E concluiu:  

Les recuerdo siempre, ¡José Gregorio Hernández va por muy buen camino!”.

O milagre reconhecido ao Dr. Hernández diz respeito a Yaxuri Ortega, uma menina de 13 anos que sobreviveu a um tiro na cabeça em 2017.

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Enfim, um exemplo a mostrar que a ciência e a fé não se opõem e que a uma profissão científica e a prática da vida cristã são perfeitamente conciliáveis. Querer é poder. E se conhecêssemos o dom de Deus e soubéssemos como é maravilhoso…

2021.04.28 – Louro de Carvalho

terça-feira, 27 de abril de 2021

Vai ser canonizado Charles de Foucauld

 

No próximo dia 3 de maio, o Papa presidirá ao consistório ordinário para a canonização, entre outros, do religioso francês Charles de Foucauld, eremita no deserto do Saara e pioneiro do diálogo com outras culturas e religiões, que foi assassinado em 1916, em Tamanrasset (Argélia).

Nascido em Estrasburgo, França, a 15 de setembro de 1858, Charles de Foucauld ficou órfão aos 6 anos, crescendo com a sua irmã Marie na casa do avô materno. Na adolescência, afastou-se da fé. Com efeito, nas suas biografias oficiais, é descrito como “um amante dos prazeres e de uma vida fácil”. Aos 20 anos herdou de seu avô a herança familiar.

Ao ingressar na carreira militar, foi enviado inicialmente para a Argélia e depois para a Tunísia. O testemunho de fé dos muçulmanos despertou nele esta questão: “Mas Deus existe?”. A esta pergunta respondeu: “Meu Deus, se tu existes, deixa-me conhecer-Te”.

Ao retornar à França, quatro anos depois, demitiu-se do Exército, passando então a viajar para explorar países e conhecer pessoas. Guiado na sua vida espiritual por Dom Huvelin, encontrou Deus em outubro de 1886, aos 28 anos: “Como acreditava que Deus existia, compreendeu que não poderia fazer outra coisa senão viver só para Ele”.

Assim, após vida atribulada e boémia, Foucauld converteu-se, na idade adulta, e ingressou na vida religiosa, vivendo de forma radical, como trapista, embora não num convento, mas num dos desertos africanos.

Passado um período de tempo na Terra Santa, em Nazaré, volta a Paris, sendo ordenado sacerdote aos 43 anos, em 1901, na Diocese de Viviers, após o que é enviado como missionário para a Argélia, onde se estabelece entre os nativos Beni Abbes, transferindo-se para o coração do deserto do Saara entre a população Tuaregue: “Seria necessário que muitos religiosos e religiosas e bons cristãos – escrevia o Padre Charles – vivessem aqui para fazer contacto com todos esses pobres muçulmanos e instruí-los”.  “Os tuaregues perto de mim dão a maior doçura e satisfação; entre eles tenho excelentes amigos”. Mas, volvidos 10 anos – observa em seus escritos – “nem mesmo um único convertido! Devemos orar, trabalhar e ser pacientes”.

No deserto argelino, viveu uma vida de oração – meditando continuamente a Sagrada Escritura – e de contemplação, no desejo incessante de ser o “irmão universal” de cada pessoa, à imagem do amor de Jesus por cada homem.

Fascinado pela vida no deserto africano, que conhecia enquanto militar, o sacerdote-eremita instalou-se na região do Saara, onde meditava e traduzia os Evangelhos para os tuaregues, passando grande parte do tempo em adoração eucarística. Entre os pobres da região e os militares que passavam por aquela zona, Foucauld chegou a receber diariamente uma centena de pessoas no seu “mosteiro-eremitério”.

Porém, no ano de 1916, a guerra na Europa chegou ao deserto do Saara e o Padre Charles foi vítima duma emboscada a 1 de dezembro de 1916. Um grupo de rebeldes atacou o eremitério onde o sacerdote vivia, para o fazer refém, mas um adolescente desse grupo assassinou-o.

Foi beatificado em Roma por Bento XVI, a 13 de novembro de 2005. E a data da canonização será revelada no próximo consistório presidido por Francisco.

Os seus filhos e filhas espirituais estão espalhados pelo mundo. Em Portugal, existe uma pequena fraternidade dos Irmãos de Jesus e o ramo feminino das Irmãzinhas de Jesus, que vivem do exemplo de vida deste religioso, que ofereceu a vida pelos mais pobres e esquecidos.

