O ato
oficial, no ano de 2021, das comemorações do 25 de Abril transita para a
História com a marca dum discurso presidencial aplaudido de pé pela
generalidade das bancadas parlamentares.
Dizem uns que
foi uma memorável lição de História, enquanto outros entendem que foi uma lição
de política sobre o entendimento da colonização/descolonização.
Não sei se o
Presidente teve alguma dessas ambições ou se, antes, quis efetivamente dar
largas à sua vocação professoral ou fazer um voo de tolerância num dia
eminentemente político e talvez pouco propenso a uma reflexão
histórico-política a frio, que é evidentemente necessária.
***
Partindo da
passagem dos 60 anos sobre o início das guerras coloniais, “um tempo que
haveria de anteceder e determinar” a data da revolução abrilina, Marcelo
carateriza tal período de tempo como “feito
de vários tempos e modos”: a marcar a vida de mais de um milhão de jovens
saídos das suas terras para cruzarem mares e viverem e morrerem longe ou dele
regressarem com “traços indeléveis”
na saúde (omitindo os que
retornaram sãos e salvos);
a marcar a vida das famílias, lugares, aldeias, vilas e cidades, durante treze
anos ou um pouco mais; a marcar a vida dos que, por opção, “rumaram a outros
destinos continuando ou iniciando uma luta contra o que estava e queria
permanecer”; a marcar a vida dos que “já lá vivendo idos, eles ou os seus
antepassados, de terras de aquém mar, de lá vieram, no termo desses longos
anos, ou lá ficaram e estão para ficar”; a marcar a vida dos que “viveram e morreram
do outro lado da trincheira para conquistarem o que alcançaram definitivamente”
após a revolução; enfim, a marcar “a vida de famílias, de lugares, de aldeias,
de vilas e mesmo de cidades de Pátrias afirmadas como Estados independentes
após treze anos ou um pouco mais”.
Depois,
observando que “não foi um tempo
desprendido de outros tempos”, justifica-o com as décadas e séculos que o
precederam, ou seja, “do Portugal dos vários pequenos ciclos de que se fizeram
o Império Colonial e as relações coloniais”. E equaciona o dilema de olhar
esses tempos com os olhos de hoje, arriscando sermos injustos para com o
passado e a sujeitarmo-nos a que no futuro nos façam a injustiça de nos olharem
segundo a bitola do futuro, ou tentar olhar esses tempos com os olhos do
passado, que o mais das vezes “não nos é fácil entender”.
Em todo o
caso, confessa-se partidário da existência, no olhar de hoje, de “uma densidade
personalista”, que valoriza a dignidade da pessoa humana e os seus direitos,
condenando a escravatura e o esclavagismo, recusando o racismo e as demais
xenofobias, em nome dum “avanço cultural
e civilizacional irreversível” – mas um olhar que “não era no mais das
vezes o olhar desses outros tempos”.
Face a este
dilema, propõe como dever nosso a missão ingrata de julgar o passado com o
olhar de hoje, mas sem exigir aos que viveram o passado que “pudessem antecipar
valores ou o seu entendimento para nós agora tidos por evidentes, intemporais e
universais”, especialmente se não eram adotados nas sociedades avançadas ao
tempo – tarefa claramente ingrata para tempos remotos, mas que também é difícil
para tempos mais recentes. Tanto assim é que hoje não se entende como no fim do
século XIX “os impérios esquartejaram a régua e esquadro o continente africano”
ou no dealbar do século XX “o império monárquico passou a império republicano”.
Por outro lado, enquanto mais recentemente “outros impérios terminaram”,
Portugal “retardou, por décadas, o processo descolonizador recusando-se a ouvir
conselhos da História e apenas extinguindo o indigenato nos anos 60”.
Entretanto, o
necessário revisitar da História aconselha, na ótica do Presidente, algumas cautelas.
Desde logo, há que evitar o trânsito do acrítico olhar triunfalista e demasiado
glorioso da história portuguesa para a acrítica demolição global da mesma. E Marcelo
regista tanto o papel de monarcas absolutos (ditatoriais segundos os óculos de hoje) como de monarcas e governantes
liberais e mesmo de importantes “personalidades do liberalismo republicano” no
devir nacional e nas relações internacionais.
Depois, temos
de olhar, em relação ao passado mais imediato, como os antigos colonizados “nos
foram vendo e julgando, e sofrendo, nomeadamente onde e quando as relações se
tornaram mais intensas e duradouras e delas pode haver o correspondente e
impressivo testemunho”.
Também se
deve ter em conta o juízo que sobre esse tempo fazem as pessoas com menos de 50
anos, que não conheceram o império colonial, obviamente com sensibilidades
diferentes dos que viram, acompanharam e sofreram os custos do colonialismo. Os
portugueses mais novos farão juízo menos apaixonado, ao passo que “os das sociedades
que alcançaram a independência contra o Império Português e viveram, depois,
décadas conturbadas pelos reflexos de vária natureza da anterior situação
colonial” terão um juízo e uma postura mais complexos.
