terça-feira, 6 de abril de 2021

De certo modo a crise de 2010 fez luz para se agir face à atual

 

Geralmente os governos, estribados nos estudos dos economistas, preparam-se para a última das crises passadas e não para as futuras, que soem trazer surpresas em relação às anteriores.

Não obstante, a crise espoletada pela pandemia de covid-19, que irrompeu com a surpresa e o estrondo que todos conhecemos e com um envolvimento crítico bem diferente da de 2010, que ofereceu a Portugal a malfadada solução troika, parece estar a influenciar as políticas definidas para lidar com a atual crise evitando o advento de danos colaterais e subsequentes maiores.

Logo em termos da política orçamental e da política monetária, as respostas são bem diferentes. Em 2010/2011, quando os países da “periferia da zona euro” começaram a ter dificuldade no acesso aos mercados internacionais, a zona euro respondeu com políticas orçamentais fortemente restritivas e uma política monetária, a princípio, anódina. Desta feita, o BCE, a Comissão Europeia e os Estados-membros uniram-se para uma intervenção em força comum.

Então, em termos orçamentais, a crise do euro levou a UE a aprovar empréstimos aos países que não tinham acesso a financiamento aos mercados, a reforçar as regras do Pacto de Estabilidade e a exigir políticas de austeridade aos governos que solicitaram resgate. Daí resultaram situações de forte e profunda contração nesses países, que levantou uma vaga de contestação social, levou franjas largas das respetivas populações ao limiar da pobreza e ia destruindo a classe média.

Desta vez, a resposta acordada entre os Estados, apoiada pela UE, centra-se nas medidas de apoio estatal às famílias e às empresas para contrariar a forte contração na economia. Para tanto, suspende-se a aplicação das regras orçamentais da UE e a resposta passa pela razoável partilha de riscos entre países e pela transferência de recursos dos mais ricos para os mais pobres, de que são exemplos o programa SURE, instrumento europeu de apoio temporário para atenuar os riscos de desemprego numa situação de emergência, e o MERR, mecanismo europeu de recuperação e resiliência, que dá origem aos PRR (programas de recuperação e resiliência) nacionais.

Agora, entende-se que é de fazer uma política orçamental em contraciclo, o que não sucedeu há uma década. Então o défice estrutural da zona euro foi reduzido ao máximo, com vista a aplicação duma política de consolidação, o que redundou em efeitos devastadores em países débeis como Portugal. Ora, em 2020 e 2021, segundo as estimativas da Comissão Europeia, o défice estrutural irá agravar-se tanto no total da zona euro como em Portugal, o que denota a aplicação duma política expansionista.

Em termos monetários, foi preciso esperar pelo discurso de Mario Draghi em Londres, em julho de 2012, para que o BCE estivesse disponível para fazer tudo o que fosse preciso, ao passo que agora o BCE tomou medidas sérias, poucas semanas depois do início da pandemia, mesmo antes de a Comissão Europeia estabelecer políticas comuns de algum arrojo. Sem margem para determinar maior descida das taxas de juro, o BCE lançou, logo no início de abril de 2020, o seu maior programa de compra de dívida pública de sempre, contribuindo decisivamente para que as taxas de juro da dívida dos países da zona euro, incluindo os periféricos, não subissem, como sucedeu em 2011 e 2012. Ao invés, caíram para mínimos históricos.

Esta modalidade de política orçamental, sustentada por uma política monetária generosa, tem sido relevante no cenário de paragem brusca da atividade económica, para que não se tenha registado, por enquanto, uma queda drástica do emprego, que caiu a pique em 2011 e em 2012 e que agora cai de forma mais moderada, ou para que não tenha havido quebra do rendimento disponível tão acentuada como em 2011, que foi a grande causa da queda do consumo, enquanto em 2020 e 2021, segundo as estimativas do BdP (Banco de Portugal), continuará a subir durante todo este período.