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De acordo com nota divulgada pela Sala de Imprensa da Santa Sé, na segunda-feira, 3 de maio, às 10 horas, na Sala do Consistório do Palácio Apostólico, o Santo Padre presidirá a celebração da Hora Tércia e do Consistório Público Ordinário para a  Causa de Canonização dos Beatos: Lázaro, chamado Devasahayam, leigo, mártir; César de Bus, sacerdote, fundador da Congregação dos Padres da Doutrina Cristã e da Congregação das Filhas da Doutrina, também conhecidas como Ursulinas; Luigi Maria Palazzolo, sacerdote, fundador do Instituto das Irmãs Poverelle – Istituto Palazzolo; Giustino Maria da Santíssima Trindade Russolillo, sacerdote, fundador da Sociedade das Divinas Vocações e da Congregação das Irmãs das Divinas Vocações; Charles de Foucauld, sacerdote diocesano; Maria Francisca di Gesù (no século: Anna Maria Rubatto), fundadora das Irmãs Terciárias Capuchinhas de Loano; e Maria Domenica Mantovani, cofundadora e primeira Superiora Geral do Instituto das Pequenas Irmãs da Sagrada Família. Na ocasião, o Santo Padre anunciará a data ou as datas em que proclamará os novos Santos durante Celebração Eucarística a realizar no Vaticano. 

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Como refere o Vatican News, Charles de Foucauld é uma figura muito querida pelo Papa. Na Encíclica “Fratelli tutti”,  Francisco define-o como uma “pessoa de profunda fé que, a partir da sua intensa experiência de Deus, fez um caminho de transformação a ponto de se sentir irmão de todos”. E, sobre o franciscanismo do Beato, escreveu:

A espiritualidade cristã, a par da admiração contemplativa das criaturas que encontramos em São Francisco de Assis, desenvolveu também uma rica e sadia compreensão do trabalho, como podemos encontrar, por exemplo, na vida do Beato Charles de Foucauld e seus discípulos”.

Já na Missa a que presidiu na capela da Casa de Santa Marta, no centenário da morte do futuro Santo, a 1 de dezembro de 2016, o Papa afirmou que Charles de Foucauld foi “um homem que venceu muitas resistências e deu um testemunho que fez bem à Igreja”. 

Por seu turno, Dom Paul Desfarges, Arcebispo de Argel, capital da Argélia, ao comentar a Encíclica, disse que o facto de o Papa ter escrito que se inspirou no Beato Charles de Foucauld para o seu documento é importante “porque a relação com o outro, intensa e plena” que o futuro Santo “viveu até o fim, é o que dá vida à fraternidade e faz a Igreja viver mais plenamente”.

E o Cardeal Cristóbal López Romero, arcebispo de Rabat, Marrocos, ao comentar o anúncio do reconhecimento por parte do Papa Francisco de um milagre atribuído à intercessão do religioso francês falecido na Argélia, em 1916, assegurava, a 30 de maio de 2020, que a decisão do Papa Francisco de canonizar Charles de Foucauld canoniza, por assim dizer, o estilo de vida cristã da Igreja do Magrebe, cujo carisma tem as suas raízes no norte da África. A este respeito, o purpurado escreve, em carta aos fiéis:

É um grande estímulo para nossa ação pastoral, é a consagração de uma espiritualidade que apoiamos e promovemos”.

O cardeal López Romero recorda que na escola de Charles de Foucauld formaram-se padre Charles-André Poissonnier e padre Albert Peyriguère, que deixaram uma forte marca na Diocese de Rabat, fortalecendo aquela que o próprio cardeal chama de “espiritualidade e tradição franciscano-foucaultiana”.

O Arcebispo de Rabat convidava, naquela data, os fiéis da diocese a acompanharem o Rosário que o Papa Francisco iria recitar na Gruta de Lourdes nos Jardins Vaticanos, no final da tarde de sábado, em conexão com vários santuários marianos em redor do mundo, e que devido à emergência coronavírus tiveram que interromper as suas atividades e peregrinações. A transmissão ao vivo estaria disponível no portal da arquidiocese e seus canais nas redes sociais.