Quanto aos
portugueses mais velhos, a revisitação da infância e juventude comportará:
“Uma
mistura de recordações, de novos mundos descobertos, de desenraizamentos ou
novos enraizamentos, de primeira desertificação do interior do Continente, de
migrações e muitas mais imigrações, de transformações pessoais, familiares,
comunitárias, de mortes choradas, de sinais na saúde e na vida, de traumas os
mais diversos e em momentos diferentes pelo que sonharam e se fez ou se desfez,
pelo que sofreram e ficou, pelo que esperaram aguentaram e sentem nunca ter
tido reconhecimento bastante”.
E o
Presidente como que se perde discursivamente na marcação da complexidade
generalizada da mudança histórica que abriu para a tetralogia “descolonização, desenvolvimento,
liberdade e democracia” – “sempre imperfeitos”. E esta falta de plenitude espelha-se
na incapacidade da resolução do problema da “pobreza estrutural de dois milhões de portugueses e desigualdades
pessoais e territoriais e desinstitucionalizações (….), que a pandemia veio revelar e
acentuar”.
Da revolução
abrilina diz Marcelo ter sido “fruto da resistência de muitas e muitos durante
meio século com os seus seguidores políticos sentados neste hemiciclo”, mas que
“ganhou o seu tempo e o seu modo decisivos no gesto essencial dos Capitães de
Abril”, ali “qualificadamente representados pela Associação 25 de Abril”, que,
não tendo vindo “de outras galáxias”, nem surgido “num ápice naquela madrugada
para fazerem história”, vinham transportando consigo “a sua história, as suas
comissões em África”, “tendo de optar todos os dias entre cumprir ou
questionar, entre acreditar num futuro querido ou que outros definiam ou não
acreditar, entre aceitar ou a partir de certo instante romper, tudo em
situações em que a linha que separa o viver e morrer é muito ténue apesar dos
princípios, das regras, dos ditames escritos por políticos e juristas em
gabinetes”. E o Presidente da República diz com todas as letras: “Pois
foram estes homens, eles mesmos, não outros, os heróis naquela madrugada do 25
de Abril”.
E não deixa
de frisar a lucidez ou generosidade dos Capitães em “aceitar para símbolos
públicos face visível da mudança oficiais mais antigos encimados pelos que
haveriam de ser os dois primeiros Presidentes da República na transição para a
Democracia”. E destes refere:
“Não
eram, não tinham sido militares de alcatifa. Tinham sido grandes chefes
militares no terreno e nele responsáveis por anos de combate, de coordenação
com serviços de informação e de atuação antiguerrilha, de proximidade das
populações.”.
No atinente à
índole e génese da Revolução, para que não restem dúvidas, acentua o Presidente
da República e Comandante Supremo das Forças Armadas:
“Foi
assim aquele dia 25 de Abril antes de suscitar o Processo Popular
Revolucionário que o seguiu e apoiou. Antes de ser hoje património nacional em
que o seu único soberano é o povo português.”.
Depois dum apontamento
sobre a eclosão do 25 de Abril, “resultado de décadas de resistência”
consubstanciada no crucial “grito de revolta de militares que tinham dado anos
das suas vidas à Pátria no campo de luta e que sentiam estar a combater sem
futuro político visível ou viável”, faz subtil referência a António de Spínola
e a Francisco Costa Gomes, “que tinham conhecido intensa e prolongadamente o
que é a guerra de guerrilha em missões militares e cargos políticos ou
militares os mais relevantes”. E conclui pela justeza de “galardoar os Militares
de Abril”, fazendo expressa referência ao Presidente Ramalho Eanes, “que,
depois de ter estado no terreno, veio a ser peça chave na mudança de regime e
primeiro Presidente da República eleito da democracia portuguesa, e que sempre
recusou o marechalato que merecia e merece”.
E, voltando à
dificuldade em se fazer um juízo histórico justo, sublinha algo em que todos estamos
em consenso: como “o Império não entendeu
o tempo que o condenara”, também “a
ditadura não podia entender o tempo que a tinha condenado de forma irrefragável
e ainda mais evidente a partir de 1958 e da saga de Humberto Delgado e a
relação colonial não conseguira entender a raiz da inevitabilidade da sua
inconsequência”.
Por isso, vinca
a atualidade das reflexões a que deu concretização, pois “nada como o 25 de
Abril para repensar o nosso passado quando o nosso presente ainda é tão duro e
o nosso futuro é tão urgente” e porque “pode ressurgir a tentação de converter
esse repensar do passado em argumento de mera movimentação tática ou
estratégica num tempo que ainda é e será de crise na vida e na saúde e de crise
económica e social”.
Nestes termos,
exortando a que “encaremos com lúcida serenidade o que pode agitar o confronto
político conjuntural, mas não corresponde ao que é prioritário para os
portugueses”, Marcelo considera prioritário: “estudar o passado e nele dissecar
tudo” – o que houve de bom e o que houve de mau; assumir todo esse passado, “sem
autojustificações ou autocontemplações globais indevidas, nem autoflagelações
globais excessivas”.