Observando que as mudanças da zona euro na resposta à presente crise são, em parte, resultado da experiência de há dez anos, o economista italiano Francesco Franco, professor na Nova SBE, segundo escreve Sérgio Aníbal no Público deste dia 6 de abril, explica:

Houve três coisas principais que fizeram desta vez e que não fizeram na anterior crise: evitaram que as políticas fossem pró-cíclicas, aplicando a cláusula de escape das regras do Pacto de Estabilidade; foram muito mais flexíveis nas regras das ajudas dos Estados; e implementaram algum nível de transferências entre os Estados. Penso que isto aconteceu, em parte, devido às lições muito importantes da última crise.”.

E a “enorme dimensão da atual crise” é outra razão apontada pelo especialista, que disse:

A verdade é que, para chegar a este ponto de avançar para transferências, a Europa teve de enfrentar duas crises muito grandes no espaço de dez anos, a última quase com uma dimensão semelhante a uma campanha de guerra”.

Em contraponto, como menciona o suprarreferido colunista do Público, Ricardo Paes Mamede, professor no ISCTE, não está certo de que se tenha aprendido tanto a nível orçamental. E vinca:

Em termos de ciência económica aprendeu-se alguma coisa: que a fantasia da austeridade expansionista não é mais do que isso, uma fantasia. Do ponto de vista da política monetária aprendeu-se bastante: há dez anos achava-se que, se se chegasse a taxas de juro zero, se estava de mãos atadas. Mas já no que diz respeito à frente orçamental, tenho muitas dúvidas sobre se se aprendeu muita coisa.”.

Verdade seja dita que, se estes dois anos de pandemia foram um período de ouro da ciência, a ciência económica, aliás como as demais ciências sociais e humanas, não podia ficar para trás.

E Paes Mamede, assinalando que “a diferença entre a política seguida pelos EUA e pela Europa mostra claramente que não se aprendeu tudo, explica:

É verdade que aquilo que se fez foi muito diferente. Mas penso é que, há dez anos, não foi por não se saber que a austeridade teria aquele efeito que se optou por aquele caminho. O que aconteceu foi que se quis aproveitar o momento de enorme fragilidade política de alguns países para impor regras que há muito queriam impor. Agora, o que acontece é que já não há necessidade de fazer isso.”.

Por outro lado, pensa que, no caso de Portugal, “em relação à anterior crise, nunca saberemos o que foi feito foi por vontade própria e o que foi feito por vontade externa, e que agora isso também não é totalmente evidente”. Mas há uma coisa que é evidente segundo o economista: “na equipa de João Leão, a última coisa que se deseja é que as suas ações sejam vistas como uma vontade de violar as regras europeias”.

Por seu turno, João Borges de Assunção, professor na Universidade Católica Portuguesa, julga que não é possível “tirar lições da crise anterior para a atual crise”, pois trata-se de “duas crises com naturezas muito diferentes”. E, rejeitando a ideia de que esteja em causa a correção de erros do passado, afirma:

A primeira, de há dez anos, exigia um ajustamento estrutural. Na atual, pelo menos por agora, aquilo que está em causa é um fenómeno conjuntural.”.

E conclui:

A ajuda que o BCE está a dar é importante e, nesse sentido, pode-se falar de uma lição, mas a forma como se tem optado por aplicar uma política orçamental e monetária expansionista, com a qual concordo nestas circunstâncias, tem que ver com a perceção de que estamos perante um problema conjuntural e mundial, brutal na sua dimensão. Não era isso que existia há dez anos, o que existia era um problema que exigia um ajustamento estrutural.”.