Por fim, na esperança de que as igrejas reabrissem para o culto com os fiéis nos próximos dias e que, em 7 de junho, a Solenidade da Santíssima Trindade pudesse ser celebrada com a presença dos fiéis, o que veio a suceder, o cardeal convidava as paróquias a organizarem-se no respeito pelas medidas anticovid-19 e exortava a refletir sobre a experiência de confinamento devido à emergência sanitária e à doença que causou a pandemia.

Não será excessivo recordar o que disse São João Paulo II na Mesquita Omeyade, em Damasco, na Síria, a 6 de maio de 2001:

O Irmão Charles, que, para traduzir os Evangelhos, aprendeu a língua dos Tuaregues, compondo um léxico e uma gramática nesse idioma, não exorta porventura as pessoas que se inspiram no seu carisma a entrar em diálogo com as culturas dos homens de hoje e a percorrer o caminho do encontro com as outras tradições religiosas, em particular com o Islão? Assim, as diferentes comunidades religiosas serão verdadeiramente como comunidades comprometidas num diálogo de respeito, e nunca mais como comunidades em conflito.”.

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É de recordar que a diocese de Setúbal assinalou o centenário da morte do Beato Charles com uma Eucaristia, uma exposição de pintura e a estreia de um filme.

Efetivamente, a programação evocativa dos 100 anos da morte de Charles de Foucauld começou com uma celebração eucarística em memória do beato francês, presidida pelo Bispo de Setúbal, Dom José Ornelas Carvalho, na Igreja de Nossa Senhora da Anunciada, às 16 horas. Em seguida, a Comissão de Arte Sacra da Diocese de Setúbal (CDASS) inaugurou a exposição “Nazareth”, na Biblioteca Pública Municipal setubalense, que organizou em parceria com a Comunidade de Setúbal da Fraternidade dos Irmãos de Jesus – no total, 30 obras da autoria do pintor L. Sadino, que pretenderam revisitar a vida e a obra do sacerdote assassinado a 1 de dezembro de 1916 por tuaregues rebeldes, na Argélia e que ficaram expostas até 4 de janeiro de 2017. E, para encerrar a exposição, procedeu-se à exibição do filme “Dos Homens e dos Deuses”, de Xavier Beauvois, a partir das 18 horas, na Biblioteca Pública Municipal de Setúbal, com comentários do jornalista da RTP Mário Augusto.

Da nota biográfica então difundida, destaca-se:

O bem-aventurado Charles de Foucauld tornou-se, na infância, uma criança muito culta, lendo todo o tipo de livros, mas na adolescência viveu uma crise de fé.

Ingressou na carreira militar na escola francesa de St. Cyr. Viveu uma vida mundana, de banquete em banquete, mantendo várias relações amorosas. Mais tarde, saiu do Exército e, em 1883, disfarçado de judeu peregrino, fez uma expedição a Marrocos, país fechado ao cristianismo. A viagem deu-lhe uma medalha de ouro da Sociedade de Geografia. Na visita, ficou extremamente impressionado com a fé dos muçulmanos, descobrindo a lei sagrada da hospitalidade. Depois, voltou para Paris e ficou na casa duma prima, cristã fervorosa. Querendo conhecer a fé cristã, em 1886, dirigiu-se a um padre amigo da família e, quando recebeu o sacramento da reconciliação, converteu-se.

A sua conversão completa-se com uma peregrinação a Jerusalém, à cidade de Nazaré, onde descobre a sua verdadeira vocação: seguir Jesus na sua vida de Nazaré. Daí o título da aludida exposição de pintura, “Nazareth”. Procura uma comunidade onde possa viver de forma simples, acabando por entrar no Mosteiro de Trapa, onde fica a morar durante sete anos. No entanto, sente que não é o que pretende para a sua vida e sai para viver como eremita junto a um Convento de Irmãs Clarissas, em Nazaré. Em 1901, é ordenado padre, em França. Já presbítero, em vez de retornar à Palestina, segue para a Argélia, perto da fronteira com Marrocos e torna-se amigo dos tuaregues. Aprende a sua língua e costumes e reúne tudo em livro, algo que ninguém tinha feito até então. Parte para Tamanrasset, no centro da Argélia. A 1 de dezembro de 1916, com 58 anos, é assassinado por tuaregues rebeldes que vinham assaltar o seu acampamento.

Foi beatificado a 13 de novembro de 2005, na Basílica de São Pedro, no Vaticano, pelo Papa Bento XVI. Inicialmente, a cerimónia de beatificação estava marcada para o dia 15 de maio e seria feita pelo Papa São João Paulo II, mas ficou suspensa por causa do seu falecimento.

