O “Relatório da
Liberdade Religiosa no Mundo – 2021”, produzido pela AIS (Ajuda à
Igreja que Sofre) ou ACN (Aid to the
Church in Need) – instituição
internacional católica e fundação pontifícia – e apresentado, neste dia 20 de
abril em Roma e noutras cidades do mundo, denuncia um aumento das violações à
liberdade de culto e de consciência desde a sua última pesquisa, em 2018, de
modo que um em
cada três países do mundo sofre violações de liberdade religiosa. E, para lá
dos factos, o ambiente e os atos de severas ameaças – explícitas ou larvadas – ao
direito fundamental da liberdade religiosa em todo o mundo são uma constante.
Publicado
pela primeira vez em 1999, o relatório bienal analisa até que ponto o direito
humano fundamental à liberdade religiosa, protegido pelo artigo 18.º da
Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), é respeitado por todas as religiões dos 196 países do mundo.
Segundo o
relatório, entre 2018 e 2020, o direito à liberdade religiosa não foi
respeitado em 62 (31,6%) dos 196
países do mundo, onde vivem dois terços da população mundial.
O número de pessoas que vivem nestes países está acima
dos 5 mil milhões, dado que “os piores infratores incluem alguns dos países
mais populosos do mundo”, como China, Índia, Paquistão, Bangladeche e Nigéria.
Em 26 desses
países, as pessoas sofrem perseguição e, em 95% deles, a situação ficou ainda
pior durante o período analisado. Nove países aparecem nesta categoria (Perseguição
Religiosa) pela primeira vez: 7 na África (Burkina
Faso, Camarões, Chade, Comores, República Democrática do Congo, Mali e
Moçambique) e 2 na Ásia
(Malásia e
Sri Lanka).
Refletindo
sobre a gravidade das descobertas deste 15.º Relatório de Liberdade
Religiosa, o Dr. Thomas Heine-Geldern, presidente executivo internacional
da AIS, afirma:
“Lamentavelmente, apesar das iniciativas da ONU e dos embaixadores da
liberdade religiosa, até hoje, a resposta da comunidade internacional à
violência baseada na religião e à perseguição religiosa em geral, pode ser
categorizada como muito pouco, ou tardia demais”.
Uma das conclusões
do relatório é a radicalização do continente africano, especialmente na África
Subsaariana e Oriental, onde houve aumento dramático de grupos jihadistas. Violações
da liberdade religiosa, incluindo perseguições extremas, como assassinatos em
massa, estão a ocorrer em 42% de todos os países africanos: Burkina Faso e
Moçambique são apenas dois dos exemplos marcantes.
Porém, a
radicalização afeta não apenas o continente africano: há uma ascensão de redes
islâmicas transnacionais que se estendem do Mali a Moçambique, na África Subsaariana,
às Comores, no Oceano Índico, e às Filipinas no Mar do Sul da China,
com o objetivo de criar o “califado transcontinental”.
Segundo a AIS, “os ataques sistemáticos e flagrantes
vêm de governos, seja da China ou da Coreia do Norte, e de grupos terroristas
internacionais como o Boko Haram ou o Daesh e outros grupos fundamentalistas”. E,
“entre os conflitos violentos, na Síria, Iémen, Nigéria, República
Centro-Africana, Moçambique, para mencionar apenas alguns, estão aqueles que,
manipulando as mais profundas convicções da humanidade, instrumentalizaram a
religião na busca do poder”.
O documento alerta, em particular, para um aumento do
jihadismo em África e apresenta “Moçambique como exemplo, falando num “ciclo
descontrolado de violência”.
O grupo jihadista Ansar al-Sunnah Wa Jama (ASW), alinhado com o Daesh, lançou uma insurreição na província
maioritariamente muçulmana de Cabo Delgado, assumindo o controlo do porto de
Mocímboa da Praia, uma infraestrutura prioritária para o processamento das enormes
reservas de gás natural descobertas ao largo da costa norte de Moçambique”.
A AIS observa que, nos últimos dois anos, os grupos
jihadistas consolidaram a sua presença na África Subsariana, região que se
tornou “um paraíso para mais de duas dezenas de grupos ativos e cada vez mais
cooperantes em 14 países, incluindo filiados do Daesh e da Al-Qaeda”.
E, enquanto a liberdade religiosa em África sofre de
violência intercomunitária e jihadista, na Ásia a perseguição de grupos
religiosos provém principalmente de ditaduras marxistas.
“Na China e na Coreia do Norte, que são os piores
infratores na categoria vermelha (do mapa), a liberdade religiosa é inexistente, tal como a
maioria dos direitos humanos”, sustenta a AIS, que observa também o impacto de
movimentos de nacionalismo étnico-religioso na Ásia.
Outra nova
tendência a destacar é o abuso da tecnologia digital, das redes cibernéticas e
da vigilância em massa baseada em inteligência artificial (IA) e tecnologia de reconhecimento facial para aumentar o
controlo e a discriminação em algumas das nações com o pior histórico de
liberdade religiosa. Isso é evidente na China, onde o Partido Comunista Chinês
tem oprimido grupos religiosos com a ajuda de 626 milhões de câmaras de
vigilância aprimoradas em IA e scanners de smartphones. E grupos
jihadistas usam a tecnologia digital para a radicalização e recrutamento de
seguidores.