Por mim, recuso admitir que a crise do euro em 2010/2011 tenha sido crise estrutural, sendo a desta pandemia meramente conjuntural. Se a estrutura económica estava má ou arruinada porque alegadamente vivíamos acima das nossas possibilidades e a austeridade constituía uma inevitabilidade, é para desconfiar da estruturalidade que era preciso refazer. Toda a gente sabe porque surgiu a crise do euro. O euro nasceu torto ao assentar numa moeda forte. E o que se passou com a reserva norte-americana não pode ser esquecido. Depois, a Europa foi toda ela afetada pela crise da banca americana e britânica. É possível esquecer o colapso do Lehman Brothers Holdings Inc.? É possível esquecer as fraudes que se apontam ao Goldman Sachs, que é chamado “a hidra”, “a Firma” ou “Governo Sachs”, pela habilidade em infiltrar-se nas mais altas instâncias dos Estados, e que esteve envolvido na origem da crise da Grécia, pois ajudou a esconder o défice das contas do governo conservador de Karamanlis?

Aliás, Paes Mamede põe o dedo na ferida ao dizer que não se sabe o que foi imposto aos portugueses por via externa e o que foi ir além da troika por iniciativa interna.

Também esta crise não pode ser considerada meramente conjuntural, pois, embora seja fruto dum epifenómeno conjuntural, a sua dimensão holística é tão vasta, profunda e cruel que ameaça abalar os alicerces do mundo de modo que se clama recorrentemente que não é possível voltar à normalidade a que estávamos habituados. Ademais, colapsaram os serviços de saúde, dizimaram-se populações, ainda não se avaliaram as possíveis sequelas da covid.

A crise de 2010/2011 ensinou tudo? Obviamente, não. Primeiro, ninguém estava a contar com esta crise; segundo, emergiram as incertezas, mesmo ao nível da ciência; e, por fim, há pessoas que não querem aprender. Assim, para lá das ondas de solidariedade que pulularam, não se evitou o aproveitamento indevido por parte de muitos, a competição e as atitudes egoístas.       

***

Depois, é de recordar que há medidas do tempo da troika que nunca não foram desconvocadas, o que revela como os gravames são fáceis de implementar e difíceis de desmontar. Marta Oliveira elenca, no Público deste dia 6, “medidas nunca ‘destroikadas’ que andam por aí”.   

A 6 de Abril de 201, José Sócrates comunicou ao país que O Governo acabara de dirigir à Comissão Europeia um pedido de assistência financeira. Com a Comissão, veio o FMI (Fundo Monetário Internacional) e o BCE – a troika.

O memorando de entendimento, negociado com PS e PSD e fechado em maio, elencava as medidas de austeridade e reformas que foram aplicadas pelo Governo de Passos, muitas das quais foram total ou parcialmente revertidas por Costa. Porém, há pegadas da troika em várias áreas: do trabalho aos impostos, passando nas empresas. São elas:

- Compensação por despedimento. O seu valor é calculado com referência a 12 dias por cada ano de trabalho, num máximo de 12 anos, quando, dantes, o valor era calculado com referência a um mês de salário por cada ano de trabalho e sem a imposição dum teto.

- Subsídio de desemprego. Foi reduzido o tempo de atribuição deste subsídio. Por exemplo: um desempregado com menos de 30 anos e dois anos de descontos viu a duração máxima deste subsídio encolher de 9 para 5 meses. E um desempregado com mais de 50 anos e o mesmo tempo de descontos viu a duração máxima da prestação social baixar de 2,5 para 1,5 anos.

- Dias de férias. O número de dias de férias dos trabalhadores foi reduzido de 25 para 22, para os trabalhadores do setor privado e para os do setor público. E assim se mantém.

 - Horas extraordinárias. Foi cortado para metade o valor pago pela majoração das horas extraordinárias, que difere conforme a hora e o dia em que ocorre. Um trabalhador recebia metade do salário/hora na 1.ª hora extra, valor cortado a metade, como nas restantes adicionais.

- Dias de descanso compensatório. Além do seu pagamento, as horas adicionais também eram compensadas com tempo extra de descanso. O benefício, calculado em função do número de horas de trabalho a mais, acabou no período da troika e ainda não foi reposto.