O Cardeal José Saraiva Martins, então prefeito da Congregação para as Causas dos Santos (Santa Sé), na cerimónia de promulgação do decreto de reconhecimento de um milagre atribuído à sua intercessão, recordou:

Viveu na pobreza, na contemplação e na humildade, testemunhando fraternalmente o amor de Deus entre os cristãos, os judeus e os muçulmanos”.

Atualmente são vinte os grupos inspirados na vida do irmão Charles, que tentam compreender a vida de Nazaré, feita de oração, trabalho e convívio com os vizinhos, incluindo fraternidades seculares para leigos, casais e solteiros e fraternidades sacerdotais para os padres que querem viver a mesma espiritualidade do bem-aventurado. Na Diocese de Setúbal, existe, há mais de 40 anos, uma pequena fraternidade dos Irmãos de Jesus, a única em Portugal, que vive de acordo com os preceitos deixados por Charles de Foucauld.

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E uma referência ao livrinho “Cristo rezava assim”, de Charles de Foucauld, organizado por Jean Daniélou a partir dum canhenho manuscrito do autor, com textos que “derivam do próprio andamento da oração cristã, que é de apreender o Cristo da fé através do Cristo histórico”, sendo na inteira verdade deste que se fixa o olhar do Padre Charles de Foucauld “procurando imitar o seu comportamento” e sendo através da humanidade de Cristo que a oração apreende realmente a sua realidade divina”. O percurso orante de Foucauld é o Evangelho e, em especial, a oração de Jesus, arquétipo da oração do crente, em que se expõe a dificuldade do homem e se pede a realização da vontade de Deus em nós (vd “I – Prece”). Mais: a prece de Foucauld radica na fé e fortalece a fé (vd “II – Fé”). E exprime-se em testemunho na comunicação (vd “Cartas à família”).  

Enfim,

A exemplo de Charles de Foucauld, também nós somos chamados a viver um novo modo de ser Igreja, sacramento de salvação para a humanidade. Na fraternidade evangélica, antes de mais, que não é apenas uma fraternidade reunida no amor à volta de Jesus e com Jesus, mas uma fraternidade que faz da caridade, tanto por dentro como por fora, o mandamento supremo até ‘fazer da salvação do próximo, bem como da salvação pessoal, a grande tarefa da vida’. Este ideal só é atingível se formos capazes de ver um irmão em cada ser humano. Se vivermos superficialmente, só acolhemos o outro superficialmente. Se vivermos em profundidade, que é onde Deus habita, acolheremos o outro com profundidade, ou seja, como irmão e filho do mesmo Pai.(Pedro Simões, A Espiritualidade da vida oculta de Jesus de Nazaré, 2014).

2021.04.27 – Louro de Carvalho

Que se faça história e história da História

 

O ato oficial, no ano de 2021, das comemorações do 25 de Abril transita para a História com a marca dum discurso presidencial aplaudido de pé pela generalidade das bancadas parlamentares.

Dizem uns que foi uma memorável lição de História, enquanto outros entendem que foi uma lição de política sobre o entendimento da colonização/descolonização.

Não sei se o Presidente teve alguma dessas ambições ou se, antes, quis efetivamente dar largas à sua vocação professoral ou fazer um voo de tolerância num dia eminentemente político e talvez pouco propenso a uma reflexão histórico-política a frio, que é evidentemente necessária. 

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Partindo da passagem dos 60 anos sobre o início das guerras coloniais, “um tempo que haveria de anteceder e determinar” a data da revolução abrilina, Marcelo carateriza tal período de tempo como “feito de vários tempos e modos”: a marcar a vida de mais de um milhão de jovens saídos das suas terras para cruzarem mares e viverem e morrerem longe ou dele regressarem com “traços indeléveis” na saúde (omitindo os que retornaram sãos e salvos); a marcar a vida das famílias, lugares, aldeias, vilas e cidades, durante treze anos ou um pouco mais; a marcar a vida dos que, por opção, “rumaram a outros destinos continuando ou iniciando uma luta contra o que estava e queria permanecer”; a marcar a vida dos que “já lá vivendo idos, eles ou os seus antepassados, de terras de aquém mar, de lá vieram, no termo desses longos anos, ou lá ficaram e estão para ficar”; a marcar a vida dos que “viveram e morreram do outro lado da trincheira para conquistarem o que alcançaram definitivamente” após a revolução; enfim, a marcar “a vida de famílias, de lugares, de aldeias, de vilas e mesmo de cidades de Pátrias afirmadas como Estados independentes após treze anos ou um pouco mais”.