A seguir,
preconiza a assunção da justiça, ainda por fazer, ao mais de milhão de
portugueses que “serviram pelas armas o que entendiam ou lhes faziam entender constituir
o interesse nacional”; aos milhões que “cá ou lá viveram a mesma odisseia”; aos
milhões que “lá e cá a viveram do outro lado da história combatendo o império
colonial, batendo-se pelas suas causas nacionais ou a viveram do mesmo lado,
mas ficaram esquecidos ou abandonados por quem regressou e condenados por quem
nunca lhes perdoou o alinhamento com o oponente”; ao quase milhão dos que “chegaram
sem nada depois de terem projetado uma vida que era ou se tornou impossível”; e
aos milhões, que “sofreram nas suas novas Pátrias conflitos internos herdados
da colonização ou dos termos da descolonização”.
Convenhamos que
hoje esta é uma tarefa hercúlea e a justiça que o Presidente preconiza só pode
ser feita em termos da memória coletiva e carece de pontes com os novos países de
expressão portuguesa. Mas que se faça essa justiça histórica e se faça a possível
noutros campos.
Se calhar,
pela dificuldade em fazer plena justiça, o também Professor de Direito propõe:
“Que
se faça história e história da História, que se retire[m] lições de uma e de
outra sem temores nem complexos, com a natural diversidade de juízos, própria
da democracia. Mas que se não transforme o que liberta, e toda a revisitação o
mais serena possível e liberta ou deve libertar em mera prisão de sentimentos,
úteis para campanhas de certos instantes, mas não úteis para a compreensão do
passado a pensar no presente e no futuro.”.
Lapidarmente o
Presidente clama que “O 25 de Abril foi feito para libertar”.
Em todo o
caso, não esconde Marcelo que a Revolução trouxe divisões que forram sendo
superadas e que ela própria era “composta de várias revoluções”, algumas das
quais deram origem às novas Nações irmãs na língua, que “têm sabido
encontrar-se connosco e nós com elas e têm sabido julgar um percurso comum
olhando para o futuro ultrapassando séculos de dominação política, económica,
social, cultural e humana”.
E Marcelo –
qual “charneira entre duas histórias da mesma História” (filho dum governante na Ditadura e no
Império, que viveu na sua segunda Pátria o tardio ocaso inexorável do Império,
e viveu depois, como constituinte, o arranque do novo tempo) – pretende que o tempo que falta
para a celebração do 50.º aniversário do 25 de Abril sirva de caminho a trilhar
assumindo “as glórias que nos honram e os fracassos pelos quais nos
responsabilizamos”, construindo “coesões e inclusões” e combatendo “intolerâncias
pessoais ou sociais”.
Fazendo referência
pincelada à Constituição, que agora faz 45 anos de vigência, que ele ajudou a
elaborar e à luz da qual foi eleito e reeleito Presidente da República, formula
o voto de que “o 25 de Abril viva sempre, como gesto libertador e refundador da
história” e que “saibamos fazer dessa nossa história lição de presente e de
futuro, sem álibis nem omissões, mas sem apoucamentos injustificados querendo
muito mais e muito melhor”, na certeza de que “não há, nunca houve um Portugal
perfeito, como não há, nunca houve um Portugal condenado”.
E termina como
que em chave de ouro:
“Houve,
há e haverá sempre um só Portugal. Um Portugal que amamos e nos orgulhamos para
além dos seus claros e escuros também porque é nosso. Nós somos esse Portugal.
Viva o 25 de Abril! Viva Portugal!”.
***
Pouco importa
que o discurso presidencial seja aula de História ou aula de Política sobre um
determinado tempo histórico emoldurado por outros tempos, necessidades,
conquistas, omissões e valores. O que importa é o discurso que estampou publicamente
diante dos portugueses para que reflitamos e reafirmemos a democracia total
comprometendo-nos com ela, não por si mesma, mas pelo que significa em prol da
dignidade da pessoa humana e duma sociedade justa, solidária e fraterna.
Não creio que o discurso deva ser lido nas entrelinhas. Por um lado, qualquer entrelinha é perigosa por ser lacunar, ser entendível como recado a este ou àquele setor e eventualmente constituir crítica ao próprio orador, por exemplo, por não ter escalpelizado o atraso social, cultural, educacional, económico do estado Novo ou o regime de despolitização, de partido único, de uniformidade de pensamento e expressão – situação por que Marcelo obviamente não foi responsável. Ademais, não são as entrelinhas que responsabilizam as figuras públicas, mas apenas o que elas exprimem por palavras ou por premeditados e eloquentes silêncios.
E a meta-história
com que Marcelo emoldurou a sessão comemorativa do 25 de Abril – o contracanto
do discurso político de Ferro Rodrigues a que me referi oportunamente –, ainda
que não diga tudo, fala por si própria. E há que a entender e assumir.
2021.04.26 – Louro de Carvalho
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