- Revisão dos escalões do IRS. Em 2013 entrou em vigor um brutal aumento de impostos com a redução do número de escalões de IRS de 8 para 5, o que gerou um aumento da taxa média efetiva estimado de 9,8% para 11,8%. Hoje há 7 escalões, o que pode significar que parte do agravamento fiscal foi revertida para alguns contribuintes, mas não para todos.

- IVA da eletricidade e da restauração. Em 2011, foi anunciado o aumento do IVA sobre a eletricidade da taxa reduzida de 6% para a taxa normal de 23%. A medida nunca foi totalmente revertida e originou uma crise política no debate do Orçamento do Estado para 2020. Desde 1 de julho de 2019 está em vigor a taxa de IVA a 6% para potência contratada não superior a 3,45 kVA. A 1 de dezembro de 2020, entrou em vigor nova redução condicionada. Consumos até 100 kWh/mês passam a pagar taxa de 13%, sendo os consumos acima desse patamar taxados a 23%. Este alívio, que não compensa o agravamento de 2011, aplica-se apenas aos clientes domésticos com potência contratada até 6,9 kVA. No atinente ao IVA da restauração, é de referir que, em 2012, subiu da taxa intermédia de 13% para a taxa normal de 23%. E a descida do IVA no setor foi uma das bandeiras da governação de Costa. Em 2016, voltou aos anteriores 13%, mas só para artigos comestíveis, pois as bebidas taxadas a 23% assim continuam.

- Agregação de freguesias. A redução do número de freguesias visava a eliminação de custos nas estruturas do Estado. As 4259 freguesias foram reduzidas a 3092. A competência para o efeito cabe em exclusivo à Assembleia da República. Não foram ouvidas as assembleias de freguesia (AF) (obviamente discordariam); foram-no as assembleias municipais (AM) e até puderam propor uma solução que implicava a redução para 20% dentro do município em vez dos 25% estabelecidos. O Governo quer redefinir critérios de criação e extinção, mas só após as eleições autárquicas e, para reverter em parte a redução, pensa ouvir as AF envolvidas e a respetiva AM. Presente envenenado! Difícil a atual AF concordar com novo desmembramento…

- Corte nos salários dos políticos. Com o país a tomar medidas de austeridade que antecipavam a crise, à redução de salário na Função Pública juntou-se o corte no dos políticos antes da troika. A diminuição de 5% no salário dos políticos em vigor desde 2010 mantém-se apesar de o salário dos trabalhadores do Estado terem sido repostos aos níveis pré-troika. Porém, dado o aumento de impostos que não foi revertido, o salário líquido ainda é muito baixo.

- Privatização da TAP. A TAP era 100% pública e em novembro de 2015, já com o programa do XX Governo chumbado, o consórcio privado Atlantic Gateway passou a deter 61% do capital. Em fevereiro de 2016, Costa aumentou a participação pública de 39% para 50%. E, com a pandemia, o Estado emprestou fundos públicos à companhia aumentando a sua participação para 72,5%. O restante está em mãos de privados. Será viável a TAP depois da restruturação?

- Concessão nos CTT. Em 2014, Passos aprovou a privatização total dos CTT, com a venda da parcela do Estado que detinha no capital da empresa, de 31,5%. Até final de 2021, o contrato de concessão será revisto, mas sem previsão de nova tomada de posição no capital pelo Estado.

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Seja como for, a pandemia e a crise que está a dar cabo das economias, nomeadamente as mais frágeis, surge quando ainda os cidadãos e as empresas ainda não podiam respirar fundo mercê das sequelas da crie de há 10 anos. E a questão é se a putativa aprendizagem com a crise anterior seria suficiente parava sairmos são e salvos desta. Se calhar, temos mesmo de aprender dentro desta crise e, juntos, encontrar soluções mais criativas, ousadas e, sobretudo, solidárias.

2021.04.06 – Louro de Carvalho 

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