Depois, observando que “não foi um tempo desprendido de outros tempos”, justifica-o com as décadas e séculos que o precederam, ou seja, “do Portugal dos vários pequenos ciclos de que se fizeram o Império Colonial e as relações coloniais”. E equaciona o dilema de olhar esses tempos com os olhos de hoje, arriscando sermos injustos para com o passado e a sujeitarmo-nos a que no futuro nos façam a injustiça de nos olharem segundo a bitola do futuro, ou tentar olhar esses tempos com os olhos do passado, que o mais das vezes “não nos é fácil entender”.

Em todo o caso, confessa-se partidário da existência, no olhar de hoje, de “uma densidade personalista”, que valoriza a dignidade da pessoa humana e os seus direitos, condenando a escravatura e o esclavagismo, recusando o racismo e as demais xenofobias, em nome dum “avanço cultural e civilizacional irreversível” – mas um olhar que “não era no mais das vezes o olhar desses outros tempos”.

Face a este dilema, propõe como dever nosso a missão ingrata de julgar o passado com o olhar de hoje, mas sem exigir aos que viveram o passado que “pudessem antecipar valores ou o seu entendimento para nós agora tidos por evidentes, intemporais e universais”, especialmente se não eram adotados nas sociedades avançadas ao tempo – tarefa claramente ingrata para tempos remotos, mas que também é difícil para tempos mais recentes. Tanto assim é que hoje não se entende como no fim do século XIX “os impérios esquartejaram a régua e esquadro o continente africano” ou no dealbar do século XX “o império monárquico passou a império republicano”. Por outro lado, enquanto mais recentemente “outros impérios terminaram”, Portugal “retardou, por décadas, o processo descolonizador recusando-se a ouvir conselhos da História e apenas extinguindo o indigenato nos anos 60”.

Entretanto, o necessário revisitar da História aconselha, na ótica do Presidente, algumas cautelas. Desde logo, há que evitar o trânsito do acrítico olhar triunfalista e demasiado glorioso da história portuguesa para a acrítica demolição global da mesma. E Marcelo regista tanto o papel de monarcas absolutos (ditatoriais segundos os óculos de hoje) como de monarcas e governantes liberais e mesmo de importantes “personalidades do liberalismo republicano” no devir nacional e nas relações internacionais.

Depois, temos de olhar, em relação ao passado mais imediato, como os antigos colonizados “nos foram vendo e julgando, e sofrendo, nomeadamente onde e quando as relações se tornaram mais intensas e duradouras e delas pode haver o correspondente e impressivo testemunho”.

Também se deve ter em conta o juízo que sobre esse tempo fazem as pessoas com menos de 50 anos, que não conheceram o império colonial, obviamente com sensibilidades diferentes dos que viram, acompanharam e sofreram os custos do colonialismo. Os portugueses mais novos farão juízo menos apaixonado, ao passo que “os das sociedades que alcançaram a independência contra o Império Português e viveram, depois, décadas conturbadas pelos reflexos de vária natureza da anterior situação colonial” terão um juízo e uma postura mais complexos.

Quanto aos portugueses mais velhos, a revisitação da infância e juventude comportará:

Uma mistura de recordações, de novos mundos descobertos, de desenraizamentos ou novos enraizamentos, de primeira desertificação do interior do Continente, de migrações e muitas mais imigrações, de transformações pessoais, familiares, comunitárias, de mortes choradas, de sinais na saúde e na vida, de traumas os mais diversos e em momentos diferentes pelo que sonharam e se fez ou se desfez, pelo que sofreram e ficou, pelo que esperaram aguentaram e sentem nunca ter tido reconhecimento bastante”.

E o Presidente como que se perde discursivamente na marcação da complexidade generalizada da mudança histórica que abriu para a tetralogia “descolonização, desenvolvimento, liberdade e democracia” – “sempre imperfeitos”. E esta falta de plenitude espelha-se na incapacidade da resolução do problema da “pobreza estrutural de dois milhões de portugueses e desigualdades pessoais e territoriais e desinstitucionalizações (….), que a pandemia veio revelar e acentuar”.

