terça-feira, 27 de abril de 2021

Que se faça história e história da História

 

O ato oficial, no ano de 2021, das comemorações do 25 de Abril transita para a História com a marca dum discurso presidencial aplaudido de pé pela generalidade das bancadas parlamentares.

Dizem uns que foi uma memorável lição de História, enquanto outros entendem que foi uma lição de política sobre o entendimento da colonização/descolonização.

Não sei se o Presidente teve alguma dessas ambições ou se, antes, quis efetivamente dar largas à sua vocação professoral ou fazer um voo de tolerância num dia eminentemente político e talvez pouco propenso a uma reflexão histórico-política a frio, que é evidentemente necessária. 

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Partindo da passagem dos 60 anos sobre o início das guerras coloniais, “um tempo que haveria de anteceder e determinar” a data da revolução abrilina, Marcelo carateriza tal período de tempo como “feito de vários tempos e modos”: a marcar a vida de mais de um milhão de jovens saídos das suas terras para cruzarem mares e viverem e morrerem longe ou dele regressarem com “traços indeléveis” na saúde (omitindo os que retornaram sãos e salvos); a marcar a vida das famílias, lugares, aldeias, vilas e cidades, durante treze anos ou um pouco mais; a marcar a vida dos que, por opção, “rumaram a outros destinos continuando ou iniciando uma luta contra o que estava e queria permanecer”; a marcar a vida dos que “já lá vivendo idos, eles ou os seus antepassados, de terras de aquém mar, de lá vieram, no termo desses longos anos, ou lá ficaram e estão para ficar”; a marcar a vida dos que “viveram e morreram do outro lado da trincheira para conquistarem o que alcançaram definitivamente” após a revolução; enfim, a marcar “a vida de famílias, de lugares, de aldeias, de vilas e mesmo de cidades de Pátrias afirmadas como Estados independentes após treze anos ou um pouco mais”.

Depois, observando que “não foi um tempo desprendido de outros tempos”, justifica-o com as décadas e séculos que o precederam, ou seja, “do Portugal dos vários pequenos ciclos de que se fizeram o Império Colonial e as relações coloniais”. E equaciona o dilema de olhar esses tempos com os olhos de hoje, arriscando sermos injustos para com o passado e a sujeitarmo-nos a que no futuro nos façam a injustiça de nos olharem segundo a bitola do futuro, ou tentar olhar esses tempos com os olhos do passado, que o mais das vezes “não nos é fácil entender”.

Em todo o caso, confessa-se partidário da existência, no olhar de hoje, de “uma densidade personalista”, que valoriza a dignidade da pessoa humana e os seus direitos, condenando a escravatura e o esclavagismo, recusando o racismo e as demais xenofobias, em nome dum “avanço cultural e civilizacional irreversível” – mas um olhar que “não era no mais das vezes o olhar desses outros tempos”.

Face a este dilema, propõe como dever nosso a missão ingrata de julgar o passado com o olhar de hoje, mas sem exigir aos que viveram o passado que “pudessem antecipar valores ou o seu entendimento para nós agora tidos por evidentes, intemporais e universais”, especialmente se não eram adotados nas sociedades avançadas ao tempo – tarefa claramente ingrata para tempos remotos, mas que também é difícil para tempos mais recentes. Tanto assim é que hoje não se entende como no fim do século XIX “os impérios esquartejaram a régua e esquadro o continente africano” ou no dealbar do século XX “o império monárquico passou a império republicano”. Por outro lado, enquanto mais recentemente “outros impérios terminaram”, Portugal “retardou, por décadas, o processo descolonizador recusando-se a ouvir conselhos da História e apenas extinguindo o indigenato nos anos 60”.

Entretanto, o necessário revisitar da História aconselha, na ótica do Presidente, algumas cautelas. Desde logo, há que evitar o trânsito do acrítico olhar triunfalista e demasiado glorioso da história portuguesa para a acrítica demolição global da mesma. E Marcelo regista tanto o papel de monarcas absolutos (ditatoriais segundos os óculos de hoje) como de monarcas e governantes liberais e mesmo de importantes “personalidades do liberalismo republicano” no devir nacional e nas relações internacionais.

Depois, temos de olhar, em relação ao passado mais imediato, como os antigos colonizados “nos foram vendo e julgando, e sofrendo, nomeadamente onde e quando as relações se tornaram mais intensas e duradouras e delas pode haver o correspondente e impressivo testemunho”.

Também se deve ter em conta o juízo que sobre esse tempo fazem as pessoas com menos de 50 anos, que não conheceram o império colonial, obviamente com sensibilidades diferentes dos que viram, acompanharam e sofreram os custos do colonialismo. Os portugueses mais novos farão juízo menos apaixonado, ao passo que “os das sociedades que alcançaram a independência contra o Império Português e viveram, depois, décadas conturbadas pelos reflexos de vária natureza da anterior situação colonial” terão um juízo e uma postura mais complexos.