Em 42 países
(21%), renunciar à religião ou mudar de religião pode levar
a graves consequências legais e/ou sociais, que vão desde o ostracismo na
família e mesmo à pena de morte.
Destaca-se
ainda o aumento da violência sexual usada como arma contra minorias religiosas
– crimes contra mulheres e meninas que são sequestradas, estupradas e forçadas
a converterem-se.
Cerca de 67%
da população mundial, ou seja, cerca de 5,2 mil milhões de pessoas, vivem em
países onde há graves violações da liberdade religiosa, incluindo as nações
mais populosas – China, Índia e Paquistão. Em muitos deles, as minorias
religiosas são as mais visadas. Segundo o relatório, também se
intensificou a perseguição religiosa por parte de governos autoritários. A
promoção da supremacia étnica e religiosa em alguns países de maioria hindu e
budista na Ásia levou a maior opressão das minorias, muitas vezes reduzindo, de
facto, os seus membros a cidadãos de segunda classe. A Índia é o exemplo mais
extremo, mas aplicam-se políticas semelhantes no Paquistão, Nepal, Sri Lanka e
Mianmar.
No Ocidente,
como conclui o relatório, houve um aumento da “perseguição educada”, termo
cunhado pelo Papa Francisco para descrever como novas normas e valores
culturais entram em profundo conflito com os direitos individuais à liberdade
de consciência, e circunscrevem a religião “aos recintos fechados de igrejas,
sinagogas ou mesquitas” ou a remetem “para a obscuridade silenciosa da
consciência do indivíduo”. Por outro lado, o relatório aborda o profundo
impacto da pandemia de covid-19 no direito à liberdade religiosa.
Em
conformidade com os relatórios anteriores, as religiões afro-brasileiras
continuam a ser as mais perseguidas no Brasil, vindo logo a seguir as religiões
esotéricas e animistas. Além disso, regista-se atualmente uma forte politização
da religião (valores e crenças) e com
consequências para a vida social, a par duma nova escalada de agressividade
associada à intolerância religiosa.
O 15.º Relatório de Liberdade Religiosa
contará com um evento de apresentação no Brasil, a 27 de abril, a partir das 19
horas, com transmissão pelos canais da AIS Brasil no Youtube e no
Facebook. O evento contará com as participações de Dom Walmor de Oliveira,
presidente da CNBB; Dom Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo; Dom Orani
Tempesta, arcebispo do Rio de Janeiro; e Dom Sérgio da Rocha, arcebispo de
Salvador e Primaz do Brasil.
Em Portugal, Guilherme d’Oliveira Martins,
administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian, disse, neste dia 20,
em Lisboa, que o relatório da AIS apresenta uma “visão objetiva, uma visão de
conjunto”, com apelos à paz e à tolerância, no respeito pela dignidade humana e
os direitos fundamentais de todos. E acrescentou que “o tema dos Direitos
Humanos é transversal e deve ser afirmado como questão de princípio”.
Após afirmar que “a violência atrai a violência”, o
conferencista considerou “indispensável” que o diálogo inter-religioso seja um
fator de paz. E, nesse sentido, criticou como situação muito preocupante” a
“subalternização dos meios antiviolência”, com sinais de “desvalorização” do
religioso no espaço europeu.
O convidado da AIS para a apresentação do seu
relatório aos portugueses, apelando a uma maior atenção ao fenómeno religioso
no domínio da formação e da educação, precisou que “não é possível haver
diálogo inter-religioso sem um bom conhecimento mútuo”, clamou “que não haja
retrocessos, que haja progressos em relação aos direitos fundamentais”, e
avisou que “a desatenção em relação a este tema é perigosa”.
Frisando que é “indispensável combater a
radicalização” que afeta vários países, o antigo ministro evocou a situação
“dramática” que se vive em Moçambique e apelou à “intervenção corajosa por
parte do Estado moçambicano”, evitando situações de “vazio de autoridade” na
província de Cabo Delgado, no norte do país africano. Na verdade, Moçambique
está entre os 26 países retratados a vermelho no mapa da liberdade religiosa no
mundo, o que indica “perseguição” contra os crentes, numa população total de
3,9 mil milhões de pessoas.
Por sua vez, Catarina Martins de Bettencourt, diretora
do secretariado português da AIS/ACN, destacou a importância deste relatório,
publicado de dois em dois anos, em seis línguas, abrangendo “todas as
principais religiões”. E considerou que a presidência portuguesa do Conselho da
União Europeia deve ser uma oportunidade “importante”, para pedir mudanças em
defesa da liberdade religiosa, por exemplo, na próxima cimeira UE-Índia.
É de notar que a cimeira já não ocorrerá a 8 de maio
porque o Primeiro-Ministro indiano cancelou a sua vinda ao Porto mercê do
agravamento da pandemia na Índia.