Da revolução abrilina diz Marcelo ter sido “fruto da resistência de muitas e muitos durante meio século com os seus seguidores políticos sentados neste hemiciclo”, mas que “ganhou o seu tempo e o seu modo decisivos no gesto essencial dos Capitães de Abril”, ali “qualificadamente representados pela Associação 25 de Abril”, que, não tendo vindo “de outras galáxias”, nem surgido “num ápice naquela madrugada para fazerem história”, vinham transportando consigo “a sua história, as suas comissões em África”, “tendo de optar todos os dias entre cumprir ou questionar, entre acreditar num futuro querido ou que outros definiam ou não acreditar, entre aceitar ou a partir de certo instante romper, tudo em situações em que a linha que separa o viver e morrer é muito ténue apesar dos princípios, das regras, dos ditames escritos por políticos e juristas em gabinetes”. E o Presidente da República diz com todas as letras: “Pois foram estes homens, eles mesmos, não outros, os heróis naquela madrugada do 25 de Abril”.

E não deixa de frisar a lucidez ou generosidade dos Capitães em “aceitar para símbolos públicos face visível da mudança oficiais mais antigos encimados pelos que haveriam de ser os dois primeiros Presidentes da República na transição para a Democracia”. E destes refere:

Não eram, não tinham sido militares de alcatifa. Tinham sido grandes chefes militares no terreno e nele responsáveis por anos de combate, de coordenação com serviços de informação e de atuação antiguerrilha, de proximidade das populações.”.

No atinente à índole e génese da Revolução, para que não restem dúvidas, acentua o Presidente da República e Comandante Supremo das Forças Armadas:

Foi assim aquele dia 25 de Abril antes de suscitar o Processo Popular Revolucionário que o seguiu e apoiou. Antes de ser hoje património nacional em que o seu único soberano é o povo português.”.

Depois dum apontamento sobre a eclosão do 25 de Abril, “resultado de décadas de resistência” consubstanciada no crucial “grito de revolta de militares que tinham dado anos das suas vidas à Pátria no campo de luta e que sentiam estar a combater sem futuro político visível ou viável”, faz subtil referência a António de Spínola e a Francisco Costa Gomes, “que tinham conhecido intensa e prolongadamente o que é a guerra de guerrilha em missões militares e cargos políticos ou militares os mais relevantes”. E conclui pela justeza de “galardoar os Militares de Abril”, fazendo expressa referência ao Presidente Ramalho Eanes, “que, depois de ter estado no terreno, veio a ser peça chave na mudança de regime e primeiro Presidente da República eleito da democracia portuguesa, e que sempre recusou o marechalato que merecia e merece”.

E, voltando à dificuldade em se fazer um juízo histórico justo, sublinha algo em que todos estamos em consenso: como “o Império não entendeu o tempo que o condenara”, também “a ditadura não podia entender o tempo que a tinha condenado de forma irrefragável e ainda mais evidente a partir de 1958 e da saga de Humberto Delgado e a relação colonial não conseguira entender a raiz da inevitabilidade da sua inconsequência”.

Por isso, vinca a atualidade das reflexões a que deu concretização, pois “nada como o 25 de Abril para repensar o nosso passado quando o nosso presente ainda é tão duro e o nosso futuro é tão urgente” e porque “pode ressurgir a tentação de converter esse repensar do passado em argumento de mera movimentação tática ou estratégica num tempo que ainda é e será de crise na vida e na saúde e de crise económica e social”.

Nestes termos, exortando a que “encaremos com lúcida serenidade o que pode agitar o confronto político conjuntural, mas não corresponde ao que é prioritário para os portugueses”, Marcelo considera prioritário: “estudar o passado e nele dissecar tudo” – o que houve de bom e o que houve de mau; assumir todo esse passado, “sem autojustificações ou autocontemplações globais indevidas, nem autoflagelações globais excessivas”.