Quanto aos portugueses mais velhos, a revisitação da infância e juventude comportará:

Uma mistura de recordações, de novos mundos descobertos, de desenraizamentos ou novos enraizamentos, de primeira desertificação do interior do Continente, de migrações e muitas mais imigrações, de transformações pessoais, familiares, comunitárias, de mortes choradas, de sinais na saúde e na vida, de traumas os mais diversos e em momentos diferentes pelo que sonharam e se fez ou se desfez, pelo que sofreram e ficou, pelo que esperaram aguentaram e sentem nunca ter tido reconhecimento bastante”.

E o Presidente como que se perde discursivamente na marcação da complexidade generalizada da mudança histórica que abriu para a tetralogia “descolonização, desenvolvimento, liberdade e democracia” – “sempre imperfeitos”. E esta falta de plenitude espelha-se na incapacidade da resolução do problema da “pobreza estrutural de dois milhões de portugueses e desigualdades pessoais e territoriais e desinstitucionalizações (….), que a pandemia veio revelar e acentuar”.

Da revolução abrilina diz Marcelo ter sido “fruto da resistência de muitas e muitos durante meio século com os seus seguidores políticos sentados neste hemiciclo”, mas que “ganhou o seu tempo e o seu modo decisivos no gesto essencial dos Capitães de Abril”, ali “qualificadamente representados pela Associação 25 de Abril”, que, não tendo vindo “de outras galáxias”, nem surgido “num ápice naquela madrugada para fazerem história”, vinham transportando consigo “a sua história, as suas comissões em África”, “tendo de optar todos os dias entre cumprir ou questionar, entre acreditar num futuro querido ou que outros definiam ou não acreditar, entre aceitar ou a partir de certo instante romper, tudo em situações em que a linha que separa o viver e morrer é muito ténue apesar dos princípios, das regras, dos ditames escritos por políticos e juristas em gabinetes”. E o Presidente da República diz com todas as letras: “Pois foram estes homens, eles mesmos, não outros, os heróis naquela madrugada do 25 de Abril”.

E não deixa de frisar a lucidez ou generosidade dos Capitães em “aceitar para símbolos públicos face visível da mudança oficiais mais antigos encimados pelos que haveriam de ser os dois primeiros Presidentes da República na transição para a Democracia”. E destes refere:

Não eram, não tinham sido militares de alcatifa. Tinham sido grandes chefes militares no terreno e nele responsáveis por anos de combate, de coordenação com serviços de informação e de atuação antiguerrilha, de proximidade das populações.”.

No atinente à índole e génese da Revolução, para que não restem dúvidas, acentua o Presidente da República e Comandante Supremo das Forças Armadas:

Foi assim aquele dia 25 de Abril antes de suscitar o Processo Popular Revolucionário que o seguiu e apoiou. Antes de ser hoje património nacional em que o seu único soberano é o povo português.”.

Depois dum apontamento sobre a eclosão do 25 de Abril, “resultado de décadas de resistência” consubstanciada no crucial “grito de revolta de militares que tinham dado anos das suas vidas à Pátria no campo de luta e que sentiam estar a combater sem futuro político visível ou viável”, faz subtil referência a António de Spínola e a Francisco Costa Gomes, “que tinham conhecido intensa e prolongadamente o que é a guerra de guerrilha em missões militares e cargos políticos ou militares os mais relevantes”. E conclui pela justeza de “galardoar os Militares de Abril”, fazendo expressa referência ao Presidente Ramalho Eanes, “que, depois de ter estado no terreno, veio a ser peça chave na mudança de regime e primeiro Presidente da República eleito da democracia portuguesa, e que sempre recusou o marechalato que merecia e merece”.

E, voltando à dificuldade em se fazer um juízo histórico justo, sublinha algo em que todos estamos em consenso: como “o Império não entendeu o tempo que o condenara”, também “a ditadura não podia entender o tempo que a tinha condenado de forma irrefragável e ainda mais evidente a partir de 1958 e da saga de Humberto Delgado e a relação colonial não conseguira entender a raiz da inevitabilidade da sua inconsequência”.

Por isso, vinca a atualidade das reflexões a que deu concretização, pois “nada como o 25 de Abril para repensar o nosso passado quando o nosso presente ainda é tão duro e o nosso futuro é tão urgente” e porque “pode ressurgir a tentação de converter esse repensar do passado em argumento de mera movimentação tática ou estratégica num tempo que ainda é e será de crise na vida e na saúde e de crise económica e social”.

Nestes termos, exortando a que “encaremos com lúcida serenidade o que pode agitar o confronto político conjuntural, mas não corresponde ao que é prioritário para os portugueses”, Marcelo considera prioritário: “estudar o passado e nele dissecar tudo” – o que houve de bom e o que houve de mau; assumir todo esse passado, “sem autojustificações ou autocontemplações globais indevidas, nem autoflagelações globais excessivas”.