***
A AIS ou ACN
– fundada no Natal de 1947 e tornada Fundação Pontifícia da Igreja em 2011 – auxilia
a Igreja por meio de informações, orações e projetos de ajuda a pessoas ou
grupos que sofrem perseguição e opressão religiosa e social ou que estejam em
necessidade. Todos os anos, em 145 países, atende mais de 5.000 pedidos de
ajuda de bispos e superiores religiosos incluindo formação de seminaristas,
impressão de Bíblias e literatura religiosa, designadamente a Bíblia da Criança
da ACN com mais de 51 milhões de exemplares impressos em mais de 180 línguas;
apoia padres e religiosos em missões e situações críticas, incluindo a
construção e restauração de igrejas e demais instalações eclesiais; organiza programas
religiosos de comunicação; e ajuda aos refugiados e vítimas de conflitos.
O mapa da liberdade religiosa no mundo apresenta 26
países a vermelho, o que indica “perseguição” contra os crentes, numa população
total de 3,9 mil milhões de pessoas. Esta classificação inclui 12 países
africanos e 2 países onde estão em curso investigações sobre um possível
genocídio, China e Myanmar (Birmânia). A este
respeito a AIS indica:
“30,4 milhões de muçulmanos na China e em
Mianmar (incluindo uigures e rohingyas) enfrentam uma perseguição severa e a
comunidade internacional só agora começou a aplicar o direito internacional
para a impedir”.
Os preditos 26 países são: Afeganistão,
Bangladesh, Burquina Faso, Camarões, Chade, China, Comores, República
Democrática do Congo, Eritreia, Índia, Irão, Coreia do Norte, Líbia, Malásia,
Maldivas, Mali, Moçambique, Myanmar, Níger, Nigéria, Paquistão, Arábia Saudita,
Somália, Sri Lanca, Turquemenistão, Iémen.
No referido mapa, são indicados a laranja, que indica
“discriminação”, 36 países, onde vivem 1,24 mil milhões de pessoas. São eles: Argélia, Azerbaijão, Barém, Brunei, Cuba,
Djibuti, Egito, Etiópia, Indonésia, Iraque, Jordânia, Cazaquistão, Koweit,
Quirguistão, Laos, Madagáscar, Mauritânia, Maurícias, Marrocos, Nepal,
Nicarágua, Omã, Palestina, Catar, Singapura, Sudão, Síria, Tajiquistão,
Tanzânia, Tailândia, Tunísia, Turquia, Emirados Árabes Unidos, Uzbequistão,
Venezuela, Vietname.
O relatório oferece 10 pontos de conclusões, começando
pelo risco de “califados” transcontinentais e a expansão global do
“cibercalifado”, para recrutamento e radicalização online no Ocidente. Denuncia
que várias minorias religiosas foram “culpadas pela pandemia” em países como a
China, o Níger, a Turquia, o Egito e o Paquistão, com aumento da sua
discriminação. E, apontando que governos autoritários e grupos fundamentalistas
têm intensificado a perseguição religiosa, informa que, num número crescente de
países, “foram registados crimes contra raparigas e mulheres raptadas, violadas
e obrigadas a mudar a sua fé através de conversões forçadas”.
Outra preocupação, registada a partir da situação na
China, liga-se ao uso de tecnologias de “vigilância repressiva” contra os
grupos religiosos. Por isso, a AIS questiona o mundo ocidental por ter
“menosprezado as ferramentas que reduzem a radicalização” e por eliminar
educação religiosa, ferramentas que poderiam aumentar a “compreensão
inter-religiosa entre os jovens”.
A fundação deixa uma nota positiva, relativa à
assinatura, em 2019, da declaração sobre “Fraternidade Humana pela Paz Mundial
e a Vida em Comum”, que uniu o Papa Francisco e o Grande imã Ahamad Al-Tayyeb
de Al-Azhar, o líder do mundo muçulmano sunita.
O relatório faz várias observações ao impacto da
pandemia de covid-19, que teve “profundas implicações para os direitos humanos,
incluindo a liberdade religiosa”. E alerta:
“Os Estados têm utilizado a insegurança para
aumentar o controlo sobre os seus cidadãos, e os participantes não estatais têm
aproveitado a confusão para recrutar, expandir e provocar crises humanitárias mais
vastas”.
Por fim, é de salientar há países com a classificação
“sob observação”, ou seja, aqueles
onde foram observados novos fatores de preocupação emergentes com o potencial
de causar uma deterioração fundamental na liberdade religiosa: República
Centro-Africana, Gâmbia, Guiné Conacri, Costa do Marfim, Quénia, Libéria,
Ruanda, África do Sul, Sudão do Sul, Togo, Uganda, Chile, Guatemala, Haiti,
Honduras, México, Butão, Camboja, Filipinas, Israel, Líbano, Bielorrússia,
Rússia, Ucrânia.
***
Perante o que fica dito, poderemos
encher a boca com a tolerância, a liberdade de pensamento e de expressão, a
igualdade de todos perante a lei? Que estamos a fazer da Declaração Universal dos
Direitos Humanos?
2021.04.20 – Louro de Carvalho
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