A seguir, preconiza a assunção da justiça, ainda por fazer, ao mais de milhão de portugueses que “serviram pelas armas o que entendiam ou lhes faziam entender constituir o interesse nacional”; aos milhões que “cá ou lá viveram a mesma odisseia”; aos milhões que “lá e cá a viveram do outro lado da história combatendo o império colonial, batendo-se pelas suas causas nacionais ou a viveram do mesmo lado, mas ficaram esquecidos ou abandonados por quem regressou e condenados por quem nunca lhes perdoou o alinhamento com o oponente”; ao quase milhão dos que “chegaram sem nada depois de terem projetado uma vida que era ou se tornou impossível”; e aos milhões, que “sofreram nas suas novas Pátrias conflitos internos herdados da colonização ou dos termos da descolonização”.

Convenhamos que hoje esta é uma tarefa hercúlea e a justiça que o Presidente preconiza só pode ser feita em termos da memória coletiva e carece de pontes com os novos países de expressão portuguesa. Mas que se faça essa justiça histórica e se faça a possível noutros campos.

Se calhar, pela dificuldade em fazer plena justiça, o também Professor de Direito propõe:

Que se faça história e história da História, que se retire[m] lições de uma e de outra sem temores nem complexos, com a natural diversidade de juízos, própria da democracia. Mas que se não transforme o que liberta, e toda a revisitação o mais serena possível e liberta ou deve libertar em mera prisão de sentimentos, úteis para campanhas de certos instantes, mas não úteis para a compreensão do passado a pensar no presente e no futuro.”.

Lapidarmente o Presidente clama que “O 25 de Abril foi feito para libertar”.

Em todo o caso, não esconde Marcelo que a Revolução trouxe divisões que forram sendo superadas e que ela própria era “composta de várias revoluções”, algumas das quais deram origem às novas Nações irmãs na língua, que “têm sabido encontrar-se connosco e nós com elas e têm sabido julgar um percurso comum olhando para o futuro ultrapassando séculos de dominação política, económica, social, cultural e humana”.

E Marcelo – qual “charneira entre duas histórias da mesma História” (filho dum governante na Ditadura e no Império, que viveu na sua segunda Pátria o tardio ocaso inexorável do Império, e viveu depois, como constituinte, o arranque do novo tempo) – pretende que o tempo que falta para a celebração do 50.º aniversário do 25 de Abril sirva de caminho a trilhar assumindo “as glórias que nos honram e os fracassos pelos quais nos responsabilizamos”, construindo “coesões e inclusões” e combatendo “intolerâncias pessoais ou sociais”.

Fazendo referência pincelada à Constituição, que agora faz 45 anos de vigência, que ele ajudou a elaborar e à luz da qual foi eleito e reeleito Presidente da República, formula o voto de que “o 25 de Abril viva sempre, como gesto libertador e refundador da história” e que “saibamos fazer dessa nossa história lição de presente e de futuro, sem álibis nem omissões, mas sem apoucamentos injustificados querendo muito mais e muito melhor”, na certeza de que “não há, nunca houve um Portugal perfeito, como não há, nunca houve um Portugal condenado”.

E termina como que em chave de ouro:

Houve, há e haverá sempre um só Portugal. Um Portugal que amamos e nos orgulhamos para além dos seus claros e escuros também porque é nosso. Nós somos esse Portugal. Viva o 25 de Abril! Viva Portugal!”.

***

Pouco importa que o discurso presidencial seja aula de História ou aula de Política sobre um determinado tempo histórico emoldurado por outros tempos, necessidades, conquistas, omissões e valores. O que importa é o discurso que estampou publicamente diante dos portugueses para que reflitamos e reafirmemos a democracia total comprometendo-nos com ela, não por si mesma, mas pelo que significa em prol da dignidade da pessoa humana e duma sociedade justa, solidária e fraterna.

Não creio que o discurso deva ser lido nas entrelinhas. Por um lado, qualquer entrelinha é perigosa por ser lacunar, ser entendível como recado a este ou àquele setor e eventualmente constituir crítica ao próprio orador, por exemplo, por não ter escalpelizado o atraso social, cultural, educacional, económico do estado Novo ou o regime de despolitização, de partido único, de uniformidade de pensamento e expressão – situação por que Marcelo obviamente não foi responsável. Ademais, não são as entrelinhas que responsabilizam as figuras públicas, mas apenas o que elas exprimem por palavras ou por premeditados e eloquentes silêncios.

E a meta-história com que Marcelo emoldurou a sessão comemorativa do 25 de Abril – o contracanto do discurso político de Ferro Rodrigues a que me referi oportunamente –, ainda que não diga tudo, fala por si própria. E há que a entender e assumir.

2021.04.26 – Louro de Carvalho