A seguir, preconiza a assunção da justiça, ainda por fazer, ao mais de milhão de portugueses que “serviram pelas armas o que entendiam ou lhes faziam entender constituir o interesse nacional”; aos milhões que “cá ou lá viveram a mesma odisseia”; aos milhões que “lá e cá a viveram do outro lado da história combatendo o império colonial, batendo-se pelas suas causas nacionais ou a viveram do mesmo lado, mas ficaram esquecidos ou abandonados por quem regressou e condenados por quem nunca lhes perdoou o alinhamento com o oponente”; ao quase milhão dos que “chegaram sem nada depois de terem projetado uma vida que era ou se tornou impossível”; e aos milhões, que “sofreram nas suas novas Pátrias conflitos internos herdados da colonização ou dos termos da descolonização”.

Convenhamos que hoje esta é uma tarefa hercúlea e a justiça que o Presidente preconiza só pode ser feita em termos da memória coletiva e carece de pontes com os novos países de expressão portuguesa. Mas que se faça essa justiça histórica e se faça a possível noutros campos.

Se calhar, pela dificuldade em fazer plena justiça, o também Professor de Direito propõe:

Que se faça história e história da História, que se retire[m] lições de uma e de outra sem temores nem complexos, com a natural diversidade de juízos, própria da democracia. Mas que se não transforme o que liberta, e toda a revisitação o mais serena possível e liberta ou deve libertar em mera prisão de sentimentos, úteis para campanhas de certos instantes, mas não úteis para a compreensão do passado a pensar no presente e no futuro.”.

Lapidarmente o Presidente clama que “O 25 de Abril foi feito para libertar”.

Em todo o caso, não esconde Marcelo que a Revolução trouxe divisões que forram sendo superadas e que ela própria era “composta de várias revoluções”, algumas das quais deram origem às novas Nações irmãs na língua, que “têm sabido encontrar-se connosco e nós com elas e têm sabido julgar um percurso comum olhando para o futuro ultrapassando séculos de dominação política, económica, social, cultural e humana”.

E Marcelo – qual “charneira entre duas histórias da mesma História” (filho dum governante na Ditadura e no Império, que viveu na sua segunda Pátria o tardio ocaso inexorável do Império, e viveu depois, como constituinte, o arranque do novo tempo) – pretende que o tempo que falta para a celebração do 50.º aniversário do 25 de Abril sirva de caminho a trilhar assumindo “as glórias que nos honram e os fracassos pelos quais nos responsabilizamos”, construindo “coesões e inclusões” e combatendo “intolerâncias pessoais ou sociais”.

Fazendo referência pincelada à Constituição, que agora faz 45 anos de vigência, que ele ajudou a elaborar e à luz da qual foi eleito e reeleito Presidente da República, formula o voto de que “o 25 de Abril viva sempre, como gesto libertador e refundador da história” e que “saibamos fazer dessa nossa história lição de presente e de futuro, sem álibis nem omissões, mas sem apoucamentos injustificados querendo muito mais e muito melhor”, na certeza de que “não há, nunca houve um Portugal perfeito, como não há, nunca houve um Portugal condenado”.

E termina como que em chave de ouro:

Houve, há e haverá sempre um só Portugal. Um Portugal que amamos e nos orgulhamos para além dos seus claros e escuros também porque é nosso. Nós somos esse Portugal. Viva o 25 de Abril! Viva Portugal!”.

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Pouco importa que o discurso presidencial seja aula de História ou aula de Política sobre um determinado tempo histórico emoldurado por outros tempos, necessidades, conquistas, omissões e valores. O que importa é o discurso que estampou publicamente diante dos portugueses para que reflitamos e reafirmemos a democracia total comprometendo-nos com ela, não por si mesma, mas pelo que significa em prol da dignidade da pessoa humana e duma sociedade justa, solidária e fraterna.

Não creio que o discurso deva ser lido nas entrelinhas. Por um lado, qualquer entrelinha é perigosa por ser lacunar, ser entendível como recado a este ou àquele setor e eventualmente constituir crítica ao próprio orador, por exemplo, por não ter escalpelizado o atraso social, cultural, educacional, económico do estado Novo ou o regime de despolitização, de partido único, de uniformidade de pensamento e expressão – situação por que Marcelo obviamente não foi responsável. Ademais, não são as entrelinhas que responsabilizam as figuras públicas, mas apenas o que elas exprimem por palavras ou por premeditados e eloquentes silêncios.

E a meta-história com que Marcelo emoldurou a sessão comemorativa do 25 de Abril – o contracanto do discurso político de Ferro Rodrigues a que me referi oportunamente –, ainda que não diga tudo, fala por si própria. E há que a entender e assumir.

2021.04.26 – Louro de Carvalho

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